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O Polo Industrial de Camaçari, na Bahia, atraiu a atenção do mundo todo após o anúncio da BYD em 2023 de que instalaria ali sua maior fábrica fora da China. Inaugurado em 1978, o Polo foi o primeiro complexo petroquímico planejado do Brasil, peça central do projeto de desenvolvimento da indústria nacional que vigorou até o fim dos anos 1980. Contribuiu historicamente para o desenvolvimento econômico, do mercado de trabalho e para a qualificação dos profissionais formados na Bahia. A partir da década de 1990, no entanto, com a abertura comercial do Brasil e as adversidades do cenário externo, o Polo passou por crises de competitividade e mudanças estruturais significativas.
O Polo de Camaçari sempre contou com indústrias complementares à cadeia petroquímica, mas a ampliação das atividades teve como marco a chegada da indústria automobilística—ocorrida com a instalação da americana Ford nos anos 2000. Após duas décadas de operação, em 2021, a Ford fechou as portas, declarando passar por dificuldades econômicas agravadas pela pandemia, e o Polo hoje passa por mais um processo de expansão setorial das atividades: atrai investimentos de montadoras de veículos elétricos e empresas da área de energias renováveis, em sua maioria, de origem chinesa. De forma emblemática, a nova fábrica da BYD está sendo construída no antigo terreno da Ford.
Ao longo dos anos, o polo petroquímico se transformou em um polo industrial em sentido amplo e, agora, vem sendo projetado como polo industrial verde. Para tratar do papel de Camaçari no projeto de reindustrialização verde do Brasil sob a perspectiva da classe trabalhadora, Maria Sikorski, editora da Phenomenal World, conversou com Alfredo Santos, Secretário-Geral da CUT-Bahia e coordenador do setor de imprensa do Sindiquímica-Bahia, sindicato que representa vinte mil trabalhadores das indústrias químicas, petroquímicas, de plásticos, fertilizantes, gás natural e de terminais químicos do estado.
Uma entrevista com Alfredo Santos
Maria Sikorski: Você pode começar contando um pouco da história do Polo de Camaçari e da relação dele com as distintas fases da política industrial brasileira?
Alfredo santos: O Polo de Camaçari foi construído entre meados da década de 1970 e início da década de 1980. Ele surge com uma estrutura de propriedade tripartite: a composição acionária contava com capital privado nacional, multinacional e capital estatal brasileiro. Havia uma central de matérias-primas controlada por uma empresa pública, a Copene (posteriormente privatizada), que fomentava as indústrias de segunda geração. Essa central petroquímica fornecia a base da cadeia produtiva da nafta, do eteno, do propeno etc. É importante destacar esse modelo tripartite porque ele é um exemplo de como a industrialização no Brasil só aconteceu com uma forte participação do Estado, seja direta, como foi o caso do Polo Petroquímico de Camaçari, seja por meio do financiamento do BNDES—mesmo as empresas privadas, tanto no surgimento do Polo quanto atualmente, a exemplo das chinesas que se instalaram recentemente, contaram com financiamento do Banco. É o Estado brasileiro que financia a industrialização.
O Polo de Camaçari seguiu crescendo ao longo dos anos 1980 e 1990. Mas, a partir da abertura comercial do governo Collor (1990-1992) e, de forma mais acentuada, durante o governo FHC (1995-2002), ele enfrentou uma crise de produtividade e competitividade internacional e sofreu com reduções de investimento e fechamento de fábricas. No início dos anos 1990, esse complexo industrial respondia por mais de 30 mil empregos diretos. No final da década, o número havia caído para pouco mais de 10 mil.
A partir de 2003, com o primeiro governo Lula (2003-2010), o Estado brasileiro volta a investir na industrialização, mas agora de forma indireta: a Petrobras passa a figurar como investidora importante dos chamados “grandes players” do Brasil. Um fruto desse processo é a Braskem—a Petrobras detém, hoje, 47% das ações da empresa. Recuperou-se um tanto de competitividade internacional, mas, por outro lado, observou-se em todo o país um processo de monopolização da central de matérias-primas e da cadeia de resinas termoplásticas que implicou o fechamento de várias empresas que não conseguiram concorrer com os grandes players—que acabavam atuando como fornecedores dos próprios concorrentes.
Atualmente, o setor petroquímico brasileiro enfrenta uma crise gigantesca. Hoje, o Polo de Camaçari não tem condição de competir internacionalmente. O setor de fertilizantes é um exemplo: 85% dos fertilizantes usados pelo agronegócio brasileiro são importados. A cadeia termoplástica importa cerca de metade dos insumos que utiliza. Esse ingresso de produtos importados nas cadeias petroquímicas acontece por dois motivos. O custo doméstico das cadeias ficou muito alto se comparado ao de cadeias mais modernas que têm base gás ao invés de base nafta. As indústrias estadunidense, árabe e indiana exportam um produto de preço mais baixo do que o nosso custo de produção doméstico, tanto por falta de atualização tecnológica das nossas plantas quanto por fatores ambientais: os EUA, por exemplo, utilizam gás de fracking, que tem um custo de produção muito inferior, mas é extremamente danoso ao meio ambiente. O Brasil não produz gás de fracking e tem, inclusive, restrições ambientais ao seu uso. Além disso, o próprio preço do gás brasileiro é bastante alto: chega a ser cinco vezes maior do que o estadunidense. Isso mina a competitividade internacional da nossa indústria petroquímica. Se o país não tiver uma política industrial voltada a preservar o mercado nacional, a tendência é que essas indústrias todas quebrem.
MS: A Bahia tem sido apontada nacional e internacionalmente como peça essencial do projeto de reindustrialização verde do Brasil e da transição energética em nível global. É o estado da federação que mais produz energia renovável de fontes solares e eólicas do país e vem atraindo muito investimento estrangeiro, especialmente chinês, nessas cadeias produtivas.
Com a promessa de fabricação de carros elétricos pela BYD e a instalação de outras empresas chinesas do setor de energias renováveis, há quem diga que Camaçari pode se tornar uma referência da reindustrialização verde no Brasil. Quando anunciou a instalação da fábrica no antigo terreno da Ford, por exemplo, a BYD prometeu trazer para o Polo etapas de alto valor agregado da cadeia produtiva de veículos elétricos, inclusive aquelas relacionadas a pesquisa e desenvolvimento, além de gerar milhares de empregos. A CEO da BYD para as Américas, Stella Li, declarou que o objetivo era transformar Camaçari em um “Vale do Silício brasileiro”.
Diante da crise no setor petroquímico, é possível que o ingresso de outras cadeias represente uma retomada do papel de Camaçari no desenvolvimento nacional?
AS: A planta da Ford, inaugurada em 2001, representou ingresso da cadeia automobilística no Polo de Camaçari. Após 20 anos, a Ford encerrou as operações e, recentemente, empresas chinesas, como a BYD, passaram a investir nessa cadeia. Outras empresas chinesas da área de energias renováveis, como a Sinoma e a Goldwind, também se instalaram no Polo. Mas, ainda que haja uma promessa de que a planta da BYD funcione, de fato, como uma fábrica, por ora, essas empresas operam apenas como montadoras, praticamente maquiladoras.
O processo de atração da BYD para a Bahia envolveu muito subsídio estatal. O governo da Bahia tornou os carros elétricos isentos de IPVA a partir de 2024, por exemplo. Houve incentivos públicos na transferência do terreno que era da Ford para a empresa chinesa, há também financiamento do BNDES. Por enquanto, a BYD está apenas montando os carros aqui. Há uma promessa de mudar isso no futuro, mas, por ora, as etapas de maior valor agregado da cadeia não estão na Bahia. O polo petroquímico tem grande potencial para a produção de baterias, mas as baterias desses veículos não têm sido produzidas aqui. Há potencial de beneficiamento de lítio, há potencial da indústria plástica para a produção de peças. É possível produzir os carros aqui, mas por enquanto a promessa da BYD não se concretizou.
A questão é: quais contrapartidas ao subsídio estatal nós poderíamos exigir dessas empresas? Esse é o papel do Estado brasileiro na reindustrialização. Se as plantas funcionarem como meras montadoras, o que a gente ganha com isso? Agora, se o Estado exigisse que, dentro de determinado prazo, a BYD beneficiasse lítio em território nacional e fabricasse as baterias aqui, que utilizasse as indústrias locais para a fabricação de peças, enfim, que efetivamente tivesse partes da cadeia produtiva operando aqui, a coisa mudaria de figura.
No passado, houve um debate semelhante na indústria petroquímica. A política de conteúdo nacional para a cadeia de petróleo—abandonada após o golpe de 2016—exigia que toda indústria que prestasse serviço para a Petrobras tivesse um percentual de maquinário produzido em território brasileiro. A indústria naval do país renasceu naquele período e, quando o conteúdo local deixou de ser exigido, quebrou novamente.
A indústria brasileira não consegue competir sem alguma forma de incentivo. Não existe industrialização sem participação do Estado. Se o projeto de industrialização não exigir contrapartidas ao investimento estrangeiro, seja estadunidense, chinês ou de qualquer outro lugar, o Brasil vai simplesmente cumprir um papel na política industrial de outro país. Nenhuma empresa decide expandir as operações para outro país de forma altruísta. Se investe é porque isso atende aos seus próprios interesses. E investimento, seja qual for a origem, é sempre bom. A questão é o que a gente exige dos investidores para satisfazer os interesses nacionais também.
Por muitos anos, a industrialização brasileira foi muito dependente dos Estados Unidos. Se a gente simplesmente trocar o imperialismo norte-americano por um imperialismo chinês, no final, teremos o mesmo resultado. Não podemos simplesmente atender aos interesses de quem quer investir. O investidor externo quer lucrar. O que o país ganha quando subsidia a obtenção de lucro dele?
MS: Como o movimento sindical da Bahia encara o papel do programa Nova Indústria Brasil (NIB) de promover o interesse nacional no projeto de reindustrialização verde do país?
AS: O Novo Indústria Brasil, até o momento, é um plano no papel. É difícil analisar sem observar o impacto real por meio de dados, e o programa ainda não mostrou a que veio. Mas uma coisa que é importante ter em mente quando se fala em industrialização verde é: quem paga o preço?
No movimento sindical, nós dizemos brincando que “beleza, álcool é um combustível mais limpo do que gasolina, mas eu prefiro trabalhar na Petrobras a trabalhar numa indústria de álcool”. A indústria verde não pode ser viabilizada economicamente pela redução do custo da força de trabalho. E o que nós temos observado é, justamente, que os setores supostamente mais sustentáveis da indústria hoje são os que têm os empregos mais precários. Se o biodiesel tem um custo de produção maior que o diesel, como se faz para que a alternativa verde chegue na bomba com o mesmo preço? Precarizando a força de trabalho da cadeia produtiva do biodiesel. Aí, não dá!
Essa contradição não existe só no Brasil, mas no mundo todo: as indústrias sujas, as mais antigas, são as que oferecem melhores condições de trabalho, inclusive do ponto de vista da saúde do trabalhador. É só você observar as condições de trabalho de uma usina de cana-de-açúcar ou da indústria de reciclagem de alumínio com catadores de latinha. Alguém pode dizer que o catador não faz parte da indústria de reciclagem, mas fato é que ela só existe no Brasil por causa dos catadores. O Brasil é recordista em reciclagem de alumínio não porque tem um grande projeto logístico de retorno, mas porque tem um monte de gente miserável que precisa catar latinha para sobreviver e que, com isso, fomenta uma cadeia produtiva que é extremamente lucrativa.
Os carros elétricos são outro exemplo: pela própria tecnologia empregada, o setor gera muito menos emprego do que a indústria de carro a combustão. É uma engenharia muito mais simples: o veículo elétrico tem carroceria, bateria e motor, enquanto o carro a combustão tem óleo, correia, filtro, cabeçote, pistão, biela, enfim: várias outras fábricas são necessárias para fornecer produtos e peças para essa indústria.
A crítica do movimento sindical às cadeias de energia renovável segue a mesma linha. Hoje, a Bahia é o estado que mais produz energia limpa no Brasil e, basicamente, “exporta vento” para as regiões Sul e Sudeste sem nenhuma contrapartida para as comunidades onde as usinas eólicas—que têm um impacto social e ambiental enorme—ou os painéis solares estão montados. Ao mesmo tempo, as partes da cadeia produtiva que geram mais empregos, como fabricação de turbinas, placas fotovoltaicas e peças de manutenção, não estão aqui. Nós ficamos com a pior parte de toda a cadeia: a de maior impacto e menor retorno. É uma reprodução, entre as regiões do Brasil, da mesma dinâmica global que se observa entre países do centro e da periferia do capitalismo. O papel do Nordeste da industrialização brasileira será reduzido a gerar energia e crédito de carbono para ser consumido no Sul e no Sudeste? O Nordeste é a região do Brasil que mais produz energia solar do Brasil, mas não tem uma fábrica de placa fotovoltaica.
Nesse mesmo sentido, eu entendo que a NIB precisa incluir uma discussão geopolítica acerca dos objetivos de industrialização verde do Brasil. Nós vamos custear a transição energética dos países que historicamente mais poluíram? O nosso papel será gerar a energia limpa e o crédito de carbono para que os países do Norte global consumam? É, de novo, a ponta mais fraca custeando a transição energética. Até agora, parece que as partes de menor valor agregado, menor complexidade e menor geração de emprego das cadeias produtivas verdes são as que ficam no Brasil ou em outros países periféricos. O papel na divisão internacional do trabalho que sempre coube aos países periféricos se renova: os trabalhos mais precários ficam aqui e os mais tecnológicos e bem remunerados ficam no centro do capitalismo. A NIB precisa dialogar com esse interesse chinês de entrar no Brasil, por exemplo, para exigir contrapartidas ao subsídio estatal que revertam esse papel subordinado na divisão internacional do trabalho.
Obviamente, somos a favor do fomento à indústria verde, mas defendemos que ele deve vir com financiamento público. O Estado, e não o trabalhador, deve custear a transição. Quando a viabilidade econômica do biodiesel vem da precarização da força de trabalho, o Estado está fazendo o trabalhador bancar a transição energética. Defendemos, ao contrário, uma transição energética verdadeiramente justa.
MS: Como você sintetiza, então, a demanda do movimento sindical para a reindustrialização verde do Brasil?
AS: A demanda do movimento sindical para a reindustrialização verde é que ela não perca de vista que o trabalhador é parte fundamental desse processo. A quantidade, a qualidade, a remuneração e as demais condições desses empregos gerados na industrialização verde precisam ser iguais ou superiores ao que se observou nos processos de industrialização anteriores. Não podemos, em hipótese alguma, seguir utilizando a precarização do trabalho como mecanismo de viabilização econômica da indústria verde. A transição energética precisa acontecer, o planeta não pode esperar, mas precisa acontecer tendo em vista que o trabalhador também é parte do meio ambiente. Se sacrificarmos os trabalhadores, faremos a transição para salvar quem?
Nesta semana, completou-se no Brasil 61 anos de Golpe Militar, em uma conjuntura de grande instabilidade da democracia liberal vigente no país. Há poucos dias, o Supremo Tribunal Federal (STF) tornou Jair Bolsonaro réu pelo crime de tentativa de golpe no contexto pós-eleitoral de 2022, um acontecimento que trouxe à tona o terror da ditadura e as ameaças presentes de autoritarismo. Para tratar do tema, Hugo Fanton, editor da Phenomenal World, conversou com Frei Betto, frade dominicano e escritor brasileiro, preso duas vezes pela Ditadura Militar, em razão do trabalho social e político de resistência ao autoritarismo.
Frei Betto participou da criação das Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s), forma de organização incentivada pela Teologia da Libertação e que consistia em grupos reunidos em determinado território – favela, escolas, fábricas etc – para conjugar leitura bíblica com o debate da realidade política e social. Elas se tornaram um dos principais mecanismos de resistência à Ditadura e luta pela democracia no país. Frei Betto é autor de livros que retratam essa experiência, como “Cartas da Prisão” e “Batismo de Sangue”, obra que descreve os bastidores do regime militar e os crimes cometidos contra a humanidade.
Em um momento de avanço das forças autoritárias no Brasil e no mundo, agora de novo sob a liderança de Donald Trump nos EUA, é preciso rememorar os processos de transição de regime e ascensão autoritária, e lutar para que os horrores vividos não se repitam nunca mais.
Entrevista com Frei Betto
Hugo Fanton: Neste 1º de abril, completou-se 61 anos do Golpe Militar no Brasil. Poderia contextualizá-lo?
Frei Betto: Após a Segunda Guerra Mundial, na medida em que os aliados conseguiram derrotar o nazifascismo, houve uma onda de democratização, que levou os setores populares a se organizarem cada vez mais e reivindicarem direitos. No Brasil, Getúlio Vargas retornou ao poder, em 1950. Ele havia governado o país num regime ditatorial durante 15 anos, mas que concedeu grandes benefícios à classe trabalhadora, e por isso era considerado o “pai dos pobres”. Vargas era também a mãe dos ricos, mas, nesse novo governo, no início dos anos 1950, os setores conservadores da sociedade brasileira tramaram a derrubada dele, pois não aceitavam políticas que promovessem melhores condições de vida às classes trabalhadoras. Essa conspiração da direita levou ao suicídio de Vargas em 1954, e o Brasil entrou num período de grande instabilidade política.
No início dos anos 1960, houve a eleição de Jânio Quadros, que aprofundou essa instabilidade, pois ele renunciou sete meses depois de eleito, achando que haveria uma grande mobilização nacional para o reconduzir à presidência da República com poderes autoritários. Isso não ocorreu. Quem assumiu a presidência foi o vice, João Goulart, mais conhecido como Jango.
Nesse período, o vocábulo que melhor traduzia o Brasil era o adjetivo “novo”, a bossa era nova, o cinema era novo, a literatura era nova, a economia de Celso Furtado era nova, tudo era novo. O Brasil estava em efervescência progressista de emancipação e, ao mesmo tempo, dando muita liberdade para movimentos sociais, como as ligas camponesas e o movimento estudantil. Enfim, era um país efervescente, com muita criatividade e muitas conquistas, com políticas, sobretudo na economia, bastante inesperadas. E tudo isso foi castrado com o golpe militar de 1º de abril de 1964.
A elite não esperava essa movimentação da sociedade para reivindicar direitos, que os setores populares ameaçassem os privilégios e os interesses das classes dominantes, como, por exemplo, com a exigência até hoje não conquistada de reforma agrária no Brasil, um país de dimensões continentais e que nunca conheceu uma reforma agrária, ao contrário de vizinhos como a Bolívia e o Peru, para citar apenas dois exemplos. Essa ameaça a privilégios levou aos golpes, com apoio da Casa Branca, para implantar ditaduras civis-militares por toda a América Latina. Isso aconteceu em muitos países de nosso continente. O governo de João Goulart tinha vários aspectos progressistas. Não tinha nada de comunista. Era um homem democrata e até mesmo latifundiário, mas com sensibilidade para as demandas populares. Como reação a essa agenda, os militares, subsidiados e orientados pelo governo dos Estados Unidos, deram o golpe em 1º de abril 1964, rasgaram a Constituição Brasileira e implantaram um regime de terror que durou 21 anos e do qual pessoalmente fui vítima.
HF: Como isso afetou a sua vida na época?
FB: Fui preso como dirigente estudantil por 15 dias em junho de 1964, poucos meses depois do golpe. Em 1969, já atuando como frade dominicano, fui preso novamente pelo trabalho de apoio à resistência e à luta pela redemocratização do país. Fiquei na prisão durante quatro anos, até 1973. Esse período foi de disseminação de golpes militares na região: Argentina, Uruguai, Chile, com muita crueldade, tortura, desaparecimentos daqueles que lutavam por um outro sistema social, no caso o socialismo, ou pela mera redemocratização de seus países. Foi um período muito trágico na história da América Latina, e tudo isso financiado pela Casa Branca.
No início da Ditadura, algumas lideranças liberais e democratas, como Rubens Paiva, que é retratado no filme “Ainda Estou Aqui”, pensaram que o golpe seria apenas um período de rearranjo das classes dominantes, tuteladas pelos militares. Não se pensava que haveria tortura, desaparecimentos, fuzilamentos, enfim, toda essa crueldade que está condensada na obra “Brasil: Nunca Mais”.
A ditadura se implantou e foi se tornando cada vez mais violenta, assassina e genocida. Principalmente, a partir do ato institucional nº 5, em dezembro de 1968, que muitos analistas chamam de o golpe dentro do golpe, quando as coisas realmente se agravaram. Justamente a partir daí, as forças democráticas começaram a resistir aos militares, à ditadura, seja por meios pacíficos, seja armados. Grupos e partidos começaram a se armar para fazer frente ao poder bélico da ditadura. Isso levou a um desgaste muito grande do regime militar.
HF: Como foi o trabalho de resistência ao longo dos anos 1970? O que você destacaria em termos do trabalho que fizeram de resistência permanente, cotidiana, mesmo num contexto extremamente desfavorável?
FB: Houve um período em que essa resistência era clandestina, do ponto de vista pacífico ou pela luta armada. A partir de meados dos anos 1970, ela ganhou uma dimensão de luta de massas, com as greves sindicais, sobretudo quando o movimento sindical, liderado por Lula, denunciou que a política econômica da ditadura era falsa, uma grande mentira para encobrir a dinâmica real da economia. Grandes corporações sindicais começaram a se mobilizar, levando milhares de pessoas às ruas para reivindicar direitos trabalhistas. Isso progressivamente minou as bases da ditadura.
Aquele consenso que havia na sociedade brasileira de que a Ditadura livrou o país do comunismo foi acabando, porque as pessoas ficaram cada vez mais cientes das atrocidades praticadas pelos militares. Para isso, foi muito importante a virada no movimento sindical, pois havia um sindicalismo oficial que foi contraposto pela mobilização de base.
O Brasil sempre teve organizações populares. E a partir dos anos 1960, se formaram, por meio dos setores progressistas da Igreja Católica, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Foram elas que gestaram o que se conhece hoje como teologia da libertação. Essas comunidades eclesiais de base não chamavam a atenção da ditadura, que as consideravam apenas um fenômeno religioso. Foi um grande equívoco dos militares, porque as CEBs, a partir de uma leitura da Bíblia pela ótica do oprimido e abraçando o método a pedagogia libertadora de Paulo Freire, começaram a formar militantes para os movimentos populares, para os movimentos sindicais e, mais tarde, para os movimentos partidários.
Então, houve, entre os anos 1960 e 1970, uma grande disseminação do catolicismo progressista, e essa organização de base presente nas favelas, nas fábricas etc. gerou a oposição sindical, o sindicalismo combativo, que acabou tomando os espaços do sindicalismo até então atrelado à ditadura. Em seguida, também como resultado dessa luta e organização, houve uma abertura para novos partidos no Brasil. Entre eles, surge, liderado por Lula, o Partido dos Trabalhadores (PT).
Então, é esse o processo que foi aglutinando forças populares e minando o regime ditatorial, que levou ao declínio da ditadura, marcado por eventos como a volta dos exilados e a criação de grandes associações nacionais de organização dos trabalhadores e das classes populares, como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Agora, infelizmente, esse processo, esse acúmulo organizativo, perdeu-se nos últimos anos, o que permitiu a eleição de Bolsonaro e um enfraquecimento muito grande das forças progressistas. Ao mesmo tempo, há o fenômeno global de fortalecimento da direita.
HF: A que você atribui a nova ascensão autoritária?
FB: Uma vez conquistada a democracia devido à falência do próprio regime ditatorial – social, econômica e política –, pensávamos que jamais o Brasil voltaria a ter um governo autocrático. Mas, a conjuntura mundial nem sempre é linear. E hoje, no meu entender, estamos numa onda não de democratização das nações, mas de autoritarismo, com um forte acento nazifascista.
Isso acontece em todos os continentes, e agora foi agravado pela eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, porque ele é assumida e declaradamente um autocrata. Poderia já ter se tornado um ditador caso tivesse conseguido impedir a posse de Biden em 2021. Já não vale mais aquela anedota que se contava na América Latina de que nos Estados Unidos nunca havia ocorrido um golpe porque não há, em Washington, uma embaixada americana. Isso já não vale porque a ameaça agora é real também por lá. Trump tentou dar o golpe de Estado, felizmente foi derrotado, mas agora voltou eleito com apoio maciço da população dos Estados Unidos e pretensões autocratas.
Esse viés autoritário está em voga no mundo, e se deve a vários fatores. Durante a Guerra Fria, havia uma bipolaridade, os países capitalistas hegemonizados pelos Estados Unidos e, no Oriente, o socialismo, na União Soviética, na China. Isso criava um certo equilíbrio de forças. Considero que a maior conquista do socialismo não se deu propriamente em algum país socialista, mas na Europa Ocidental: as classes trabalhadoras conquistaram muitos de seus direitos, assegurados em lei, porque a burguesia europeia temia que os trabalhadores abraçassem o socialismo e o comunismo. Nunca o bem-estar da classe trabalhadora na Europa foi tão sólido quanto no pós-guerra, até 1989.
Com a queda do Muro de Berlim, a elite mundial arrancou a máscara. E, com a mudança do padrão de acumulação capitalista, de produtivo para especulativo, essas elites passaram a ter muito mais renda e poder. Hoje, temos um mundo dominado, de um lado, pelos especuladores e, de outro, por essas Big Techs que nada produzem, apenas processam os nossos conhecimentos e informações, e revertem isso em mercadoria e também em força de domínio das consciências.
Então, creio que estamos num mundo de domesticação espiritual das consciências. Sempre se falou em globalização e sempre critiquei essa expressão: o que existe de fato é globo-colonização, a colonização do planeta por um sistema de sociedade que é o capitalista, um sistema hedonista, consumista, que transforma o ser humano em mercadoria, porque não valemos pela nossa dignidade intrínseca, valemos pelos bens que possuímos ou não. Quanto mais somos portadores de bens materiais tanto mais somos acolhidos em sociedade. Há um processo acelerado de dominação, fazendo com que os laços sociais sejam cada vez mais esgarçados, pela dependência crescente do celular, tudo está reduzido a esse aparelhinho que não exige de mim relações presenciais, associativas, sindicais, partidárias. Há uma forte tendência que as redes trazem ao individualismo, porque vão se esgarçando os laços associativos e, ao mesmo tempo, acentuando o narcisismo. A lógica das redes e de postagem produz um jogo narcísico e uma grande dependência dessas Big Tech’s que não existem para facilitar a nossa comunicação e sim para vender produtos.
HF: Existe paralelo entre Bolsonaro e o golpe militar em 1964, entre o presente e o que vivemos na ditadura?
FB: Sim, porque o Brasil, ao contrário da Argentina, do Chile e do Uruguai, nunca puniu seus torturadores e assassinos, e criou um mecanismo esdrúxulo do ponto de vista jurídico, que é a anistia recíproca. Os torturadores e assassinos, ao invés de serem denunciados, julgados e condenados, foram previamente anistiados, ao mesmo tempo que aqueles que lutaram contra a ditadura. Isso fez com que o caldo de cultura da ditadura permanecesse aquecido nos quartéis do Exército, da Aeronáutica e da Marinha. E eles consideram o golpe de 1964 um avanço, uma revolução, e não a implantação de uma ditadura. Bolsonaro é filho dessa formação castrense de matiz fortemente nazifascista. Assim como todos aqueles que, com ele, tentaram o frustrado golpe de 8 de janeiro de 2023.
Mas, hoje, eles não encontram respaldo nas corporações militares. Não vejo nenhuma possibilidade de um novo golpe nos moldes do que ocorreu em 1964. Agora, vejo a possibilidade não de Bolsonaro, que está inelegível, mas de seu pessoal se eleger em 2026, inclusive fazendo o presidente da República, pelas eleições. Há tendências na sociedade brasileira de apoio ao nazifascismo que está vigente nesses grupos bolsonaristas. Acho que há um risco muito grande nisso. E nós, progressistas, temos de intensificar nosso trabalho, porque o risco existe. É preciso voltar ao trabalho de base, saber dominar as redes digitais e ser mais propositivo.
HF: Que impactos o governo Trump traz a essa conjuntura?
FB: Trump vai governar autocraticamente, ignorando as leis, os juízes, como agora na deportação de venezuelanos para El Salvador. A questão é como o sistema judiciário dos Estados Unidos reage, a que ponto tem força para detê-lo.Se os mecanismos de pesos e contrapesos não forem acionados, penso que, vendo pelo cenário de hoje, ele não entregará ao governo daqui a quatro anos. Ele não pode ser candidato, mas pode inventar um casuísmo, uma nova emenda à Constituição americana que o permita ser candidato de novo. Ainda é cedo para fazer uma avaliação, mas prevejo um governo extremamente autocrático, no limite daquilo seria uma ditadura declarada. E isso tudo vai depender muito do desempenho do governo. Já com esses dois meses de mandato há uma grande decepção, seu prestígio já está indo por água abaixo. O desgaste já é muito grande. O que pesa tanto no Brasil como nos Estados Unidos, em qualquer lugar, é o bolso, o que o governo vai significar em termos de bem-estar para as pessoas, alimentação, saúde e educação etc.
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No momento em que as atenções do mundo se voltaram para as eleições no centro do capitalismo—a disputa que terminou por conduzir Donald Trump ao segundo mandato como presidente dos Estados Unidos—, no Brasil, os pleitos municipais, apesar de caráter local, indicaram cenários políticos para os próximos anos no país—sobretudo para a disputa presidencial de 2026. Em outubro de 2024, eleitores brasileiros foram às urnas escolher prefeitos e vereadores. Dentre as disputas, a de São Paulo talvez tenha sido a mais indicativa do futuro. Além de ser o principal colégio eleitoral do país, a cidade apontou possíveis tendências políticas, como a ascensão de uma nova liderança de extrema direita—o antes desconhecido Pablo Marçal—e a tentativa de unificação de todas as forças à direita do centro para derrotar a esquerda.
Para tratar dos resultados eleitorais e refletir sobre o atual momento da inserção do Brasil no cenário global, Hugo Fanton, editor da Phenomenal World, conversou com André Singer, professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP). A entrevista, realizada em 13 de dezembro de 2024, traz elementos da relação entre estrutura de classes e comportamento político no Brasil, discute os autocratismos de Trump e Bolsonaro e o acirramento do viés fascista na atual conjuntura, e aborda o “estranho mimetismo” recente entre Estados Unidos e Brasil. Além disso, apresenta análises de O Segundo Círculo (Editora Unicamp), lançado no Brasil em setembro passado, para pensar as relações entre centro e periferia em tempos de guerra. A referência ao inferno de Dante indica o aprofundamento da crise, desde 2008, em pavimentos cada vez mais aterradores, o que aumenta os flagelos vividos pelos povos e reduz as chances de saídas pacíficas. Para caracterizar esse momento, defende-se uso do termo “interregno”, pela referência às disputas pela direção global e formação de novas relações de hegemonia.
Entrevista com André Singer
Hugo Fanton: No ano passado, o desempenho de Pablo Marçal na eleição municipal de São Paulo chamou a atenção de todo o país. Isso alterou a cena política brasileira? O que podemos esperar para o período que antecede as eleições presidenciais de 2026?
André Singer: Pablo Marçal, um influencer da internet, foi um candidato inesperado, não estava previsto pelos atores políticos. Surgiu do nada, apoiado por um partido político que não tem nenhum representante no Congresso Nacional, e alcançou um milhão e setecentos mil votos. Foi uma votação extraordinária na disputa eleitoral mais importante do ano: a da cidade de São Paulo, o maior colégio eleitoral do país, de tamanho próximo ao que existe, por exemplo, em Portugal. Por muito pouco—uma diferença de apenas 50 mil votos—ele não foi para o segundo turno. Isso evidenciou questões que não estavam dadas no campo à direita no espectro político: um homem jovem, de 37 anos, sem nenhum suporte, a não ser a própria capacidade de comunicação, foi capaz de mobilizar o eleitorado de extrema direita na cidade de São Paulo contra Jair Bolsonaro. Não no sentido de ser oposição a Bolsonaro, mas de ser independente, porque Bolsonaro já tinha fechado uma aliança com o candidato do MDB, o prefeito da cidade, Ricardo Nunes.
Para ser reeleito, Nunes colocou um indicado de Bolsonaro como vice-prefeito, de origem da Polícia Militar, e assim caracterizar que havia uma aliança formal não só com o partido do Bolsonaro—o Partido Liberal (PL)—, mas com o próprio Bolsonaro. Quando Marçal começou a subir nas pesquisas, Bolsonaro se viu numa situação difícil. Num primeiro momento, tentou desautorizar Marçal em benefício de Nunes. Mas as bases bolsonaristas se revoltaram contra Bolsonaro e o obrigaram a recuar numa tentativa de conciliação com o Marçal, de oposição a Nunes. Nesse momento, a candidatura Nunes se viu seriamente ameaçada pelo abandono das bases bolsonaristas. Quando isso ocorre, surge a figura que, a meu ver, é a principal ganhadora de todo o processo eleitoral de 2024: o governador do estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas. Ele foi o patrono da candidatura Nunes. No entanto, Tarcísio tem uma dívida com o Bolsonaro porque, mesmo sem nunca ter sido político—era um administrador que participou até mesmo do governo Dilma Rousseff—,foi indicado em 2022 por Bolsonaro para ser candidato ao governo do estado e ganhou a eleição porque o bolsonarismo obteve larga maioria no interior do estado. Agora, em 2024, o Tarcísio se viu obrigado a tomar uma decisão: ficar com Nunes ou com Marçal e Bolsonaro. Ele optou pelo primeiro e isso salvou a candidatura de Nunes à reeleição, levando o próprio Bolsonaro a recuar do apoio ao Marçal e se colocar numa posição mais ou menos neutra. Na prática, Bolsonaro teve de se afastar da eleição de São Paulo por não conseguir encontrar uma posição adequada. Acontece que o Tarcísio, apesar de ter se colocado contra o Bolsonaro naquele momento, nunca deixou de dizer que era preciso trazer o ex-presidente de volta para a candidatura Nunes. Ou seja, o Tarcísio compreendeu que, se a direita se unificar, tem condição de ser competitiva.
O Tarcísio é o que chamo de “bolsonarismo Shrek”: não se apresenta com os mesmos traços de radicalismo de Bolsonaro ou Marçal. É uma figura híbrida, originária do campo da extrema direita, mas que se apresenta de um outro jeito, talvez de forma mais palatável para a direita não extremada. O prefeito Ricardo Nunes tem o mesmo perfil. Não é uma figura de extrema direita, mas abraçou várias de suas bandeiras porque também entendeu que a unidade era indispensável.
A eleição municipal de São Paulo foi a mais nacionalizada de todas e é passível de ser entendida, de maneira relativa, como uma prévia de elementos que podem se repetir nas eleições presidenciais de 2026. É claro que o Brasil é diferente de São Paulo, não deve haver uma transposição automática. Mas alguma coisa do que aconteceu aqui pode vir a ser útil para compreender certos elementos de 2026. A eleição de 2024 mostrou a potência da extrema direita após a derrota de 2022. Foi a primeira vez em que a extrema direita voltou às urnas, e ela se mostrou potente—não a ponto de ganhar, mas a ponto de competir. E mostrou que, se houver unidade, a direita pode ganhar a eleição.
HF: Quais são os impactos da vitória do “partido do interior” nessas eleições municipais na relação dos setores da direita tradicional com a “confederação bolsonarista”? Há um realinhamento em curso, com progressivo distanciamento de Bolsonaro, ou o cenário pós-eleitoral aponta para uma reafirmação da extrema direita e de Bolsonaro, polo aglutinador das direitas do país? E de que modo isso se desdobra no cenário eleitoral de 2026? É possível, desde já, vislumbrar a reedição da disputa do Lulismo versus indicado direto de Bolsonaro, ou as eleições municipais mudaram os rumos?
AS: O realinhamento eleitoral, tal como propus em 2006,1 está de pé, sobretudo no que diz respeito à base da pirâmide social, que tem dado vários sinais de que continua lulista. Um desses sinais é a avaliação do governo Lula realizada pelo Datafolha no começo de outubro passado: no conjunto do eleitorado, há aprovação como “ótimo e bom” de 36%. Mas, na base da pirâmide, essa proporção sobe para 46%. Em todos os demais que não são a base da pirâmide, gira em torno de 27%. É muita diferença. É como se o país estivesse dividido em dois blocos, em duas metades sociais, sendo que a metade de baixo apoia o governo e a metade de cima tende a não apoiar o governo. Isso me leva a pensar que o lulismo está de pé. Um outro elemento que indica nessa direção: a única vitória importante do PT nas eleições municipais foi em Fortaleza, uma das principais capitais do Nordeste, que é o centro do subproletariado, essa fração de classe que está tecnicamente na base da pirâmide. Então, nesse sentido, o realinhamento permanece. Mas o que está acontecendo de novidade é que há um deslocamento dentro do campo da classe média, que começou, do ponto de vista partidário, com o esvaziamento do PSDB e a ida desses setores para extrema direita a partir de 2016.
Um dos fatores em curso—e que ficou muito claro também na eleição municipal de 2024—é a tentativa do Bolsonaro de construir, pela primeira vez, um partido que organize e substitua o PSDB, que é o PL. Até então, ele tinha se recusado a fazer isso. Bolsonaro primeiro se filiou ao PSL, do qual saiu durante o mandato. Depois, lançou um partido próprio que, abandonado pelo caminho, se desfez. E então aderiu a um partido que já existe há muito tempo: o PL, do qual a maior liderança se dispôs a se tornar o principal organizador do bolsonarismo. Então, agora, o bolsonarismo tem um veículo partidário que foi bem nas eleições. É o partido que dispunha de mais recursos do Estado para fazer campanha, por ter a maior bancada na Câmara dos Deputados, e saiu-se bastante bem em outubro.
Mas isso tem um preço: como qualquer força que entra no jogo institucional para valer, há um efeito de normalização. De alguma forma, ela é atraída para as regras implícitas ou explícitas do jogo eleitoral. No caso brasileiro, a regra implícita é que esses partidos precisam se comportar como aquilo que o Fernando Henrique Cardoso, quando era apenas cientista político, há 40 anos, chamava de “partido ônibus”: partidos que não têm uma característica homogênea, nos quais você entra e sai a qualquer momento e que, portanto, têm seções regionais e locais com características muito diferentes entre si. Isso leva a casos muito estranhos, mas que ocorreram nestas eleições, como alianças locais entre PL e PT. É algo muito raro, mas aconteceu no Brasil—para o eleitor estrangeiro ter uma ideia da complexidade que é a vida partidária brasileira.
O PSDB foi substituído, em parte, pelo PL, mas em parte também pelo PSD, que é dirigido por um político bastante tradicional, o Gilberto Kassab. No estado de São Paulo, sobretudo no interior, o PSD vem absorvendo a antiga máquina do PSDB, que é muito forte—uma estrutura num estado da federação muito poderoso. Com isso, estamos assistindo a uma reacomodação nesse campo à direita do centro. É uma situação em que, de um lado, a extrema direita adquire um veículo partidário com alguma solidez inicial e, de outro, há o fortalecimento de um partido do chamado “centrão”, que é o nome que se usa para aquilo que eu, conceitualmente, proponho como o “Partido do Interior”, representado pelo PSD, que não é de extrema direita. O problema da direita é saber se haverá uma unidade entre PSD e PL. Tal como ocorreu em São Paulo, a direita e a extrema direita podem estar separadas no primeiro turno e juntas no segundo.
Agora, quais são as incógnitas aqui? Primeiro, se Bolsonaro insistirá em ser candidato, ainda que juridicamente esteja impossibilitado de concorrer. Há vários sinais de que sim, e nisso ele se espelha no que fez o presidente Lula em 2018: apesar de ter sido colocado fora da competição, deixou para o último momento o reconhecimento de que ele não poderia ser candidato e a indicação de Fernando Haddad para concorrer no seu lugar. Isso cria muitos problemas para a candidatura porque, por exemplo, se Tarcísio quiser ser candidato a presidente da república, terá de se tornar um nome nacional e, para ser conhecido, precisa se movimentar. Porém, se o Tarcísio se coloca em campo, confronta o Bolsonaro e, com isso, contradiz uma das suas premissas, que é correta: separada, a direita perde, ela precisa se unificar. O problema do Tarcísio é essa equação. A outra pergunta é se Marçal ou algum candidato como o Marçal teria a chance de reproduzir, no plano nacional, o que aconteceu na cidade de São Paulo. É uma pergunta muito difícil, porque o Brasil não é São Paulo. O Brasil é um país continental, gigante, muito heterogêneo, com muitas características distintas, conforme a região, a religião, a idade e o gênero etc. Mas não é impossível, como mostram os fenômenos anteriores de Jânio Quadros, Fernando Collor e do próprio Bolsonaro.
HF: Quais as relações entre essa dinâmica das forças políticas e a estrutura de classes do país? Houve realinhamentos, seja de setores do capital, seja das classes trabalhadoras?
AS: Vou começar de baixo para cima e falar sobre quatro segmentos populacionais. Primeiro, a base da pirâmide. Como disse antes, acho que temos aí o lulismo em pé. Por exemplo, uma das mais expressivas vitórias no Brasil foi a do João Campos (PSB), em Recife, que estava liderando a coalizão que apoiou Lula em 2022 e que foi apoiado por Lula agora em 2024. Recife é uma das principais capitais do país do ponto de vista político. Já falamos da vitória especificamente do PT em Fortaleza, e tem ainda a vitória do Eduardo Paes (PSD) no Rio de Janeiro, onde, com o apoio do Lula, a coligação vencedora impingiu uma derrota sentida ao Bolsonaro em seu berço político e principal reduto. Não é pouca coisa. O bolsonarismo segue bastante forte no Sul do país, onde venceu nas três capitais, e obteve vitória expressiva no Centro-Oeste, além do desempenho em algumas capitais do Nordeste. Não obstante, a eleição e as pesquisas mostram que a base da pirâmide continua com o lulismo até aqui.
O segundo escalão é aquilo que os institutos de pesquisa designam como os que recebem de 2 a 5 salários mínimos de renda familiar mensal. Aqui, começa uma nítida divisão. A candidatura Marçal em São Paulo teve uma expressão significativa nesse setor. Não foi o principal apoio dele, que era entre os de maior renda. A extrema direita cresce com a renda. Também foi assim com Bolsonaro. Nesse sentido, é uma oposição de classe ao lulismo. Quanto maior a renda, mais esses setores intermediários se opõem à base da pirâmide. Essa é a contraposição fundamental que está em jogo do ponto de vista social. Os que recebem de 2 a 5 salários mínimos são muito importantes do ponto de vista numérico, da ordem de mais de 30% do eleitorado brasileiro, enquanto mais de 40% estão na base. Esses dois segmentos decidem a eleição, porque os de maior renda não têm número para influenciar. Mas esse setor de 2 a 5 salários está dividido. A extrema direita mostra influência ali, mas não é um setor que se deslocou por completo para a extrema direita—está em disputa, e eu até diria que esse é o setor que vai decidir a eleição em 2026.
Em seguida, temos o terceiro escalão, formado por setores intermediários, que são os que estão acima de 5 salários mínimos de renda familiar mensal. Aí também há uma divisão, que é tripla: entre extrema direita, direita e uma pequena franja de classe média progressista. A candidatura de esquerda em São Paulo, Guilherme Boulos, teve dificuldades na base da pirâmide e também crescia com a renda, similar, um pouco, com o que era a primeira configuração do PT, até 2002. Por fim, o quarto escalão seriam as classes dominantes, que nem entram nas pesquisas de opinião. Não têm importância do ponto de vista numérico, mas sim do ponto de vista da estrutura de classe. Acho que está posto o apoio de uma parte da classe dominante à extrema direita, sobretudo do setor ligado ao agronegócio. O PL, por exemplo, foi muito bem nas cidades que têm mais faturamento do agronegócio. Isso se aplica também ao empresariado de negócios e da construção civil, que são setores economicamente importantes. A dúvida é o que fará a burguesia cosmopolita, porque esta se aliou à candidatura Lula com muita dificuldade em 2022, como procurei mostrar em outros trabalhos.2 É o setor do empresariado mais moderno que, no segundo turno de 2022, decidiu aderir à candidatura Lula num ambiente de bastante tensão e dificuldade, que permanece. Os dois anos de mandato até agora foram atravessados por uma disputa que acabou sendo praticamente o assunto central do governo: o problema da austeridade. Esse setor da burguesia faz questão de que haja um corte de gastos públicos compatível com o que eles entendem ser um equilíbrio fiscal que dê tranquilidade a essa fração do capital. É uma coalizão muito frágil, muito dividida internamente, de tal modo que pode surgir uma candidatura com características aparentemente de direita—e não de extrema direita—que se torne atraente para essa burguesia cosmopolita. Essa indagação vai permanecer nos próximos dois anos.
HF: Ao lidar com os fenômenos de Trump nos EUA e Bolsonaro no Brasil, o senhor apresentou a ideia de “autocratismo de viés fascista”. Poderia explicar em linhas gerais esse conceito e como entendê-lo agora, à luz dos novos acontecimentos: a eleição de um Trump ainda mais radicalizado e, no caso do Brasil, tanto o fenômeno Marçal quanto os impactos da inelegibilidade e dos processos contra o Bolsonaro?
AS: Do ponto de vista empírico, o que foi possível comprovar durante o governo Bolsonaro é uma tendência para um regime autocrático. Não tenho elementos empíricos para dizer que ele caminhava no sentido de um regime de tipo fascista, mas sim autocrático, em sentido específico, porque é voltado para seu próprio fortalecimento, entendendo “autocrático” como algo bem particular, que é o tipo de regime centrado na figura do líder. Diferentemente, por exemplo, daquilo que ficou caracterizado como o regime militar tecno-burocrático de 1964, que não tinha uma liderança destacada e se organizava em torno de um aparelho. O viés fascista está em ter ativado, ou buscado ativar, o inconsciente da massa. E falo “massa” de propósito, porque na ideia de ativação do inconsciente, que vem da análise que a Escola de Frankfurt faz do fascismo histórico, esse inconsciente atravessa as classes. É claro que pode continuar tendo uma base de classe, mas não se restringe a isso, porque se comunica com o inconsciente. Nesse tipo de comunicação que ativa o inconsciente, o indivíduo sujeito a ela não sabe que está, é um tipo de comunicação que não é racional, e por isso surge aquilo que Adorno chama de “sistema delirante”. Por exemplo, em 2021, as redes bolsonaristas começaram a difundir que a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) estava recebendo dinheiro chinês para viabilizar a reabilitação jurídica do ex-presidente Lula e, com isso, escravizar o povo brasileiro à China. Isso foi divulgado não como uma metáfora, mas como um fato. E esse fato é completamente delirante, coloca quem acredita em uma esfera que não é atingível por quem quer dialogar logicamente. É a mesma esfera na qual estão pessoas que acreditam que a Terra é plana. Mas não adianta discutir, porque a pessoa não está acreditando nisso por razões conscientes, racionais, lógicas. Acredita porque aquilo é o reflexo de uma ativação inconsciente. Isso não havia na política brasileira até a entrada de Bolsonaro. É uma novidade que caracteriza o viés fascista.
Acompanho a política dos EUA de longe, então posso estar enganado, mas a minha impressão é que essa vitória de Trump em novembro passado se deu em contexto de acirramento desse viés fascista. Minha análise é para o Brasil, mas uma vez que foi feita a pergunta, estou arriscando uma opinião sobre os Estados Unidos. Por que acirramento do viés fascista? Porque, por exemplo, ao prometer deportar milhões de pessoas, ele está, digamos assim, participando desse sistema delirante. Lembre-se da fábula de que os imigrantes estavam comendo pets no interior dos EUA: isso é parte de um sistema delirante, não é? Então, como estamos justamente em face desse tipo de fenômeno, que é diferente daquilo que a gente se acostumou a aprender na análise política, fica difícil dizer o que Trump fará ao tomar posse. Mas, a julgar pelo teor da campanha, estamos diante de um acirramento do viés fascista.
No caso do Brasil, entendo que esse traço de viés fascista foi plenamente adotado na campanha de Marçal na eleição de São Paulo. Foi uma candidatura de extrema agressividade. Não uma agressividade lógica, mas uma que visa o inconsciente, a ponto desse candidato fazer ofensas e provocações aos demais concorrentes de uma tal ordem que, num debate público na época—para ciência dos leitores estrangeiros—,levou uma cadeirada de outro candidato. Marçal ainda introduziu esse teor de violência num outro debate subsequente, em que um de seus assessores deu um soco no publicitário da campanha de outro candidato. Esses elementos, que podem parecer fortuitos, a meu ver, fazem parte de uma comunicação que é muito mais efetiva do que simplesmente as palavras. São atos de grande violência que ativam o inconsciente da massa. Por isso, o fenômeno Marçal é muito significativo, dada a existência de um espaço social para esse tipo de política, que chamo de viés fascista.
HF: O livro lançado em setembro passado, O Segundo Círculo, busca situar o Brasil no mundo. Como o país se situa hoje, em comparação ao período do início dos anos 2000? Como pensar o Brasil nesse novo cenário de uma possível bipolarização entre China e EUA?
AS: Enquanto país da periferia, o Brasil sofre determinações que emanam do centro do sistema, mas, ao mesmo tempo, processa essas determinações de acordo com a sua formação de classe. Como mostrou o professor Fernando Rugitsky no livro “O Brasil no Inferno Global”, neste momento, o Brasil tende à condição de fornecedor de matéria-prima mais ou menos processada para ser industrialmente utilizada na Ásia. Falando metaforicamente, o Brasil está voltando a ser o celeiro do mundo ou de uma parte do mundo. Enquanto isso, o terceiro vértice desse triângulo, os Estados Unidos e a Europa, continuam controlando o conjunto do sistema por meio de mecanismos financeiros. O que não sabemos é se a bipolarização entre EUA e China, que foi objeto do livro “O Segundo Círculo”, gerará ou não investimentos industriais chineses e do polo EUA-Europa no Brasil. Até aqui, há alguns investimentos industriais chineses no Brasil, como a planta da BYD em Camaçari. Não sei avaliar se esses investimentos têm escala para indicar uma mudança estrutural ou uma reversão da tendência anterior, que é de desindustrialização. Do mesmo modo, não tenho notícia, até aqui, de transferência de tecnologia avançada, que é fundamental para pensar na possibilidade de reversão dessa tendência. A mesma pergunta se coloca em relação ao bloco comandado pelos EUA em oposição à China, porque o Brasil, sendo um país importante no cenário internacional, poderia se beneficiar dessa divisão, negociando com os dois lados concessões que apontassem na direção daquilo que é o projeto histórico de uma parte da sociedade brasileira, que é buscar a saída definitiva do chamado “atraso”.
Em relação ao início dos anos 2000, quando Lula venceu a primeira eleição presidencial, a novidade é que o Brasil está bastante mais desindustrializado, reprimarizado. Isso explica, em parte, o fenômeno da confederação bolsonarista ter sido derrotada em 2022 por menos de 1% dos votos, mesmo depois da catástrofe humanitária que foi a gestão de Bolsonaro em relação à Covid-19. Há também a conversão complementar de um país voltado para os serviços e não para a indústria, algo que tem tudo a ver com essa confederação bolsonarista, que congrega frações da classe dominante ligadas ao agronegócio e aos serviços. Portanto, hoje, a situação do ponto de vista de um projeto de desenvolvimento é bem mais difícil do que há 20 anos.
Do ponto de vista da redistribuição de renda, o efeito também é negativo porque, dada a precarização, as perspectivas de melhores empregos, melhor renda e mesmo de uma prosperidade em ambiente de justiça social para os empreendedores—uma vez que o empreendedorismo é um fenômeno hoje importante na classe trabalhadora—têm se tornado cada vez mais longínquas. O que tem crescido no Brasil é o trabalho precarizado, uma exploração mais selvagem da mão de obra e uma ocupação crescente de espaços pelo crime organizado. O problema de como organizar um novo programa face a esta situação atual, eu diria, é uma das questões mais angustiantes deste momento.
HF: No primeiro capítulo do livro, defendemos o uso da palavra “interregno” para pensar a crise global. Poderia comentar qual é o ganho analítico em pensar nesses termos?
AS: A proposta do artigo é pensarmos que interregno, para Gramsci, significa um período de luta entre forças que não têm hegemonia, mas buscam ter. Portanto, é um ângulo propriamente político de olhar para o interregno como período de disputa entre essas forças. Tentamos interpretar o fenômeno Biden como um novo americanismo, quer dizer, como a busca pela organização de uma nova direção, e acho que isso não perde validade com a derrota eleitoral porque de fato apareceram elementos de uma nova direção, sobretudo na primeira metade do governo, quando Biden assumiu uma parte das bandeiras da esquerda do Partido Democrata sem nunca ter sido desse campo. Em um cenário de disputa por nova direção, ele organizou um novo programa que cogitamos ser uma proposta de novo americanismo. O problema é que essa direção perdeu a eleição. E agora já estamos num outro momento, em que precisamos compreender por que perdeu a eleição, por que essa direção foi mal sucedida. O fato é que, na luta interna, ela foi derrotada por um outro viés, do trumpismo, que vai agora apresentar uma contra-direção para buscar resolver os problemas que a direção anterior não conseguiu. Por exemplo, há um conjunto de análises que apontam para uma muito difícil condição de vida do cidadão médio norte americano, para não falar dos cidadãos propriamente da base da pirâmide nos Estados Unidos, que é diferente da brasileira. Como o Trump vai lidar com isso? Se acompanhamos por essa ideia de interregno, entendemos que esta força está se propondo a apresentar uma outra direção. E poderíamos ainda pensar em termos globais, em qual é a direção oferecida pela China, porque estamos falando de direção simultaneamente para dentro dos países e para fora, que foi exatamente o que o Biden tentou articular mas, contraditoriamente, com uma política de tipo social avançada para dentro e beligerante para fora. Caberia analisar também o que a China está propondo para o Sul Global e, ao mesmo tempo, para sua própria economia. A questão é como isso se articula do ponto de vista de forças que estão tentando disputar a hegemonia mundial. Acho que a utilidade da ideia de interregno é este foco nas linhas das forças políticas que estão disputando um período em que não há uma hegemonia definida.
HF: Nesse mesmo livro, aparece a ideia de paralelismo entre Brasil e Estados Unidos, de um mimetismo recente entre os países. Abordamos um pouco isso pelo conceito de autocratismos de viés fascista—o paralelismo entre Trump e Bolsonaro. Pode apresentar, em linhas gerais, os principais aspectos desse paralelismo e a implicação disso para compreender o Brasil no mundo?
AS: O que nos levou à ideia de mimetismo foi a constatação de que, desde 2016, a política brasileira começou a ficar parecida com a política norte-americana. Fundamentalmente, porque o ex-presidente Jair Bolsonaro, a partir de um certo momento, começou a literalmente copiar todas as ações de Trump, em alguns casos até nos detalhes. O ápice desse processo de cópia foi o levante, por assim dizer, de 8 de janeiro de 2023, em que uma multidão brasileira invadiu e arrebentou as sedes dos três poderes em Brasília, imitando o que havia acontecido em 6 de janeiro de 2021 na invasão do Capitólio. Isso foi uma espécie de performance imitativa, de consequências extraordinárias, porque boa parte dessas pessoas está presa até hoje, pagando um preço altíssimo por essa espécie de sistema delirante. Esse foi o auge de um processo longo de cópia. A partir daí, a nossa pesquisa nos levou para caminhos bastante diversificados. Por exemplo, o filósofo Roberto Mangabeira Unger afirma que não há nenhum país no mundo mais parecido com os Estados Unidos do que o Brasil: o grau de isolamento dos dois países, de tamanhos continentais, muito voltados para dentro, e bastante isolados dos outros. Vale lembrar que o Brasil tem uma tradição histórica de voltar as costas para a América Latina e olhar para a Europa primeiro e depois para os Estados Unidos. É também fato que o Brasil, historicamente, copia fórmulas norte-americanas, por exemplo, a adoção do presidencialismo, embora isso seja comum também a outros países da América Latina. E, por fim, o elemento que talvez seja mais atual—e o núcleo da discussão: os dois países vêm se desindustrializando paralelamente.
É claro que os Estados Unidos são o centro do sistema e o Brasil é um país da periferia, então é diferente. Mas, curiosamente, os dois países vêm percorrendo uma desindustrialização paralela e, com isso, há consequências políticas, como o fortalecimento político relativo do agronegócio. A partir disso, o que significa o interior dos dois países se voltar para a extrema direita? É um elemento estrutural que pode ajudar a compreender isso que estamos chamando de estranho mimetismo, porque são dois países, em que pesem essas semelhanças, muito diferentes. Um é central e o outro é periférico, têm formações sociais bem diferentes e tradições políticas bem distintas. Para dar um exemplo entre muitos, os Estados Unidos são um país historicamente bipartidário. O Brasil é um caso de pluripartidarismo extremado, de extrema fragmentação partidária. Então, o que explica as estranhas semelhanças que temos visto? Acho que um elemento é o da desindustrialização. E essa discussão nos leva ao levantamento de hipóteses, por exemplo, para tentar compreender se a vitória de Trump dos Estados Unidos vai ter muita influência sobre o Brasil. Esses canais de comunicação antes não existiam e agora devem ser observados mais de perto.
HF: Diante desse cenário, como pensar a esquerda e o futuro da esquerda no Brasil?
AS: Em termos conjunturais,vejo três grandes desafios. O primeiro é prestar muita atenção no fato de que cortes orçamentários em programas que fornecem renda e benefícios para a base da pirâmide podem ter um efeito fatal para o lulismo, que está inteiramente assentado sobre ela. Possíveis cortes no salário mínimo, no Benefício de Prestação Continuada, no abono salarial, que vão diretamente para a base da pirâmide, precisam ser observados com o máximo cuidado do ponto de vista político. Segundo, há uma percepção, algo também comum aos Estados Unidos e ao Brasil, de que o aumento do custo de vida está impactando a base da pirâmide e também o escalão imediatamente superior, de 2 a 5 salários mínimos de renda familiar mensal, com uma força que faz com que os números agregados da economia sejam pouco importantes. Há crescimento econômico, queda do desemprego, aumento da massa salarial, mas quando as pesquisas são feitas, há até aumento do pessimismo em relação à economia, o que parece dizer que, para o cidadão comum, a vida continua muito difícil. E isso pode ter a ver com a onda de inflação no custo de vida mundial, decorrente da desorganização das cadeias produtivas pela Covid-19 e talvez depois pelas guerras, porque os preços do petróleo e da energia impactam muito toda cadeia de preços e, particularmente, no custo de vida. Então, o segundo desafio é desenhar políticas de defesa da economia popular, que impeçam que esses efeitos da economia global continuem chegando nas camadas de menor renda. O terceiro, e mais difícil, é formular um programa que permita disputar essa faixa de eleitores que recebem de 2 a 5 salários mínimos de renda familiar mensal, que não são a base da pirâmide, mas que são trabalhadores entre os quais a precarização é bastante presente. Por exemplo, um entregador de aplicativo que trabalha com motocicleta na cidade de São Paulo não está na base da pirâmide. Pode parecer contraintuitivo, mas no caso brasileiro ele está no setor intermediário, não está entre os mais pobres. E qual projeto pode disputar esse eleitor que se mostrou bastante propenso a apoiar o Marçal em São Paulo? Tem que ser um projeto de desenvolvimento do país. Não pode ser outra coisa senão um projeto desenvolvimento. Mas como pensar o projeto de desenvolvimento nas condições adversas globais que descrevi antes? Para terminar de uma forma irônica, eu diria que é preciso fazer isso já. Mas, como fazer? Não sei.
Desde 1999, Mercosul e União Europeia (UE) negociavam um acordo de parceria birregional sobre três aspectos: comercial, político e de cooperação. Em dezembro de 2024, um quarto de século depois, as negociações foram concluídas, com anúncio durante a cúpula do Mercosul—em que Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, esteve presente. O acordo ainda passará por revisão jurídica e, em seguida, será encaminhado para aprovação dos órgãos competentes. Por decisão da União Europeia, a aprovação foi repartida: a fatia comercial do acordo depende apenas da aprovação do Parlamento Europeu, enquanto as partes política e de cooperação precisam tramitar nos parlamentos nacionais. Do lado do Mercosul, o texto precisa passar por todos os parlamentos nacionais, mas o acordo pode ter vigência bilateral entre a UE e qualquer país do bloco sul-americano que o aprovar.
Uma versão anterior do acordo havia sido anunciada em 2019, sob a particular liderança, do lado do Mercosul, de Jair Bolsonaro. As tratativas daquele ano foram abandonadas, no entanto, após novas exigências de caráter ambiental da União Europeia—que sofreram resistência do então presidente brasileiro, mas foram lidas como protecionistas inclusive por setores progressistas do Mercosul. Com o novo governo de Lula, as negociações foram reabertas em 2023. O novo texto, apesar de mais moderado, ainda é criticado por organizações e governos de ambos os lados. Na União Europeia, a resistência vem principalmente de setores agrícolas da França, Holanda e Polônia, que temem a competição com os produtores do Mercosul. Deste lado do Atlântico, as preocupações vêm, em sua maioria, da sociedade civil e da academia, e giram em torno do potencial que a parceria tem de reforçar a primarização da pauta exportadora dos países do bloco e minar esforços presentes de reindustrialização. Algumas das mudanças da versão atual em relação à de 2019 se referem à preservação de maior espaço para a implementação nacional de políticas públicas e requisitos de compras públicas, maiores compromissos ambientais e novos instrumentos de revisão e reequilíbrio, além de prazos maiores na liberalização do comércio ou redução tarifária para determinados setores.
Maria Fernanda Sikorski, editora da Phenomenal World, conversou com Marta Castilho, coordenadora do Grupo de Indústria e Competitividade da Universidade Federal do Rio de Janeiro (GIC-IE/UFRJ) e professora de Economia da mesma instituição, sobre as perspectivas do acordo para o Mercosul e, em particular, para o Brasil, e os riscos que a liberalização comercial representa para o desenvolvimento nacional e regional do lado sul-americano.
Entrevista com Marta Castilho
Maria Sikorski: Você pode descrever as mudanças no ambiente político e econômico ocorridas desde o início das negociações de parceria, em 1999, até a conclusão, em 2024? Por que o acordo permaneceu relevante e como as relações comerciais entre Mercosul e União Europeia (UE) mudaram ao longo desse tempo?
Marta Castilho: Esse acordo começou a ser negociado num momento em que a União Europeia era um bloco de 15 países. A perspectiva do Mercosul era ter acesso à União Europeia de então com algumas vantagens em relação ao Leste Europeu, por exemplo, que na época tinha uma estrutura industrial relativamente parecida com a nossa—mas que, ao longo do tempo, se articulou muito com a indústria da Europa Ocidental. Essa talvez tenha sido a mudança mais importante em relação ao início das negociações, porque o cenário era um pouco mais alentador para a nossa indústria.
Desde o início, no entanto, sempre ficou claro—e essa foi uma das razões para a demora nas negociações, ao menos até meados dos anos 2010—que o Mercosul via uma possibilidade de aumento das exportações de produtos agrícolas. Então, internamente, os apoios ao acordo vinham das classes ligadas ao agronegócio, enquanto a indústria, ao contrário, ficava numa posição um pouco receosa, defendendo uma abertura comercial mais gradual, preocupada com a possibilidade de sofrer com a concorrência europeia.
Além disso, é importante lembrar que as empresas europeias são muito presentes aqui, há muitas filiais de multinacionais deles na nossa região, e elas também tiveram, digamos, flutuações de humor ao longo das negociações. Por exemplo, uma das maiores produtoras de frango do mundo é uma empresa francesa que tem implementações aqui. Houve um momento em que essa empresa defendia a liberalização do comércio—o que pode contrastar com a reclamação atual dos franceses—porque interessava a eles criar o frango aqui e exportar a carne de frango para lá. Essas flutuações aconteceram em diversos setores. O setor automobilístico também é um exemplo importante, assim como o químico e vários de seus subsetores, porque há uma presença forte de empresas europeias aqui. Em geral, na Europa, havia um interesse grande pela abertura do mercado de produtos industriais do Mercosul, além de um interesse de facilitar os fluxos de serviços. E, em compensação, uma resistência maior à entrada de produtos agrícolas.
MS: Uma versão anterior do acordo chegou a ser anunciada em 2019, mas não foi ratificada pelo Parlamento Europeu. Quais as principais mudanças do texto atual?
MC: Um fator relevante é que, nos últimos cinco anos, entre a versão de 2019 e a de 2024, aconteceu a pandemia. Em 2019, os países europeus já davam sinais de uma retomada das políticas industriais: novas estratégias relacionadas à indústria 4.0, à digitalização e afins. A pandemia evidenciou algumas vulnerabilidades desses países e os levou a incorporar explicitamente políticas voltadas à internalização da produção e à ampliação da autonomia de determinados setores e segmentos em relação ao exterior. Isso mudou os interesses comerciais da UE sobre o acordo e também os termos da negociação entre os dois blocos.
Um reflexo disso é o interesse pelos minerais em geral e, particularmente, pelos minerais críticos—ligado à questão do desenvolvimento de baterias e outras tecnologias associadas à digitalização ou à descarbonização. Nesse aspecto, o Mercosul é um paraíso, é uma fonte riquíssima de minerais. Uma das mudanças mais recentes é o crescente apetite da Europa por minerais provenientes daqui e, nesse sentido, o fato de que a UE passou a ver com maus olhos qualquer iniciativa de proteger ou taxar as exportações desses bens. Isso é um aspecto novo que passou a ser tratado nas negociações entre 2019 e 2024, e um ponto importante é que o Mercosul conseguiu pensar prospectivamente no setor de minerais críticos e assegurar a possibilidade de impor algumas condicionalidades.
No Brasil, há um debate posto a respeito disso. Não é uma discussão já concluída, há visões contrastantes, por exemplo, entre o governo de Minas Gerais e setores do governo federal, mas há um debate sobre o desenvolvimento de uma estratégia para os minerais críticos que vá além da exploração e exportação como matéria-prima, no sentido de tentar aumentar o grau de beneficiamento e, eventualmente, produzir baterias e outros bens internamente.
Outra mudança entre o texto de 2019 e o de 2024 foi a questão das compras públicas. O Mercosul conseguiu assegurar a utilização desse instrumento como política de desenvolvimento produtivo. A Europa usa as compras públicas há muito tempo, mas o acordo de 2019 retirava a possibilidade de o Mercosul empregar determinados mecanismos. O Mercosul conseguiu rever isso e aproximar bastante os termos do acordo das regras já existentes no bloco. Essa foi uma das partes mais positivas dessa renegociação.
MS: Quais os efeitos do desmembramento das partes comercial, política e de cooperação do acordo, considerando que as cláusulas comerciais entram em vigência a partir da aprovação do Parlamento Europeu e dos parlamentos nacionais do Mercosul, mas as cláusulas políticas e de cooperação dependem da aprovação de cada parlamento nacional da UE?
MC: O acordo de parceria reflete uma tradição europeia de tratar de aspectos que vão além do comércio em negociações dessa natureza, diferentemente da tradição anglo-saxã, por exemplo. Então, o acordo com o Mercosul tem uma parte comercial, uma parte de cooperação e outra de diálogo político. Esse é um aspecto positivo, porque, por exemplo, a parte de cooperação pode compensar determinadas perdas das cláusulas comerciais. A abertura comercial pode ser compensada por perspectivas de cooperação para desenvolvimento técnico em áreas nas quais os europeus sejam mais avançados, como a tecnologia, e em áreas nas quais nós tenhamos possibilidade de trocar, como a bioeconomia e a saúde tropical.
Acontece que agora, por uma questão pragmática, estratégica, o acordo foi desmembrado. Isso porque um acordo comercial é mais facilmente negociável e aprovável. O trâmite, inclusive dentro da UE, é mais rápido: se for só a parte comercial, não exige a aprovação de todos os parlamentos de cada membro. Um acordo de parceria em seu conjunto precisaria passar por todas as instâncias nacionais, um processo que poderia ser atrasado pelas discordâncias que temos visto, por exemplo, da França, da Polônia e da Holanda. Para os europeus, é uma questão pragmática. Mas, para o Mercosul, a meu ver, é uma miopia, porque o bloco perde a oportunidade de aproveitar eventuais ganhos que seriam possibilitados pelos outros aspectos do acordo, sobretudo o de cooperação.
MS: Porque é possível que apenas o acordo comercial seja aprovado e os outros aspectos sejam protelados indefinidamente.
MC: Isso, porque não tem necessidade de aprovar. Você não vai colocar em votação uma coisa que sabe que não será aprovada. Os interesses europeus já estão contemplados pelo acordo comercial. Por exemplo, algumas regras ambientais incluídas no texto atual não comprometem as principais legislações europeias, como o mecanismo de taxação de carbono na fronteira—o CBAM—e o mecanismo de reflorestamento: eles estão livres do acordo comercial.
MS: Quero conversar sobre os principais aspectos do acordo comercial e como eles impactam diferentes setores do Mercosul. Podemos começar pela parte de tarifas e cotas tarifárias?
MC: O acordo comercial cobre inúmeras disciplinas. Uma delas é a de tarifas e cotas tarifárias (ainda que as cotas sejam, tecnicamente, barreiras não-tarifárias, as duas matérias costumam ser tratadas conjuntamente). As cotas são muito utilizadas para produtos agrícolas: uma tarifa baixa é aplicada para determinada quantidade de exportações no interior do acordo e, ultrapassada essa quantidade, a tarifa passa a ser a mesma cobrada para outros parceiros. Entre os países do Mercosul, adota-se uma tarifa comum para produtos agrícolas. Há uma variedade de cotas tarifárias para diferentes produtos no acordo atual com a UE, um aspecto que foi preservado do texto de 2019. Há bens em que a cota aumentou e a tarifa intracota diminuiu, mas há situações em que a tarifa intracota foi reduzida, porém a quantidade estabelecida é inferior ao que já exportávamos em 2019 e 2020. Além disso, há mecanismos que permitem aos europeus rever essas quantidades—outro aspecto do texto de 2019 que foi mantido. Então, há uma possibilidade de melhor acesso do Mercosul ao mercado de produtos agrícolas da UE, mas a liberalização não é tão grande quanto alguns setores esperam ou anunciam.
MS: Considerando o volume que a gente já exporta?
MC: Exato. Mas alguns segmentos ganham. Os produtores de carne bovina, por exemplo—não à toa, os produtores franceses estão muito reticentes, porque é um dos produtos em que se ampliou a cota e a tarifa. Arroz, por exemplo, é um produto que teve redução de cota e redução tarifária. Há situações diversas entre os produtos agrícolas.
MS: E em relação aos produtos industriais do Mercosul?
MC: Esse é o nosso maior problema, por uma série de questões. As tarifas para produtos industriais na Europa já são muito baixas: em geral, giram em torno de 5%, enquanto as nossas vão girar em torno de 13%. O que ganhamos de redução lá é muito menor, e eles já têm acordos comerciais com muitos outros países. A nossa margem de preferência é menor.
Além disso, há um problema de assimetria muito grande. Tanto em termos de competitividade quanto em relação ao tamanho dos setores industriais. Nós não temos competitividade para “invadir” os mercados europeus, o potencial de ganho deles com a liberalização é muito maior.
MS: A impressão geral das avaliações críticas ao acordo é que, no caso do Mercosul, o agronegócio se beneficiaria sobremaneira e a indústria sairia prejudicada. Mas, pelo que você está falando, o setor agrícola não necessariamente se beneficia tanto assim, com exceção de determinados produtos.
Diante disso, quais seriam as condições de implementação desse acordo para que a indústria sul-americana fosse beneficiada ou para que o impacto negativo da competição com a indústria europeia fosse mitigado?
MC: A liberalização comercial, tarifária, já está acordada e provavelmente será implementada. Quer dizer que, do ponto de vista comercial, existe pouco a fazer. O que precisamos fazer é, por um lado, incentivar a produtividade e a competitividade da indústria doméstica—e isso é um dever de casa nosso, de elaborar políticas industriais e de desenvolvimento produtivo, de usar as compras públicas de maneira estratégica, de implementar políticas tecnológicas—e, por outro, eventualmente empregar algumas ferramentas de ajuste presentes no próprio acordo, como o mecanismo de reequilíbrio. Nessa última versão do texto, foram adicionados determinados mecanismos destinados a corrigir eventuais “enxurradas” de produtos, entradas repentinas e abruptas de produtos em determinados setores. Os instrumentos específicos ainda não foram definidos, mas, pelo menos, o acordo prevê a possibilidade de ajustes.
No entanto, de qualquer maneira, haverá competição entre a nossa produção industrial e a europeia. O que podemos fazer é usar os instrumentos domésticos disponíveis para melhorar a competitividade da nossa produção e os mecanismos comerciais disponíveis, nacionais ou previstos no acordo.
MS: Ainda falando sobre competitividade, as tarifas aduaneiras, especialmente para países como os da América do Sul, são um importante instrumento de proteção e fortalecimento da indústria nacional. Um acordo comercial dessa natureza com a UE não mina os esforços de reindustrialização na região?
As empresas europeias têm superioridade tecnológica, produtiva, acesso a crédito mais favorável, mais incentivo estatal. As empresas brasileiras, por exemplo, entram nesse jogo com juros muito altos, crédito escasso, instabilidade cambial e deficiências logísticas e de infraestrutura. As tarifas poderiam compensar, ainda que parcialmente, a deficiência de competitividade da indústria brasileira e sul-americana. Não abrimos mão de um relevante instrumento de política industrial? Há um risco de que o acordo reforce o padrão de reprimarização da economia brasileira que se afirmou nas últimas décadas?
MC: Totalmente. O acordo faz isso no curto e no longo prazo. No curto, através dessa redução tarifária. Ainda que tenha se alongado um pouco o calendário de redução das tarifas para automóveis, particularmente para aqueles com novas tecnologias—o calendário de redução para veículos elétricos, por exemplo, pode chegar a 30 anos—, a versão atual não buscou rever a redução tarifária que havia sido prometida em 2019. Aabrimos mão de um instrumento que nos permitiria fortalecer a indústria doméstica em relação a um parceiro comercial forte, o que torna a tarefa da reindustrialização mais difícil.
Mas, para além das tarifas, são importantes outras disciplinas, como as compras públicas, as questões relacionadas à propriedade intelectual, etc. Essas outras questões têm mais a ver com estratégias de longo prazo. É uma vitória do Mercosul ter salvaguardado o instrumento de compras públicas. E vale a pena dizer que é uma marca do atual governo brasileiro, que bateu bastante nessa tecla. Agora passaremos a usar esse instrumento de maneira explícita, como fazem os países desenvolvidos. E ele é muito interessante, porque não só permite que o Estado incentive determinados setores através de margens de preferência e condicionalidades, mas também induza determinados comportamentos—por exemplo, uma exigência de que as compras públicas sejam sustentáveis faz com que as empresas que fornecem insumos para o Estado tenham condutas sustentáveis. E isso vale também em relação às empresas estrangeiras, não só às nacionais: se uma empresa de fora quiser virar fornecedora do Estado, pode-se exigir, por exemplo, que faça transferências tecnológicas.1
Já em relação à parte de propriedade intelectual, fico com a impressão de que não houve avanços ou reversões das tendências de 2019, que previam simplesmente compromissos um pouco mais fortes do que os já assumidos pelos países no âmbito da OMC.
Fazendo uma comparação com versões anteriores, parece que até 2013 ou 2014 havia uma visão estratégica do governo brasileiro nas negociações, marcada por uma perspectiva de desenvolvimento produtivo, de autonomia. Isso foi se revertendo até 2019. É possível que agora melhore um pouco, mas, ainda assim, uma série de elementos negociados a partir de pressupostos bastante liberais seguem presentes no texto. O capítulo comercial quase não foi tocado.
MS: Qual o possível efeito do acordo sobre as tentativas de reindustrialização no Brasil?
MC: A questão da reindustrialização, da tentativa de ter um desenvolvimento produtivo mais dinâmico tecnologicamente, autonomamente, é comprometida pela parte comercial do acordo. Algumas disciplinas—como as compras governamentais, por exemplo—e alguns mecanismos de salvaguarda e de reequilíbrio representam avanços em relação a 2019. Mas não são suficientes.
Alguns fatores importantes para o Brasil são o fato de que temos um mercado consumidor grande e somos uma plataforma de exportação para a América do Sul. Então, cabe aos governos brasileiros tentar impor algumas condicionalidades para compensar as perdas ao longo da vigência do acordo. O setor de minerais é exemplificativo. O governo pode ter ingerência sobre as condições de exploração de minerais em solo nacional. Há alguma margem de manobra para negociar com investidores: por exemplo, impondo que determinadas vantagens só podem ser exploradas se houver mais etapas de produção no país. Mas isso dependerá do manejo, aqui, dos instrumentos de política industrial, tecnológica, fiscal e tributária. E dependerá também das condições macroeconômicas, de crescimento, de taxas de juros, etc.
Além disso, é importante que o governo brasileiro compartilhe as vantagens que tem com os demais países do Mercosul. O problema desse acordo é que ele tende a reforçar uma especialização regressiva crescente que tem se aprofundado desde os anos 2000 no Brasil e na região. Se compararmos as exportações brasileiras para a UE em 2003, 2013 e 2023, fica clara a crescente primarização da pauta exportadora. E o acordo tende a reforçar a nossa especialização em produtos agrícolas e minerais.
Principais produtos exportados pelo Brasil para a União Europeia em 2003, 2013 e 2023
Posição
2003
2013
2023
1
Soja, mesmo triturada
Minérios de ferro e seus concentrados, incluídas as pirites de ferro ustuladas (cinzas de pirites)
Óleos brutos de petróleo ou de minerais betuminosos
2
Tortas e outros resíduos sólidos da extração do óleo de soja
Tortas e outros resíduos sólidos da extração do óleo de soja
Tortas e outros resíduos sólidos da extração do óleo de soja
3
Minérios de ferro e seus concentrados, incluídas as pirites de ferro ustuladas (cinzas de pirites)
Soja, mesmo triturada
Café, mesmo torrado ou descafeinado; cascas e películas de café; sucedâneos do café contendo café em qualquer proporção
4
Sumos de frutas (incluídos os mostos de uvas) ou de produtos hortícolas, não fermentados, sem adição de álcool, com ou sem adição de açúcar ou de outros edulcorantes
Café, mesmo torrado ou descafeinado; cascas e películas de café; sucedâneos do café contendo café em qualquer proporção
Soja, mesmo triturada
5
Café, mesmo torrado ou descafeinado; cascas e películas de café; sucedâneos do café contendo café em qualquer proporção
Pastas químicas de madeira, à soda ou ao sulfato, exceto pastas para dissolução
Minérios de cobre e seus concentrados
6
Pastas químicas de madeira, à soda ou ao sulfato, exceto pastas para dissolução
Óleos de petróleo ou de minerais betuminosos, exceto óleos brutos; preparações não especificadas nem compreendidas noutras posições, contendo, em peso, 70% ou mais de óleos de petróleo ou de minerais betuminosos, os quais devem constituir o seu elemento
Minérios de ferro e seus concentrados, incluídas as pirites de ferro ustuladas (cinzas de pirites)
7
Carnes e miudezas comestíveis, frescas, refrigeradas ou congeladas, das aves da posição 0105
Óleos brutos de petróleo ou de minerais betuminosos
Pastas químicas de madeira, à soda ou ao sulfato, exceto pastas para dissolução
8
Alumínio em formas brutas
Sumos de frutas (incluídos os mostos de uvas) ou de produtos hortícolas, não fermentados, sem adição de álcool, com ou sem adição de açúcar ou de outros edulcorantes
Sumos de frutas (incluídos os mostos de uvas) ou de produtos hortícolas, não fermentados, sem adição de álcool, com ou sem adição de açúcar ou de outros edulcorantes
9
Óleos brutos de petróleo ou de minerais betuminosos
Tabaco não manufaturado; desperdícios de tabaco
Óleos de petróleo ou de minerais betuminosos, exceto óleos brutos; preparações não especificadas nem compreendidas noutras posições, contendo, em peso, 70% ou mais de óleos de petróleo ou de minerais betuminosos, os quais devem constituir o seu elemento
10
Tabaco não manufaturado; desperdícios de tabaco
Minérios de cobre e seus concentrados
Ferro-ligas
Elaboração: GIC-IE/UFRJ com dados da SECEX.
Por isso, é importante que haja um fortalecimento da articulação industrial regional no Mercosul. Ainda que haja dificuldades políticas evidentes, em alguns setores, há uma boa articulação que não só não pode ser perdida, mas deve ser reforçada, inclusive por meio dos mecanismos de compras públicas, ou de fundos regionais, para que o bloco entre nessa “parceria” com a UE de forma mais coesa. O governo uruguaio, por exemplo, está super contente com o acordo—até porque o governo liberal que participou das negociações2 via com bons olhos a especialização. Eles exportam carne e o setor deles não enfrenta os problemas ambientais que marcam a produção brasileira na Amazônia e no Cerrado. Então, se o Brasil quiser tirar benefícios do acordo, é desejável que se articule com seus vizinhos e crie estratégias que possam transferir parte dos ganhos, de forma a favorecer alianças com esses países e incentivar a produção industrial do bloco.
MS: A posição oficial do governo brasileiro é de que o acordo traz uma série de vantagens para o Mercosul. Entre elas, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços destaca um maior acesso ao mercado europeu—o que também atrairia mais investimentos diretos estrangeiros—, a queda do custo doméstico de insumos e bens de capital para a indústria—já que poderíamos importá-los sem tarifas—, o aumento da competitividade dos nossos produtos no mercado internacional, fortalecendo a diversificação de parcerias comerciais, a modernização da indústria, a integração com as cadeias produtivas da UE e o interesse de outros atores em firmar novos acordos com o Mercosul para ter acesso a esse mercado. Como você vê essa defesa?
MC: Esse é um argumento muito antigo sobre a liberalização comercial. É o mesmo argumento usado nos anos 1990, de que podemos importar para exportar, de que liberalizar as importações pode trazer ganhos de produtividade em razão da importação de insumos e bens de capital mais baratos, fazendo com que a indústria doméstica ganhe competitividade e com que o país se torne exportador de produtos industrializados. O que aconteceu de lá para cá é que o Brasil e a região foram progressivamente se tornando exportadores de bens menos sofisticados. Ou seja, desde que fizemos um importante experimento de liberalização na década de 1990, não temos evidências dos efeitos positivos de uma abertura comercial sobre as exportações.
Não acredito que agora observaremos um grande círculo virtuoso de crescimento da economia brasileira, impulsionado pelos investimentos diretos ou pelo ganho de competitividade das exportações brasileiras em razão de maior acesso a insumos europeus, especialmente no cenário atual. Vamos participar das cadeias europeias de valor? Não. A Europa já tem suas cadeias formadas e está tentando se proteger da entrada dos chineses e de outros países asiáticos, está tentando consolidar as cadeias, o quanto for possível, dentro do espaço europeu. O que faremos é nos especializar ainda mais em fornecer matérias-primas para essas cadeias. O investimento estrangeiro que podemos receber é relacionado às empresas que vêm para cá aproveitar de alguns fatores que temos internamente, como os recursos naturais e significativo mercado consumidor regional. Mas isso não implica uma modernização da indústria e uma integração com cadeias produtivas europeias automaticamente.
Comentários desativados em Descolonizando a Jamaica
As ideias do líder político jamaicano Michael Manley tiveram um impacto global que persiste até hoje. À frente do Partido Nacional Popular (PNP) de 1969 a 1992, e especialmente durante seu primeiro mandato como primeiro-ministro da Jamaica, de 1972 a 1980, Manley promoveu um grande conjunto de reformas ambiciosas, fortemente baseadas em ideias de socialismo democrático e economia decolonial. Ele reconhecia que a Jamaica, como muitos outros países, havia conquistado a independência constitucional, mas seguia atada a uma economia global estruturada por legados coloniais. Essas ideias direcionaram sua agenda internacionalista.
Ao lado de outros líderes, como Julius Nyerere da Tanzânia, Manley foi um dos principais porta-vozes da Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI) nos anos 1970—um conjunto de propostas baseadas em princípios de igualdade e cooperação entre países do Sul global. Apesar do sucesso na implementação de diversas reformas, as políticas de Manley enfrentaram forte oposição tanto de grupos jamaicanos quanto de atores internacionais—com destaque para os Estados Unidos. Seu governo passou por enormes dificuldades frente à conjuntura econômica da década de 1970, sendo derrotado nas eleições de 1980 após anos de medidas de austeridade promovidas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).
Anthony Bogues é professor Asa Messer de humanidades e estudos africanos na Universidade Brown e tem extensa produção sobre a história e o pensamento político, intelectual, cultural e literário da África e do Caribe. No final dos anos 1980, foi conselheiro de Manley. Mais recentemente, Bogues tem se empenhado em apoiar os esforços para repensar a visão política do Partido Nacional Popular.
Na seguinte entrevista, Bogues reflete sobre a vida e o legado de Michael Manley, cujo centenário de nascimento foi celebrado em dezembro passado. Considerando a influência de Manley tanto na política jamaicana quanto na política internacionalista, a conversa trata de sua formação política no movimento trabalhista da Jamaica, seus ambiciosos projetos para descolonizar a economia jamaicana e sua atuação no cenário global—que incluiu questões como o embargo econômico dos EUA sobre Cuba e as diretivas do FMI. Bogues discute a herança geracional de repensar a visão filosófica do socialismo democrático na Jamaica, expressando sua esperança de um Caribe unido.
Uma entrevista com o professor Anthony Bogues
WILL KENDALL: Você pode nos contar mais sobre sua relação com Michael Manley? Como vocês se conheceram? E como essa relação se desenvolveu?
ANTHONY BOGUES: Eu o conheci após a eleição de 1980, um momento crítico na história da Jamaica. Aquele ano marcou um período de crise política e grande violência—mais de 800 pessoas morreram entre o início do ano e a eleição em outubro. Eu era um jornalista de esquerda que, desde o final dos anos 1970, trabalhava na Jamaican Broadcasting Corporation. A eleição ocorreu em outubro e, dada a vitória do partido conservador, o Partido Trabalhista da Jamaica (JLP – Jamaica Labour Party), fui demitido em dezembro. Durante a campanha, eu e outros jornalistas sofremos ameaças dos conservadores, que diziam que nunca mais trabalharíamos na Jamaica.
Depois da minha demissão, considerei cursar o doutorado. Porém, fui abordado por dois membros importantes do PNP, o então secretário geral do partido, DK Duncan, e a hoje ex-esposa de Michael Manley, Beverley Manley, que me convidaram para trabalhar no partido como pesquisador. Eu aceitei o convite, e essa decisão me levou a trabalhar para o secretariado do partido: virei secretário da Comissão de Educação Política do PNP. Foi assim que conheci Michael Manley, de quem me aproximei muito nos anos seguintes. Quando se tornou primeiro-ministro, em 1989, Manley me convidou para ir à Jamaica House—o referente jamaicano da 10 Downing Street britânica. Eu ainda queria fazer um doutorado, mas acabei aceitando a proposta. Trabalhei com ele como assistente especial e o que hoje em dia chamamos de chefe de gabinete.
Nos viajávamos muito a trabalho. Certa vez, Manley precisava visitar a Casa Branca. Geralmente, o primeiro-ministro seria acompanhado pelo ministro de relações exteriores, mas ele queria que eu estivesse presente na reunião privada com o presidente Bush pai no Salão Oval. Quando a reunião começou, entendi o motivo. Havia três itens na agenda: o primeiro era a questão das drogas, que estava começando a criar problemas sérios para muitos Estados caribenhos. O segundo era a dívida multilateral da Jamaica e da região. E o terceiro ponto na agenda tratava do embargo a Cuba. O plano era que o primeiro-ministro Manley conversasse com Fidel Castro. Depois, o ex-presidente Carter visitaria Cuba para avançar nas negociações. Desse modo, a Casa Branca permaneceria afastada do problema até que estivesse claro que as conversas haviam atingido certo ponto. A única condição estadunidense era de que Cuba libertasse um grupo de prisioneiros políticos.
Depois da reunião, fomos para Cuba e conversamos com Fidel, que nos disse prontamente: “não temos nenhum prisioneiro político.” Quando transmitimos essa informação a Brent Scowcroft, Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, a negociação caiu por terra. Era nesse tipo de coisa em que Michael e eu estávamos envolvidos, e essa foi a base da nossa relação. Mantivemo-nos próximos por bastante tempo após ele deixar o cargo. Quando faleceu, eu estava cursando meu pós-doutorado na Universidade Howard, nos EUA, e retornei imediatamente para ajudar a organizar seu funeral.
WK: Você pode descrever o ambiente social e político no qual Michael Manley cresceu? Por um lado, há contextos de raça e classe na Jamaica, como o “classicismo de cor” das classes proprietárias; por outro, há o “sindicalismo político” do movimento trabalhista e sua relação com os dois partidos de massas.
AB: Michael nasceu em 1924, quando a Jamaica ainda estava sob domínio do colonialismo britânico. Nascido em uma família de classe média alta, seu pai era um dos advogados mais importantes de todo o Caribe. Sua mãe, nascida no Reino Unido, se tornou uma artista amplamente reconhecida e foi muito importante para a comunidade artística jamaicana. Ambos viveram suas vidas de acordo com uma forte ética voltada ao serviço público. Edna Manley era conhecida por desafiar a representação distorcida da população negra das colônias, sendo que um de seus trabalhos mais importantes foi intitulado Negro Aroused. Já Norman Manley, para além de sua lista de clientes poderosos, serviu ativamente à população trabalhadora. Morando em Londres enquanto bolsista do programa de estudos Rhodes, Norman também desenvolveu visões ligadas ao socialismo fabiano ou fabianismo.
Em 1938, protestos trabalhistas eclodiram por todo o país e o Caribe. As greves incitaram a reflexão do governo colonial britânico sobre como o império lidaria com o movimento sindicalista emergente. Antes de 1938, existia no Caribe a Associação Universal para o Progresso Negro (Universal Negro Improvement Association), fundada por Marcus Garvey. Esse é um fato importante, já que muitos “garveyanos” posteriormente se juntaram ao Partido Nacional Popular (PNP). Depois das manifestações trabalhistas dos anos 1930, passamos a ter o sindicato Bustamante Industrial Trade Union (BITU) e o PNP liderado por Norman Manley—um movimento trabalhista organizado e um movimento nacionalista anticolonial. Essa era a configuração política da época.
Eu defendo que o PNP era um movimento anticolonial de massas que se transformou em um partido político em 1944, com a conquista do sufrágio universal adulto. O BITU foi um movimento sindical de massas ligado a Bustamante, que originalmente era membro do PNP. Depois de ser preso por suas atividades sindicais, ele foi libertado e deixou o partido, formando o Partido Trabalhista da Jamaica (JLP) em 1943. Como o movimento sindical estava associado ao partido trabalhista, quando Bustamante deixa o PNP, Norman Manley e outros líderes do partido formam a aliança sindical Trade Union Congress como forma de enfrentar o BITU. Assim, nos anos 1940, ambos ospartidos estavam fundamentados em atividades ligadas à classe trabalhadora organizada. Seguindo os rótulos convencionais, pode-se dizer que o JLP é um partido de centro-direita, enquanto o PNP é de centro-esquerda. Porém, é importante notar que ambos partidos se engajaram no estabelecimento de uma relação com movimentos de massa que hoje não existe mais.
O PNP também tinha ligações próximas com o Partido Trabalhista do Reino Unido e com o Socialismo Fabiano. Stafford Cripps, ex-ministro do Tesouro britânico com tendências políticas de esquerda, estava presente na conferência inaugural do PNP. Assim, apesar de o objetivo principal do partido, desde a sua criação, ter sido a independência política, o PNP também tinha uma base socialista.
Michael cresceu nesse ambiente, chegando em casa e ouvindo os argumentos políticos de seu pai. Tanto ele quanto sua mãe estavam ativamente envolvidos com a vida pública. Michael frequentou a mesma escola colonial de elite que o pai, a Jamaica College, depois estudou brevemente em McGill, no Canadá, e então se mudou para Londres. Na London School of Economics (LSE), sua principal influência foi o socialista inglês Harold Laski, que posteriormente viria a ser presidente do Partido Trabalhista do Reino Unido. Inicialmente, sob influência de sua mãe, Michael tinha interesse em estudar o universo dos críticos de arte. Porém, assim que concluiu os requisitos obrigatórios de latim, acabou optando por um bacharelado em ciência política e governamental.
O socialismo de Laski, à esquerda do Partido Trabalhista da época, influenciou grandemente o pensamento de Manley. Outras influências vieram de um grupo estudantil da Universidade das Índias Ocidentais—West Indian Students Union, que incluía figuras como Errol Barrow, que posteriormente se tornou primeiro-ministro de Barbados, e G. Arthur Brown, que se tornaria diretor do Banco da Jamaica. A extraordinária historiadora de Guiana, Elsa Goveia, que seria a primeira professora de história das Índias Ocidentais na Universidade das Índias Ocidentais, também participava do grupo.
Essa era uma geração diferente da que havia ido à Londres nos anos 1920 e 1930, formada por personalidades como CLR James, George Padmore, Amy Ashwood Garvey e o jogador de críquete Learie Constantine. Era uma geração explicitamente anticolonial que se reuniu em Londres durante os anos 1940 e 1950, formada principalmente por estudantes. Também se tratava de uma geração federalista, composta por pessoas que se consideravam não apenas participantes da vida política de Guiana, Barbados e Jamaica, mas também proponentes de uma Federação do Caribe Anglófono.
Quando Michael retornou à Jamaica no final de 1940, decidiu seguir a carreira de jornalista político. Inicialmente, trabalhou para o jornal Public Opinion, assinando a notável coluna “Root of the Matter” (“a raiz do problema”). Politicamente, se tornou um membro ordinário do PNP, mas quando o partido se fragmentou, em 1952, começou a assumir um papel mais ativo. Essa fragmentação ocorreu em razão das crescentes pressões da Guerra Fria. Na Jamaica, durante o período de agitações anticoloniais do século XX, marxistas alinhados ao regime soviético e liderados por Richard Hart e outras figuras da esquerda radical, como Ken Hill, se tornaram muito influentes—tanto dentro do PNP quanto no movimento operário e sindical. Preocupados, os membros de direita do partido buscaram formas de afastar os marxistas. Na conferência partidária de 1952, conseguiram expulsá-los do PNP.
Depois da divisão, Michael fez parte de uma campanha interna que pretendia articular a diferença entre o comunismo e o socialismo democrático. Nesse processo, fortaleceu suas ideias políticas ao frequentar centenas de reuniões de diferentes grupos do PNP e ao ouvir e participar de debates entre os membros. Até esse momento, Michael era um jornalista e uma figura secundária dentro do partido. Porém, sua subsequente participação no movimento trabalhista foi provavelmente a experiência mais formativa que teve. Ele foi apresentado ao movimento operário por meio de um convite para observar as negociações encaminhadas por um líder sindical e membro do PNP. Dizem que o líder saiu repentinamente da reunião de negociação, deixando Michael sob a responsabilidade de dar seguimento à discussão. Ouvir a lista de reivindicações dos trabalhadores nessa ocasião fez de Michael um sindicalista. Ao atuar nas regiões de produção açucareira e de bauxita, esteve em contato com a classe trabalhadora organizada, transformando-se no político que conhecemos.
Neil warner: Depois de Manley se tornar primeiro-ministro, seu programa de reformas políticas e econômicas em nome de uma “terceira via” contrastava com os modelos de Porto Rico (com foco na atração de investimentos externos) e de Cuba (baseado no marxismo-leninismo e no planejamento central). Como você descreveria essa abordagem? E quais reformas você diria que foram as mais importantes e bem-sucedidas?
AB: Depois da conquista da independência em 1962, a sociedade jamaicana não foi descolonizada em nenhum aspecto substantivo. As plantations ainda eram extremamente poderosas. As hierarquias de raça e classe permaneceram intactas. A ordem social dominante estava construída sobre a opressão do povo negro.
Consequentemente, a descolonização se manteve como um dos pilares da política de Manley nos anos 1970. Mas não era possível alcançar o sonho decolonial sem levantar questões fundamentais sobre igualdade, justiça e a estrutura da economia nacional. Em seu primeiro livro, The Politics ofChange, Manley elabora ideias para transformar a estrutura colonial da sociedade jamaicana. Elas envolviam a derrubada da legislação colonial, como a Lei dos Mestres e Servos (Master Servant law), a criação de programas públicos, como educação gratuita e a inserção de cidadãos negros comuns no centro da sociedade jamaicana. Assim, em sua prática política, Michael buscou desmantelar os legados da antiga ordem colonial.
Trata-se de um período de reorganização econômica na Jamaica. O açúcar representava uma das indústrias mais importantes da sociedade local e, no processo de descolonização, existia um pertinente questionamento: esses trabalhadores, cujos antepassados foram escravizados, poderiam participar da reformulação da organização e operação dessa indústria? Essa era uma questão tanto histórica quanto política, dado o passado da ilha enquanto colônia escravista produtora de açúcar. Ao final dos anos 1970, eu e outros membros visitamos a região açucareira de Westmoreland a fim de ajudar a designar a terra aos trabalhadores para que pudesse funcionar como uma cooperativa. Esse foi apenas um dos programas que Michael instituiu. Outro projeto tratava da alfabetização. Como resultado do colonialismo britânico, quase 80% da população jamaicana era analfabeta. Na época, pessoas jovens como eu estavam profundamente envolvidas nesses programas.
Em suas negociações com corporações produtoras de bauxita, Michael decidiu pleitear taxas mais altas de compensação ao invés da estatização. Por se tratar de uma indústria extrativista, a bauxita é finita, então fazia sentido garantir as melhores condições possíveis durante aquele período de extração. Então, resumidamente, eu diria que as reformas de Manley nos anos 1970 seguiam um programa de descolonização total.
Todas essas reformas deixaram os membros da elite nacional jamaicana bastante desconfortáveis. Nos anos 1980, a oposição da elite e das multinacionais já estava cristalizada. Documentos da Agência de Segurança Nacional dos EUA recentemente descobertos demonstram que os Estados Unidos também estavam preocupados, e que agiram sobre essas preocupações—lembrando que este era um período marcante da Guerra Fria. Michael ainda apoiou Cuba e sua intervenção em Angola junto com o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Na época, o MPLA lutava contra a expansão sul-africana, que não apenas ampliaria o regime do apartheid, mas também enfraqueceria o movimento anti-apartheid. Todas essas situações ocorreram conjuntamente nos anos 1980.
Nw: Esse ano marca o quinquagésimo aniversário da declaração da Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI), um programa liderado por países do Sul global para reestruturar as regras do sistema econômico e pôr fim ao colonialismo e à dependência econômica. Manley é conhecido como um dos defensores mais importantes da NOEI. Você poderia falar um pouco sobre o papel dele nesse projeto?
AB: Manley percebeu que ainda que países como a Jamaica tivessem conquistado a independência constitucional, seguiam sujeitos a uma economia global estruturada sobre o colonialismo—o que pessoas como Kwame Nkrumah chamariam de “neocolonialismo”. Para transformar a economia internacional, era preciso alterar os mecanismos de determinação de preços e conquistar as independências energética e tecnológica. Nós cultivamos as commodities, mas não definimos seus preços e dependemos da importação de máquinas e petróleo para processá-las. Uma vez que Manley estava profundamente investido na democracia política e econômica, também se preocupou com a ascensão das corporações multinacionais.
Esses problemas só poderiam ser resolvidos através do que Julius Nyerere na Tanzânia e outros líderes chamaram de Trade Union of the Poor (“sindicato dos pobres”). Uma nova ordem econômica mundial estava no centro da NOEI. Elaborada em 1979 em Arusha, na Tanzânia, a ideia se baseava na necessidade “de completar a liberação dos países do Terceiro Mundo da dominação externa”. Esses países, portanto, deveriam se unir para ter voz na estrutura e nas operações da economia mundial. Julius Nyerere e Michael Manley eram uma dupla importante desse movimento. Ambos cresceram em antigas colônias britânicas, mas também compartilhavam a noção de que a ascensão de uma elite doméstica que reproduziria as antigas regras coloniais era uma ameaça concreta às sociedades pós-coloniais. Nyerere desenvolveu a Declaração de Arusha, que pretendia frear o poder das novas elites e sua capacidade de corromper o Estado. Michael não chegou tão longe, já que estava operando em uma cultura política diferente. Mas suas ideias decoloniais e socialistas envolviam a limitação do poder da elite para alavancar os interesses do Estado.
A NOEI recebeu o apoio de Willy Brandt e de outros membros da Internacional Socialista. James Callaghan, então primeiro-ministro do Reino Unido, acabou se juntando à iniciativa. Assim, surgiu uma campanha internacional para fazer o mundo repensar as estruturas da economia global e alterá-las de modo que beneficiasse os países recém-independentes. Portanto, não era exatamente igual ao Movimento dos Países Não Alinhados, que era mais um movimento político do que econômico. O Movimento dos Países Não Alinhados foi transformado por Nyerere e Manley em um projeto robusto que desafiava tanto as estruturas políticas quanto econômicas do mundo na época.
WK: Você citou o trauma das duas derrotas no Caribe—o fracasso da eleição de Michael Manley em 1980 e o insucesso da revolução de Granada em 1983. Essas foram derrotas políticas, ideológicas e militares. Manley foi primeiro-ministro da Jamaica pela última vez entre 1989 e 1992. Nesse mandato, seu governo parecia estar mais conciliado com o capitalismo. O que ele pensava sobre essa mudança?
AB: Os problemas que a Jamaica enfrentou com o FMI eram globais. Uma análise sofisticada deles foi publicada pela revista Development Dialogue, em uma edição especial coordenada por jamaicanos e tanzanianos. Dentro do PNP também existia um grande debate sobre a atuação do FMI. O Fundo foi uma das principais entidades empenhadas em garantir que Manley perdesse a eleição. Seus programas de ajuste estrutural foram muito duros e explicitamente exigiam a revogação das reformas que Michael havia iniciado. Esse cenário, combinado com a oscilação de preços do petróleo, a desestabilização política e o aumento da violência, contribuiu para sua derrota.
Vamos pensar nos anos 1980. Havia três figuras-chave no mundo durante essa década: Margaret Thatcher, Helmut Kohl e Ronald Reagan. Eles estavam unidos pela intenção de acabar com qualquer movimento progressista nacional e internacional—seja a greve dos mineiros, a NOEI, ou os grupos anti-apartheid. Esses três indivíduos tinham uma visão ideológica do que a sociedade deveria ser. Para citar Maggie Thatcher, “não existe sociedade, só existem indivíduos.” Stuart Hall caracterizou esse momento como uma revolução nas ideias e práticas sociais.
Depois da derrota eleitoral de Manley em 1980, Reagan convocou uma reunião em Cancún no ano de 1981. Julius Nyerere compareceu como representante dos argumentos da NOEI, mas, quando chegaram nessa parte da agenda, Ronald Reagan disse: “próximo item”. Ninguém contestou a decisão, e Manley começou a perceber que o mundo tinha se transformado dramaticamente. Mas ele ainda era um político, e tinha que levar seu partido à vitória.
Tivemos inúmeras conversas durante esse período. A forma com que ele colocava a questão para mim era de que, como disse Hamlet, “o tempo estava desarticulado” para pessoas como ele. Em sua visão, enquanto uma ilha de 2,5 milhões de pessoas, não seríamos capazes de enfrentar sozinhos essa correnteza. Então, a nova questão não era abandonar todas as esperanças de transformação, mas entender como poderíamos amenizar os piores efeitos da expansão do mercado. Gostaria de enfatizar que essa não foi uma trajetória que ele adotou com entusiasmo, mas era o único caminho que ele via como realista.
Há muitas histórias não publicadas sobre esse período. Vou narrar apenas uma. Quando o PNP assumiu o governo em 1989, uma das primeiras coisas que Manley fez foi visitar todos os países da Internacional Socialista. Ao se reunir com Felipe González na Espanha, Michael comentou que estávamos com um problema gravíssimo de câmbio e não queríamos recorrer ao FMI: “você poderia nos ajudar?”. Gonzalez respondeu: “converse com o nosso ministro das finanças”. Todos eles fizeram isso, deixavam nas mãos do ministério das finanças porque não podiam dizer sim. E todos os ministros das finanças nos perguntavam se tínhamos um acordo em vigor com o FMI.
Manley me enviou ao Banco Interamericano de Desenvolvimento para negociar um acordo menos oneroso. Existiam algumas figuras latino-americanas na agência multilateral, inclusive um jamaicano que ocupava um cargo importante no banco. Eu fui até Washington para tomar um café com eles e a primeira coisa que me disseram foi que precisávamos privatizar a Jamaica State Trading Corporation (Corporação Estatal de Comércio da Jamaica), companhia estatal que percorria o mundo em busca de medicamentos baratos para comprar e entregar aos hospitais públicos. Para argumentar contra a privatização, mencionei que se levássemos essa questão ao parlamento, o público se voltaria contra a intervenção em nossa soberania nacional. E sabe o que eles responderam? Que “como um país devedor, vocês não têm soberania”. Eu deixei meus talheres na mesa, saí da reunião e informei ao primeiro-ministro que isso não daria certo.
Manley adoeceu e se aposentou, eu concluí meu doutorado, e seguimos com nossas discussões regulares. Conforme foi ficando mais velho, se tornou cada vez mais convicto de que a esquerda democrática (essa é uma citação dele próprio) precisava reivindicar uma contra-narrativa que desafiasse dogma neoliberal. Até começamos a trabalhar conjuntamente em um livro sobre a necessidade de um tipo distinto de democracia e sobre qual seria a base filosófica e ideológica de uma esquerda democrática moderna. Mas com o agravamento da sua doença, o projeto foi abandonado. Para ser sincero, eu senti que não deveria seguir adiante sem ele.
WK: Recentemente, você liderou a comissão que desenvolveu uma reformulação da visão filosófica do PNP. O que esteve por trás dessa reflexão e como foi sua experiência? Como você pensa a questão da soberania hoje em dia?
AB: Quando Michael Manley se aposentou, pessoas como eu começaram a perceber que o partido havia perdido sua visão e ambição, e começamos a nos afastar. Mas alguns anos atrás, fui convidado por membros da nova liderança a ajudá-los a ressuscitar a identidade filosófica do partido. Aceitei por dois motivos: o primeiro, como declarei publicamente, era que Michael havia deixado claro em nossas discussões que era responsabilidade da minha geração recolocar ideias progressistas e democráticas na agenda política. Em segundo lugar, eu senti que nós, da esquerda, precisávamos fazer o trabalho que Manley e eu havíamos começado a discutir antes de sua morte. Essa foi uma oportunidade de trabalhar com um grupo de camaradas e articular nossa posição.
Para realizar esse projeto, segui um modelo de política democrático. Passei muito tempo em diferentes distritos eleitorais. Viajava entre os EUA e a Jamaica, fazendo pesquisas, entrevistando pessoas—e realmente ouvindo o que elas tinham a dizer. Após a conclusão desse processo, no ano passado, redigimos nossas impressões e produzimos um documento intitulado “Where we Stand” (“em que pé estamos”), que foi aprovado pelo partido. Em seguida, nos dedicamos a traduzir esses princípios em políticas econômicas. Na conferência anual de setembro passado, recebemos 602 recomendações de delegados partidários sobre como reestruturar a economia jamaicana. Eu ainda não posso compartilhar o conteúdo, mas acho que é seguro dizer que há uma base para o processo de transformação social na Jamaica. A ver se teremos sucesso.
A pauta da soberania segue importante. Relembro o escritor e romancista caribenho George Lamming, que defendia que a soberania é uma questão central para nós no Caribe. Na minha opinião, a única soberania real que podemos ter no Caribe é um Caribe unido. Refiro-me a todo o Caribe—anglófono, francófono, hispânico, neerlandês, etc. Essa união caribenha deve surgir primeiro na imaginação, através da crença de que não somos subjugados por forças externas, sejam elas políticas ou econômicas. Precisamos imaginar as coisas para além de como são apresentadas. E devemos estar unidos nisso, porque a estrutura da economia global não permite a soberania individual no sentido econômico. A questão da soberania começa, então, com um horizonte político. Ela exigirá que o Caribe desenvolva uma série de empreendimentos econômicos conjuntos e construa capacidade de intervir na política em nível global. Isso implica configurar novas relações e alianças globais fora da política das grandes potências. Ainda há superpotências que dominam o mundo, mas, dadas as múltiplas crises atuais, novas formas são necessárias. Acho que esse é um dos legados contemporâneos de Michael Manley.
Comentários desativados em A questão da normalização e o futuro do Oriente Médio
Até 7 de outubro de 2023, a normalização diplomática e econômica entre Israel e os Estados árabes parecia ser a principal tendência política do Oriente Médio. Sepultadas as perspectivas de um acordo com o Irã, esse caminho representava a realização dos planos estadunidenses para a região, resultantes de um consenso bipartidário costurado por Donald Trump com os Acordos de Abraão e levado adiante pelo governo Biden. Isso estava na ordem do dia também para a Arábia Saudita, que atuava para diminuir as tensões com o Irã e, ao mesmo tempo, normalizar as relações com Israel. Todos os sinais pareciam autorizar a bem-humorada declaração do Conselheiro de Segurança Nacional Jake Sullivan na semana anterior à incursão do Hamas no sul de Israel: “nas últimas duas décadas, o Oriente Médio nunca esteve tão tranquilo”.
Não é de se estranhar, portanto, que o 7 de outubro tenha imediatamente suscitado especulações de que o real objetivo do Hamas seria impedir que a Arábia Saudita se juntasse aos seus vizinhos do Golfo, os Emirados Árabes Unidos e o Barém, na restrita lista de Estados árabes que normalizaram suas relações com Israel. Nisso, o Hamas certamente foi bem-sucedido: embora o governo Biden tenha trabalhado para aproximar sauditas e israelenses durante todo o genocídio em Gaza, nos últimos meses, o príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman declarou ao Conselho Shura e o ministro das Relações Exteriores Faisal Bin Farhan disse ao Financial Times que a condição para a normalização seria o estabelecimento de um Estado palestino independente.
Mais recentemente, entretanto, um ataque militar generalizado à esfera de influência do Irã, encabeçado pelos Estados Unidos e por Israel, parece ter sabotado os caminhos para a normalização. Com a queda do regime de Assad, o caminho diplomático do novo governo—um alinhamento às potências do Golfo ou uma escalada do confronto com Israel, que invade o território sírio—indicará a força do programa de normalização. Muito dependerá da abordagem do segundo governo Trump em relação a Israel e à região, que pode incluir um retorno dos arquitetos dos Acordos de Abraão aos círculos de poder estadunidense.
Para entender o papel específico dos países do Golfo no Oriente Médio, sua relação com a questão palestina e o histórico da questão da normalização, conversamos com Elham Fakhro, pesquisador da Middle East Initiative da Harvard Kennedy School e autor do livro The Abraham Accords.
Entrevista com Elham Fakhro
Jack gross: Vamos começar com os Acordos de Abraão, assinados em setembro de 2020. Quais foram os atores envolvidos?
Elham fakhro: O círculo próximo de Trump é muito pró-Israel. David Friedman, por exemplo, que se tornou embaixador em Israel, já era advogado de Trump antes de ele se candidatar à presidência. Depois do anúncio da candidatura, Friedman pressionou para se tornar conselheiro de Trump e acabou conseguindo a posição. Desde o início, foi ele quem moldou a plataforma da campanha do republicano sobre Israel e Palestina, e foi ele também o responsável pela retirada do apoio do Partido Republicano a uma solução de dois Estados, insistindo que a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA, na sigla em inglês) estava corrompida pelo antissemitismo. Vale notar que, na época, ele dirigia uma organização que arrecadava fundos para os assentamentos israelenses.
Há também, é claro, Jared Kushner, cuja família é amiga do primeiro-ministro Netanyahu (há uma história bastante contada de que, certa vez, quando era adolescente, Kushner foi expulso de seu quarto porque Netanyahu ficaria hospedado em sua casa). Durante o governo Trump, Mike Pompeo tornou-se o primeiro Secretário de Estado em exercício a visitar um assentamento israelense. Tanto ele quanto Friedman falam sobre o conflito em termos religiosos. Friedman declarou abertamente que crê que Trump foi enviado por Deus para salvar o Estado de Israel.
Inicialmente, Trump foi aconselhado de que era inútil trazer os palestinos para a mesa de negociações de paz. Em seguida, foi pressinado a adotar uma série de políticas fortemente pró-Israel: transferir a embaixada para Jerusalém e revogar o memorando Hansell, de 1978 que declara a posição governo dos Estados Unidos de que os assentamentos israelenses são ilegais. Se lermos a biografia de Friedman, fica evidente que foi ele quem trabalhou com Netanyahu para influenciar a política estadunidense, e não o contrário. Ele ainda convenceu o presidente a cortar a ajuda à UNRWA, outro item da lista de desejos do primeiro-ministro de Israel.
Tudo isso levou a um boicote por parte dos líderes palestinos e à declaração do primeiro-ministro da Autoridade Palestina, Mohammad Shtayyeh, de que “os direitos do povo palestino não estão à venda”. Depois disso, Kushner ainda tentou elaborar um plano para resolver a situação da ocupação, mas isso foi adiado por conta da candidatura de Netanyahu à reeleição. Durante o verão de 2019, Trump lançou o componente econômico de um novo plano de paz e prosperidade em Manama sem a presença de palestinos. Por fim, o governo estadunidense decidiu excluir também os israelenses e, em vez deles, atraiu, pela primeira vez, os Estados do Golfo para atuarem como intermediários nessa iniciativa diplomática.
A jogada representou uma nova estratégia de alinhamento geopolítico. Por exemplo, durante o evento de lançamento das medidas econômicas do plano de paz em Manana, falou-se muito sobre como o extremismo iraniano constituía uma verdadeira ameaça na região. Foi uma grande oportunidade para os líderes do Barém expressarem sua forte concordância com a visão do governo Trump. A Casa Branca tentou também fazer com que os países do Golfo participassem do financiamento do plano proposto.
jg: Quais foram as etapas que levaram à apresentação e à assinatura desse plano final em Washington? O que o plano diz sobre a questão do Estado palestino?
ef: Logo depois da reunião em Manana, Netanyahu e Benny Gantz foram a Washington para o lançamento da parte política do plano: troca de terras com os palestinos e, em contrapartida, permissão para Israel anexar efetivamente um terço da Cisjordânia. Como compensação, foram oferecidas terras no Sinai, que seriam ligadas a outros territórios palestinos por uma ferrovia de alta velocidade, presumivelmente financiada por capital do Golfo. Mas não havia garantia de um Estado palestino.
Em vez de um Estado, os palestinos receberam uma oferta de congelamento da construção de assentamentos durante alguns anos, período durante o qual poderiam decidir se queriam ou não prosseguir com as negociações. Não havia menção ao direito de regresso. O plano foi evidentemente rejeitado pelos dirigentes palestinos. No dia desse anúncio, Netanyahu declarou abertamente suas intenções de anexar a Cisjordânia. Isso causou surpresa e frustração nos funcionários da administração Trump que não apoiavam a anexação unilateral.
O pessoal de Trump estava dividido entre os partidários de Friedman, que concordavam com a posição de Netanyahu, e figuras como Kushner, que queriam uma versão menos extrema de anexação. Trump também ficou insatisfeito—a equipe presidencial queria que Netanyahu aderisse ao programa estabelecido por ela.
Foi aí que os Emirados Árabes Unidos entraram em cena. Em junho de 2020, o embaixador Yusuf al Otaiba reuniu-se com Kushner em Washington e escreveu um editorial publicado originalmente em hebraico num dos principais jornais de Israel. Argumentou, em nome dos Emirados Árabes Unidos, que a anexação não era aceitável e contradizia todo o discurso sobre a normalização. Apresentou aos leitores israelenses a possibilidade da paz e enfatizou mais os pontos em comum do que as diferenças. Essa foi a semente do que viriam a ser os Acordos de Abraão.
Durante a pandemia, Kushner e seu assessor Avi Berkowitz viajaram a Israel para convencer Netanyahu a não anexar a Cisjordânia. Era plausível que as ameaças de Netanyahu fossem uma manobra eleitoral dirigida a assentados extremistas e às facções mais à direita de Israel, que defendiam a anexação. Os Emirados Árabes Unidos já haviam indicado a Kushner que estavam dispostos a seguir o caminho da normalização, e isso poderia ser oferecido a Netanyahu em troca da suspensão da anexação. Essa foi a base dos Acordos de Abraão anunciados por Trump via Twitter em agosto de 2020. Um mês depois, o ministro das Finanças do Barém ligou para o pessoal de Trump e informou que o país também queria participar.
jg: Qual foi o impacto imediato do anúncio dos Acordos de Abraão em 2020?
ef: Inicialmente, os anúncios provocaram uma enxurrada de manifestações nos países do Golfo, de variados grupos da sociedade civil, criticando os Emirados Árabes Unidos e o Barém pela decisão. Por conta da pandemia, a resposta foi dada on-line. Especialistas religiosos condenaram essa reação e grupos da sociedade civil lideraram a reação oposicionista—se não fosse pela pandemia, imagino que teriam ocorrido mais protestos.
De toda forma, a nova relação começou a se firmar e se desenvolver.
Nos dois primeiros anos após o anúncio, o comércio bilateral entre Emirados Árabes Unidos e Israel, as duas economias mais importantes envolvidas no acordo, atingiu US$ 2 bilhões. Agora, há a projeção de que a cifra chegue a US$ 4 bilhões, impulsionada por substantivos investimentos dos fundos soberanos dos Emirados Árabes Unidos em startups e empresas de tecnologia israelenses, bem como por turistas israelenses que vão a Dubai. O turismo não é bilateral: em dezembro de 2020, cerca de 70 mil turistas israelenses visitaram Dubai, enquanto cerca de 3 mil emiradenses estiveram em Israel. O Estado dos Emirados e a mídia popular estão muito empenhados na narrativa de que a normalização tem a ver com tolerância e aceitação cultural, que também permite aos emiradenses rezar na mesquita Al Aqsa agora. A população, contudo, reluta em apoiar a normalização, além de seguir comprometida com os direitos dos palestinos.
No aspecto militar, os Estados Unidos transferiram Israel da zona de comando Europeia (EUCOM) para o Comando Central dos Estados Unidos (CENTCOM), que abrange o Golfo e os Estados Árabes. O objetivo era estreitar relações entre Israel e os Estados que participaram da normalização, mas também com a comunidade mais ampla de países árabes que ficaram de fora do processo.
Houve também uma importante coordenação econômica. O setor de diamantes, um grande fator de convergência entre Dubai e Israel, tornou-se uma das principais áreas de comércio. Há acordos de cooperação entre universidades, think tanks e assim por diante. No primeiro ano após a assinatura do acordo, houve, tanto nos Emirados Árabes Unidos quanto no Barém, um grande esforço estatal para envolver Israel em todo tipo de iniciativa.
Israel e os países do Golfo no século XX
jg: Queria entender se é possível situar os Acordos de Abraão numa história mais longa: como os países do Golfo viram a questão da Palestina no último século? Desde a Revolta Árabe de 1936 e o Plano de Partilha de 1947 até a criação de Israel e a Nakba, a Guerra dos Seis Dias e a Guerra do Yom Kippur—o que esses movimentos indicam sobre as transformações do poder político no Golfo Pérsico?
ef: Essas conjunturas decisivas suscitaram um apoio popular inequívoco aos palestinos em todo o mundo árabe. Em 1936, quando as notícias sobre as greves de trabalhadores e a revolta armada contra os assentados sionistas chegaram ao Golfo pelo rádio e pelos jornais, houve esforços de arrecadação de fundos em vários locais, inclusive no Barém. O emir de Sharjah, um dos sete emirados que hoje compõem os Emirados Árabes Unidos, chegou a fazer, pessoalmente, uma doação para a causa. Isso resultou principalmente do crescente senso da população de um nacionalismo árabe e de solidariedade contra os britânicos, um inimigo colonial que pretendia dividir o mundo árabe. A solidariedade com os palestinos, nesse contexto, tinha esse sentido.
O anúncio do Plano de Partilha em 1947 provocou alguns distúrbios nos nascentes Estados do Golfo. No Barém, trabalhadores e estudantes secundaristas fizeram três dias de greve. Em 1967, houve atos de solidariedade semelhantes, e os governantes começaram a se envolver. Na época, o xeique Zayed, de Abu Dhabi, enviou ajuda às tropas da linha de frente do conflito e houve participação direta de um contingente do Kuwait sob comando egípcio—uma mudança em relação ao período anterior à Segunda Guerra Mundial, quando o governo recomendou aos cidadãos que não enviassem dinheiro (presumivelmente porque os britânicos, que controlavam o Kuwait, queriam evitar que a solidariedade anti-imperialista no mundo árabe aumentasse).
dylan saba: Com a Guerra do Yom Kippur, em 1973, os Estados árabes da OPEP fizeram cortes drásticos na produção de petróleo e impuseram restrições de venda que impactaram dramaticamente a economia política mundial. Como esses eventos moldaram o futuro da unidade política dos países do Golfo e o espaço geopolítico e diplomático em que operaram?
ef: Os cortes na produção de petróleo e o embargo à exportação que começaram com a guerra são um dos exemplos mais bem-sucedidos de ação coordenada entre os Estados do Golfo. O preço do petróleo quadruplicou em dois meses. Esse patamar elevado de preços perdurou por anos após o embargo e representou uma chuva de lucros para os Estados do Golfo. Isso também desencadeou várias mudanças do lado estadunidense. A administração Nixon iniciou o que viria a ser um projeto de décadas para diversificar as fontes de energia, a fim de depender menos do petróleo do Oriente Médio. Também procurou com afinco uma solução diplomática para o conflito árabe-israelense. Nixon e Kissinger passaram a compreender que, na mente dos líderes árabes, havia um vínculo efetivo entre as conversações para acabar com a guerra e a política dos mercados globais de energia.
Os primeiros acordos de desengajamento entre Egito e Israel, em 1974, abriram caminho para os Acordos de Camp David, de 1978, e para o acordo de paz entre as duas nações, de 1979. O embargo do petróleo forçou os Estados Unidos a formular uma perspectiva diplomática de longo prazo—os dois partidos políticos dominantes compreenderam que tinham que levar a resolução do conflito árabe-israelense mais a sério. Isso ensinou aos Estados do Golfo que, se fossem capazes de coordenar suas ações, poderiam obter sucesso. Sua unidade política e econômica ampliou-se ainda mais com o Conselho de Cooperação do Golfo, formado em resposta à irrupção da guerra entre Irã e Iraque em 1980.
jg: O que fez com que o Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) surgisse nesses anos decisivos? Havia diferentes visões de cooperação entre os seus fundadores?
ef: Os seis países que fazem parte do CCG—Barém, Kuwait, Omã, Catar, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos—ficaram vulneráveis durante a guerra entre Irã e Iraque. Os Emirados Árabes Unidos não quiseram tomar partido na guerra, assumindo publicamente uma posição de não alinhamento. Em seguida, os líderes daqueles países concordaram que a criação de alianças formais seria útil para sua segurança no longo prazo. Outro evento relevante, obviamente, foi a revolução iraniana de 1979, que teve enormes repercussões na região. Para as nações do Golfo, ela marcou o início de um vínculo de segurança mais profundo com os Estados Unidos. Esses três eventos—o embargo da OPEP em 1973, a revolução iraniana em 1979 e a guerra entre Irã e Iraque, especialmente a ofensiva iraniana de 1982—foram decisivos para que os países do Golfo passassem a colaborar de maneira mais próxima.
jg: O período de formação do CCG e da guerra entre Irã e Iraque é marcado por um aumento substancial dos gastos militares dos Estados do Golfo, algo possibilitado pelas novas receitas advindas do petróleo. Como isso os afetou?
ef: Nos anos imediatamente após a revolução iraniana houve grande expansão da influência dos Estados Unidos na região do Golfo, fenômeno recebido com entusiasmo pelos líderes locais. A retórica iraniana era de exportação de sua revolução. A região estava em alerta máximo, em especial países como a Arábia Saudita e o Barém, com populações xiitas consideráveis, mas com governos sunitas. Os membros do CCG responderam tentando atrair os estadunidenses para a região, o que funcionaria como instrumento de dissuasão. Isso fez com que seus gastos em defesa aumentassem drasticamente. No Barém, em 1982—ou seja, dois anos após a revolução iraniana—, chegaram a 8,5% do PIB. A Quinta Frota da Marinha dos Estados Unidos transferiu seu quartel-general para lá. Foi nesse momento que eles passaram a ver os Estados Unidos como um protetor necessário.
De Oslo ao acordo nuclear com o Irã
ds: Qual a perspectiva dos Estados do Golfo sobre os Acordos de Oslo? Eles viam ali uma possibilidade de solução para a questão palestina—e, portanto, para a questão da normalização—ou estavam mais reticentes?
ef: No início do processo de Oslo havia muito otimismo nos países do Golfo. Eles pensavam que essa questão poderia ser finalmente resolvida. Confiantes de que as negociações de paz terminariam com a criação de um Estado palestino, Omã e Catar começaram a abrir suas portas para Israel, instalando escritórios comerciais em suas capitais. Uma crescente normalização das relações com Israel parecia possível. Esses dois escritórios comerciais foram desativados quando a solução de dois Estados não se concretizou. No caso do Catar, isso resultou, em parte, de pressões sauditas e iranianas. Em 2000, tanto a Arábia Saudita quanto o Irã ameaçaram não comparecer a uma cúpula islâmica que estava sendo planejada em Doha. O Catar fechou seu escritório comercial e, um ano depois, a Segunda Intifada irrompeu.
Durante esse período, os países do Golfo estavam amplamente comprometidos com o conceito de “terra por paz”— a interpretação jurídica internacional da Resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU—, que regera todas as discussões de paz entre árabes e israelenses desde 1967. Mesmo durante essa primeira onda de diálogo pós-Oslo, o amplo equilíbrio de poder na região impunha o reconhecimento do Estado palestino como uma condição para a normalização. Portanto, quando o fracasso das chamadas negociações de paz durante a presidência de George W. Bush minou essa perspectiva, os Estados do Golfo retrocederam na normalização.
jg: O ano de 2006 é decisivo para o crescimento da influência do Irã na região, o que fez aumentar os temores dos Estados do Golfo. Tais temores cresceram ainda mais durante o mandato de Obama, com o acordo nuclear entre Estados Unidos e Irã. Qual é o próximo passo da história que nos leva aos Acordos de Abraão sob Trump?
ef: Em 2001, a Arábia Saudita lançou a Iniciativa de Paz Árabe, um roteiro para a normalização baseado na fórmula “terra por paz”. Apoiada pela Liga Árabe, ela tinha como condição que Israel se retirasse dos territórios ocupados—que, na época, incluíam a Cisjordânia, as Colinas de Golã e o Líbano—e reconhecesse o Estado palestino. Dois eventos em 2006 fizeram com que os países do Golfo iniciassem um alinhamento estratégico com Israel. Inicialmente, o Irã anunciou que havia enriquecido urânio pela primeira vez, inaugurando seu programa nuclear. Em seguida, o Hezbollah expulsou Israel do Líbano. Isso sinalizou aos líderes do Golfo que o Irã—juntamente com seus proxies e aliados—se tornara uma força relevante na região. Assim como em 1979, eles foram confrontados com a ideia de uma força rival que poderia ameaçar sua posição no longo prazo.
É nesse momento que começa a ocorrer uma aproximação com Israel que não envolve mais a questão palestina. A normalização das relações econômicas e o avanço da pauta de um Estado palestino se dissociam. Em 2007, os Emirados Árabes Unidos passam a adquirir tecnologia israelense para um sistema de gerenciamento de tráfego, além de dados de satélites de monitoramento do programa nuclear do Irã. Longe dos holofotes, Israel, Estados Unidos e vários Estados do Golfo—Barém, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos—passam a discutir sobre uma ameaça compartilhada proveniente do Irã—algo revelado posteriormente pelo WikiLeaks.
Da perspectiva do Golfo, essas conversas durante a gestão Obama tinham como objetivo convencer os Estados Unidos a adotar uma postura mais dura contra o Irã, com mais sanções e isolamento. Nesse sentido, Israel parecia uma ferramenta útil.
ds: Qual a relação entre o movimento dos Estados do Golfo contra o acordo nuclear com o Irã, o Plano de Ação Conjunto Global (JCPOA, na sigla em inglês) e a celebração dos Acordos de Abraão sob o governo Trump? Há tensão ou continuidade entre eles?
ef: As relações entre o Golfo e o Irã tiveram duas fases: a primeira, de 2006 a 2019, foi de confronto; a segunda, na qual, no meu entendimento, ainda estamos, é caracterizada pela distensão—a palavra de ordem é criar laços positivos e evitar conflitos.
Entre 2006 e 2019, os países do Golfo pleiteavam sanções e alguns chegaram até a apoiar discretamente uma ação militar direta contra o Irã. Eles concordavam com a posição de Netanyahu de que o JCPOA, ao invés de impedir que o Irã obtivesse a bomba atômica, facilitava esse acesso. Os países do Golfo queriam que o JCPOA tratasse da produção de mísseis iranianos—segundo eles, uma ameaça equivalente àquela do programa nuclear.
Dois eventos fizeram essa abordagem mudar. O primeiro foram os ataques a navios-tanque de três nacionalidades diferentes na costa dos Emirados Árabes Unidos no verão de 2019. O outro foi o ataque à Aramco na Árabia Saudita, cuja autoria foi reivindicada pelas forças Houthi. Isso provocou uma verdadeira mudança de pensamento na Arábia Saudita e nos Emirados Árabes Unidos, principalmente porque as agressões ocorreram durante o governo Trump. Uma vez que os Estados Unidos se abstiveram de enviar qualquer apoio e que o Irã sugeria indiretamente que os ataques eram uma retaliação à retirada de Trump do JCPOA, os Estados do Golfo passaram a adotar uma postura mais diplomática com o Irã. Após os ataques de 2019, os Emirados Árabes Unidos e o Irã realizaram vários intercâmbios diplomáticos. E, de maneira significativa, a Arábia Saudita e o Irã restabeleceram relações após sete anos, em um acordo intermediado pela China. Nos últimos meses, houve novas trocas de visitas entre ministros sauditas e iranianos em Doha, o que seria impensável há alguns anos. Portanto, os líderes do Golfo estão trabalhando por uma distensão com o Irã: estão enviando uma mensagem clara de que querem evitar conflitos.
jg: A Primavera Árabe foi outra fonte de instabilidade para as potências do Golfo. Você poderia falar um pouco sobre como 2011 impactou esses governos e como eles encaram a oposição popular à normalização?
ef: Vários fatores levaram a essa reaproximação entre os países do Golfo e Israel. O primeiro foram os eventos de 2006 que já discutimos. O segundo foi o surgimento dessa nova geração de líderes no Golfo, menos interessados na questão Israel-Palestina e muito mais focados na suposta ameaça vinda do Irã. A maioria desses líderes recebeu uma educação mais ocidental e pró-Estados Unidos, e não tem o mesmo compromisso com o nacionalismo árabe que os seus pais tinham.
O terceiro foi a Primavera Árabe, que fez as alianças diplomáticas dos líderes do Golfo e de Netanyahu convergirem outra vez. Na época, Netanyahu descreveu a Primavera Árabe como um novo 1979—isto é, um risco à segurança de Israel. Enquanto isso, os Estados do Golfo estavam preocupados com a possibilidade de os movimentos pró-democracia fortalecerem os elementos islâmicos na região, o que ameaçaria sua sobrevivência a longo prazo. Netanyahu e os líderes do Golfo concordavam que a Primavera Árabe constituía um perigo para o status quo na região.
Na verdade, a repressão à sociedade civil é parte do que torna a normalização possível. Por exemplo, no Barém houve um levante de massas semelhante aos que vimos em outros locais e as forças do CCG se mobilizaram para acabar com ele. Os acordos com Israel são profundamente impopulares. Eles só foram possíveis porque não há representação popular. Mesmo antes da normalização, pesquisas apontam que entre 85% e 95% da população do Golfo se opunha vigorosamente à manutenção de relações com Israel. A normalização não teria ocorrido sem a via repressiva, que só recrudesceu após o 7 de outubro.
O 7 de outubro e os Acordos de Abraão hoje
ds: Como o 7 de outubro influenciou na normalização?
ef: Os Estados do Golfo não querem uma escalada da tensão entre Israel e Irã. Eles sabem que isso impactaria suas economias, no mínimo, indiretamente. O genocídio em Gaza impôs limites a um cronograma mais assertivo de normalização com Israel—não necessariamente porque os regimes estejam comovidos com as mortes de palestinos, mas porque a indignação popular nesses países deixou mais claro do que nunca que os Acordos de Abraão e a legitimação que eles proporcionam a Israel são profundamente impopulares.
A meu ver, o 7 de outubro e o ano que se seguiu foram o teste definitivo para a normalização. Mesmo depois do que Israel fez em Gaza e no Líbano—todos os números, o sofrimento extremo dos civis, a desestabilização dramática da região—, o projeto de normalização sobreviveu nos países do Golfo. Eles não expulsaram embaixadores nem fizeram nada de substancial para interromper suas relações com Israel.
ds: Tecnologias militares e inteligência são um atrativo para que os países do Golfo, especialmente os Emirados Árabes Unidos, busquem a normalização com Israel. Mas o 7 de outubro, em muitos aspectos, representou um fracasso desses dois supostos recursos. Isso influencia a avaliação que os países do Golfo fazem de sua relação com os Estados Unidos e com Israel, especialmente se considerarmos que o Irã, de algum modo, pode vê-los como proxies dos Estados Unidos?
ef: Um dos fatores que impulsionam a normalização é certamente a possibilidade de aquisição de tecnologia de Israel. Embora o 7 de outubro tenha sido um fracasso em termos de segurança para Israel, isso não diminui a utilidade que essas tecnologias têm para os Estados do Golfo, especialmente as tecnologias antimísseis.
Quando os Acordos de Abraão foram assinados, ninguém mencionou questões de segurança ou tensões com o Irã—todo o assunto girou em torno de cooperação econômica, laços interpessoais, comércio e negócios. Essa omissão é muito marcante, porque esses Estados estão agora envolvidos em uma espécie de segunda fase da diplomacia com o Irã, que não passa mais por um antagonismo ativo. Eles ainda querem adquirir armas e inteligência de Israel para se protegerem de futuros ataques do Irã, mas, ao mesmo tempo, não querem provocar tais taques, nem do Irã nem de grupos próximos a ele, por isso evitam essa linguagem militar de confronto. Se observarmos o primeiro ano dos Acordos, pouco se fala em tecnologia ou transferências militares.
Isso aparece no segundo ano dos Acordos. Em janeiro de 2022, os Emirados Árabes Unidos foram atingidos por três ataques de mísseis. Em resposta, pela primeira vez solicitaram publicamente tecnologias antimísseis a antidrones de Israel. Israel lhes deu uma tecnologia muito semelhante à que pediram—o sistema Barak, implantado pouco tempo depois. Os líderes dos Emirados acham que Israel, e não os Estados Unidos, foi quem veio em sua proteção. Vários dias depois, Israel enviou uma equipe aos Emirados Árabes Unidos para investigar como os ataques ocorreram. O Barém, diferentemente da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos, logo de cara fez declarações em tons de aprovação de que o Mossad está presente em seu país. Isso demonstra uma abordagem ligeiramente diferente, um pouco mais conflituosa, em relação ao Irã.
Na frente da governança doméstica, spywares israelenses como o Pegasus ajudam os países do Golfo a lidar com a dissidência interna. Antes do 7 de outubro, havia a sensação de que Israel, empregando tecnologias muito avançadas, havia sido capaz de instalar efetivamente uma ocupação permanente. As transferências de conhecimento—tanto de tecnologia quanto de organização do policiamento da população—foram valiosas para os países do Golfo.
Há uso documentado de spywares contra líderes dissidentes nos Emirados Árabes Unidos. Em meu livro, mencionei o caso de Ahmed Mansour, que foi alvo dessas tecnologias em diversas ocasiões. Embora o tipo de software de vigilância usado para rastreá-lo tenha origens confusas—ele é vendido por meio do Chipre e de outros lugares—, é certo que muitos desses programas eram israelenses. O Barém não demonstra tanto domínio tecnológico nessa frente. Lá, a dissidência é muito mais visível do que nos Emirados Árabes Unidos, abrangendo uma parcela muito maior da sociedade. Durante a Primavera Árabe, o país exibiu formas mais típicas de repressão, com prisões e interrogatórios. Mas eu não ficaria surpreso se soubesse que o Barém também está adquirindo spywares mais sofisticados.
ds: Você falou de como os Estados do Golfo, ao promoverem uma narrativa específica sobre a normalização, abandonaram a questão palestina e passaram a retratar o conflito árabe-israelense como algo antigo, que faz parte do passado, que não deve mais ser objeto de negociação, mas de gestão. O 7 de outubro foi tanto uma reação a esse movimento quanto um desmantelamento dessa narrativa.
ef: Essa é exatamente a lógica por trás da normalização. A questão palestina é insolúvel; portanto, não se deve gastar muita energia com ela. Então, por que deixar que isso atrapalhe a criação de laços mais estreitos com um parceiro útil? A nova geração na liderança do Golfo é caracterizada por esse sentimento.
Essa visão era compartilhada por autoridades do governo Trump. Mas o 7 de outubro mostrou que, na verdade, a questão palestina não pode ser evitada. Mesmo que não haja uma preocupação efetiva com a ocupação, o fato de irromper como um conflito muito devastador tem implicações para a estabilidade regional e econômica. Ataques dos Houthi no Mar Vermelho ou um míssil lançado ocasionalmente do Iêmen se tornam problemas imediatos para a Arábia Saudita, que está construindo a zona econômica de Neom bem no Mar Vermelho. O 7 de outubro dissipou a narrativa da normalização e mostrou que não se pode simplesmente ignorar a questão do Estado palestino.
Outra consequência do 7 de outubro é a forte manifestação de apoio árabe aos palestinos. Isso derrubou o mito, que está na base dos Acordos de Abraão, de que as populações do Golfo não se importam mais com os palestinos e estão felizes com a normalização. Para os países mais suscetíveis à agitação cívica, como a Arábia Saudita, isso elevou o custo da normalização.
ds: Parece que, apesar de a guerra ter dificultado muito o avanço da normalização, o governo Biden tentou aplicar a própria normalização como solução para a guerra. Essa é uma posição desesperada? Ou existe de fato a possibilidade de um acordo no qual a normalização faça com que os países do Golfo aceitem a administração externa de Gaza?
ef: A abordagem defendida por Brett McGurk, Tony Blinken, Jake Sullivan e outros é exatamente essa: uma grande barganha, na qual a Arábia Saudita receberia a oferta de normalização e de um Estado palestino—ou pelo menos alguma perspectiva de um Estado palestino—em troca de um acordo de defesa. As autoridades da Arábia Saudita já esclareceram várias vezes que não abrem mão do reconhecimento de um Estado palestino. Elas esperam dos Estados Unidos não apenas um acordo de segurança vinculante, mas algo semelhante ao que prevê o artigo 5º da OTAN, o que garantiria que, se os sauditas forem atacados, os Estados Unidos serão obrigados a responder. Além disso, querem tecnologia avançada e acesso a um programa nuclear civil.
A normalização com a Arábia Saudita está longe de ser um negócio fechado, e penso que as autoridades estadunidenses têm sido excessivamente otimistas. A estratégia de longo prazo dos Estados Unidos é delegar suas políticas regionais a uma aliança entre as monarquias sunitas do Golfo e Israel. Mas há vários desafios para que isso ocorra. O primeiro é convencer o Congresso a atender às exigências da Arábia Saudita. O segundo é que o atual governo de Israel—o mais à direita de sua história—jamais concordaria com a condição de um Estado palestino. Nenhum líder israelense apoia isso, e a eleição presidencial dos Estados Unidos, do ponto de vista do mundo árabe, foi uma disputa entre o ruim e o pior—Netanyahu já recebeu carta branca e não há razão para esperarmos que o segundo mandato de Trump seja diferente do primeiro nesse aspecto.
Portanto, a pergunta que fica é: os sauditas concordariam com a normalização sem o estabelecimento um Estado palestino? Isso não está claro. Há quem diga que o príncipe herdeiro não considera o Estado palestino uma prioridade e que ficaria satisfeito com qualquer gesto simbólico nessa direção. Outros afirmam que seria arriscado demais adotar uma posição de antagonismo com sua população. Os sauditas lideraram a Iniciativa de Paz Árabe e não querem perder sua influência, muito menos alienar milhões de muçulmanos fora do Golfo que são decididamente pró-Palestina.
Gilberto Cervinski, liderança do Movimento dos Atingidos por Barragens, analisa o setor elétrico brasileiro e os desafios para uma transição climática justa e popular
O setor energético de baixo carbono do Brasil é frequentemente destacado nos fóruns internacionais que debatem resoluções para a emergência climática mundial. Enquanto o agronegócio e a indústria extrativista são os maiores responsáveis pelas emissões poluentes no país, na geração de energia elétrica que abastece instalações públicas, domicílios e indústrias prevalecem as fontes renováveis, sobretudo a hídrica. Mas, ainda que o setor elétrico brasileiro seja considerado amplamente “limpo”, há aspectos do seu modelo de organização produtiva que não podem ser ignorados num projeto de transição verdadeiramente justo.
A expansão da matriz produtiva de energia elétrica no Brasil foi impulsionada pelo nascimento das indústrias de base e o consequente aumento exponencial da demanda por eletricidade nas áreas urbanas entre as décadas de 1920 e 1930. O aproveitamento da abundância de recursos hídricos na produção de energia para expansão da oferta de eletricidade em termos quantitativos e regionais só foi possível em razão da regulação estatal do setor. O Código das Águas de 1934 foi o primeiro grande instrumento normativo que permitiu ao Estado brasileiro estabelecer os critérios de ampliação da matriz hidrelétrica. Em meados da década de 1940, o país já contava com marcos regulatórios que asseguravam à União e aos estados da federação a maior parte da propriedade e o controle cadeia produtiva hidrelétrica e, ao longo das décadas seguintes, notadamente em razão dos projetos desenvolvimentistas implementados entre as gestões de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, uma série de investimentos públicos em infraestrutura ampliou a capacidade instalada do país significativamente. Em 1962, na gestão de João Goulart, criou-se a Eletrobrás, empresa estatal destinada a coordenar, fiscalizar e executar projetos relacionados à produção hidrelétrica.
O golpe militar de 1964 não descontinuou o investimento na política energética, mas alterou significativamente a forma. A dependência do capital privado internacional para a expansão produtiva foi significativamente ampliada. Ao longo da ditadura, 61 grandes barragens foram construídas. A matriz hidrelétrica foi crucial para o chamado “milagre econômico” do regime autoritário: no momento da crise do petróleo de 1973, 90% da eletricidade gerada no Brasil era proveniente de fontes hídricas. A deterioração do ambiente econômico internacional, no entanto, expôs a fragilidade do milagre: o crescimento exponencial legado pela ditadura foi, na verdade, de o das desigualdades sociais e da dívida externa.
Resgatar a história da matriz elétrica limpa do Brasil é essencial para estabelecer os termos da transição climática no país. A construção de usinas elétricas, especialmente durante a ditadura militar, implicou danos sociais e ambientais tão significativos quanto os avanços estruturais alcançados. Nas geografias em que foram instaladas, as barragens impactaram enormemente populações e biomas. Milhares de pessoas foram deslocadas, cidades inteiras foram inundadas, a perda de biodiversidade alcançou imensas áreas no entorno das instalações. Nesse contexto, nos anos 1980, surgiu o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), organização voltada a defender os interesses das populações atingidas pelo sistema de geração, distribuição e venda da energia elétrica.
Os investimentos públicos em infraestrutura garantiram soberania energética ao Brasil, mas a ampliação da dependência internacional escondida do escrutínio público pela repressão política do período militar e a ampla ausência de contrapartida social e ambiental que marcaram os anos de consolidação da matriz hidrelétrica do país expuseram as falências de um modelo de desenvolvimento econômico injusto. A redemocratização promoveu uma perversa inversão do desenvolvimentismo energético do período histórico anterior. A partir dos anos 1990, o setor elétrico foi amplamente privatizado. Desde então, a organização produtiva se caracteriza pelo controle privado, forte presença do capital portador de juros, endividamento das companhias e internacionalização dos preços e tarifas. As violações de direitos das populações atingidas pelas estruturas produtivas, no entanto, seguiram como nefasta continuidade do modelo anterior.
À luz da história, a urgência da crise climática hoje torna imprescindível o contraponto feito há anos pelos setores organizados da sociedade brasileira: a reivindicação de uma transição energética efetivamente popular. Para tratar do tema, Hugo Fanton, editor da Phenomenal World, conversou com Gilberto Cervinski, liderança do MAB—movimento que recentemente passou a congregar também famílias atingidas por barragens de rejeitos da mineração e por eventos relacionados a mudanças climáticas, como as inundações que atingiram neste ano o Sul do país.
Cervinski é mestre em Energia pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e professor colaborador no curso de especialização Energia e Sociedade no Capitalismo Contemporâneo, promovido pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ). Na entrevista, ele relaciona o tema da transição com a necessidade de mudanças profundas na estrutura produtiva do setor energético, trata da reação financista às tentativas recentes de controle estatal sobre o setor—como o caso da Medida Provisória n. 579, editada por Dilma Rousseff em 2012, com o objetivo de reduzir o preço da energia—e propõe a luta por um projeto energético popular.
Entrevista com Gilberto Cervinski
hugo fanton: Qual é o modelo prevalente de organização do setor elétrico no Brasil e por que o tema da transição energética depende de sua transformação?
GILBERTO CERVINSKI: O setor elétrico no Brasil, que representa uma parte da questão energética, foi conformado basicamente pelo Estado e por empresas públicas—como a Eletrobrás e companhias estaduais—que construíram as usinas, as linhas de transmissão e organizaram o processo de distribuição da eletricidade nas cidades. Esse modelo durou até os anos 1990, quando foi iniciado um processo de privatização do setor. As melhores partes do complexo industrial foram privatizadas: as melhores usinas e linhas de transmissão. Consequentemente, aumentaram as tarifas e os preços finais para a população. Agora temos um setor elétrico privatizado. Quem controla as usinas, as linhas de transmissão e as distribuidoras são os grandes bancos e fundos de investimento especulativos: hoje, o detentor da propriedade de todas as usinas de produção de energia é o capital portador de juros, que a gente chama de capital parasitário. A segunda característica do modelo atual é a composição das tarifas: temos o menor custo de produção de energia, e um dos preços mais altos do mundo para a população. É uma grande contradição. Esse é o modelo que se consolidou desde os anos 1990.
Quando falamos da necessidade de um projeto energético popular, estamos dizendo que é preciso mudar profundamente a política de preços, recuperar a soberania e garantir os direitos e a reparação adequada das populações atingidas. É preciso, ainda, fazer uma mudança de matriz, que não pode estar reduzida a hidroelétricas. A luta por um projeto energético popular é, então, a defesa da mudança na política energética nacional em todas essas bases que caracterizam o atual modelo, desde as matrizes até a relação da política com o meio ambiente. Vivemos neste ano a maior seca da história na Amazônia, que está sendo queimada em grandes extensões. E por quê? Porque os grandes produtores rurais estão botando fogo para criar boi. Essas são as questões que precisam mudar a fundo.
hF: Por que existe essa grande distorção dos preços de energia?
GC: Com a privatização, passou-se a aplicar uma tarifa baseada na energia térmica a carvão, que é o modo como os preços internacionais de energia são definidos. Só que aqui a energia é produzida por hidroelétricas. Temos bacias hidrográficas com vinte usinas, uma embaixo da outra. A mesma água produz eletricidade vinte vezes no curso de uma bacia—essa água se renova sem custo. Ou seja, dispomos de um custo de produção baixíssimo. Mas isso não se reverte em benefício para o povo. Pelo contrário, é um mecanismo de acumulação de riqueza baseado na diferença entre o baixo custo de produção e as altas tarifas. Isso acontece porque estruturas e organismos de Estado que coordenam a política energética estão capturados pelo sistema financeiro, pelos bancos, que controlam as agências reguladoras. Além disso, há violações de direitos tanto dos trabalhadores do setor quanto das populações atingidas pelos projetos, sempre visando o aumento das margens de lucro. Constrói-se usinas e as populações atingidas são expulsas de seus territórios sem indenizações e reparações.
Mais de 80% da energia elétrica produzida no Brasil é de fonte renovável, a maior parte hidroelétrica, que chega a 70% da produção real de eletricidade. Os outros 10% vêm de fontes eólicas e solares. A água não tem custo como o carvão, o petróleo e o gás natural. Na Europa, por exemplo, os produtores precisam comprar a fonte e queimar em termoelétrica para produzir eletricidade. Aqui no Brasil, temos os grandes lagos de acumulação. Como a água se renova, o custo é praticamente nulo, é só de manutenção dessas usinas, que hoje estão praticamente automatizadas. Portanto, é o menor custo de produção quando se compara com outras fontes renováveis ou com as termoelétricas ou a energia nuclear. Mas, como o setor foi privatizado, o preço não é baseado no custo da hidrelétrica. Adota-se o preço internacional. E o preço que prevalece no mundo é baseado naquilo que o mundo produz, enérgica termoelétrica movida a carvão, justamente a que custa mais caro. Essa é a referência para o que chamam de “preço teto” da energia. Aqui, adota-se o preço teto, o mais alto do mundo, com o custo de produção mais baixo, de modo que a taxa de lucratividade é altíssima.
hF: Quem se beneficia do modelo atual?
GC: Os bancos e fundos financeiros fizeram uma enorme movimentação para controlar o setor elétrico brasileiro e extrair lucros extraordinários. Houve uma estratégia de endividamento das companhias energéticas—hoje, são empresas superendividadas, pagando taxas de juro altíssimas. E esse custo também é jogado na conta de luz. Então, há dois mecanismos que garantem altíssimas taxas de lucro: o endividamento das companhias e a conta de luz em si. É o capital parasitário que extrai riqueza de todos os trabalhadores e trabalhadoras do Brasil. Os preços e as tarifas energéticas são centrais para o controle e a distribuição da riqueza nacional: funcionam como mecanismos de extração de riqueza de uma grande massa através do pagamento das contas de luz. No Brasil, há 80 milhões de unidades consumidoras residenciais: famílias que pagam conta de luz. Se adotássemos uma política de preço real, condizente com o sistema brasileiro, o povo pagaria muito mais barato. Não haveria essa extração de riqueza de suas mãos. Com uma política energética que garante os preços altos, parte do salário dos trabalhadores é expropriada para se concentrar nas mãos dos bancos e dos fundos financeiros que controlam o setor.
hF: Em 2012, Dilma Rousseff editou a Medida Provisória n. 579 para alterar, precisamente, a formação de preço do setor energético. Você pode explicar o contexto em que isso aconteceu e o motivo pelo qual a proposta não prosperou?
GC: As grandes hidroelétricas do Brasil foram construídas na década de 1970. Os contratos de concessão de 60% delas estavam vencendo por volta de 2012. Isso significa que, a partir daquele ano, essas usinas não teriam mais dívida a pagar em função do custo de investimento. Os trinta anos de concessão quitaram a dívida formada na construção das usinas. Como não havia mais dívida a pagar, a proposta era oferecer ao país energia a preço de custo acrescido de uma taxa de lucro média. Essa foi a medida do governo Dilma. O problema é que nesse modelo não haveria mais incidência de juros sobre o endividamento, o que provocou uma forte reação dos banqueiros no Brasil. Os dois componentes da extração de mais valia foram colocados em xeque pelo governo: o preço da conta de luz e o pagamento de juros pelo endividamento das empresas. A presidenta comprou uma briga enorme com o capital financeiro por isso. Não à toa o capital financeiro foi um dos articuladores do processo de impeachment. O resultado foi o golpe de 2016. A Dilma Rousseff queria oferecer ao país a energia a custo real de produção, já que o povo brasileiro já tinha pagado por hidroelétricas ao longo de 30 anos de concessão. E o que aconteceu depois do golpe? Novas dívidas foram criadas, como se as hidroelétricas antigas estivessem sendo construídas novamente.1 Cada uma delas agora tem uma nova dívida e está pagando juros por isso, pagando novamente o investimento de sua produção. E quem é o dono das dívidas? O sistema financeiro.
hF: A privatização da Eletrobrás também fez parte dessa reação do capital financeiro. Quais foram as implicações disso?
GC: Após o golpe de 2016, começou uma movimentação para privatizar a última grande estatal brasileira. A Eletrobrás detém a propriedade de 48 hidroelétricas do país—as de melhor qualidade, com dívidas amortizadas. O capital, evidentemente, não queria pagar o valor dessas hidroelétricas. Então a privatização foi operacionalizada pela transferência do controle da empresa por um valor muito abaixo do que custaria vender as hidrelétricas. Essa privatização foi escandalosa. Hoje, o governo consegue controlar apenas 10% da Eletrobrás. O restante está nas mãos do capital financeiro. Foi um processo de pilhagem de riqueza nacional: 48 hidroelétricas transferidas da noite para o dia para o controle do capital privado, sem necessidade. E nós já vemos o resultado disso: mais aumentos nas tarifas e nas contas de luz.
hF: O que uma mudança de matriz energética para enfrentar a crise climática significa em um país com essas características?
GC: O debate ambiental é feito no mundo, pelo menos, desde os anos 1970. A Eco 92 foi também um marco importante. Ainda assim, houve aumento crescente e linear no consumo de combustíveis fósseis, de petróleo, carvão e gás desde então, seguido por uma trajetória paralela de emissões de gases de efeito estufa. E não são só os combustíveis fósseis que causam as emissões de gases: aqui no Brasil a principal causa é a atividade agropecuária. Eles chamam de agronegócio, nós chamamos de burguesia agrária. Eles produzem e querem ampliar as áreas para soja, boi, celulose e cana de açúcar, e para isso desejam desmatar tanto a Amazônia quanto o Cerrado, as áreas do país que ainda têm florestas em pé. São essas as duas frentes de ação, portanto, que correspondem às necessidades da transição climática. No caso brasileiro, devemos combinar a mudança de matriz energética com a contenção da sanha da burguesia agrária pela destruição das florestas. Precisamos conter o desmatamento, o que implica alteração profunda na produção agrícola. E quando falamos da mudança de matriz não é mudança de fonte de energia elétrica, e sim da política energética. É isso que precisa mudar: a política de preços e o controle da produção, para além das fontes de geração de eletricidade.
hF: No caso específico da produção de energia elétrica, quais seriam as mudanças necessárias?
GC: O Brasil talvez tenha a melhor condição mundial de geração de energia renovável. Tem grande potencial hidráulico. Mas isso está na Amazônia, e os grandes proprietários das usinas querem retomar a construção de grandes lagos de hidroelétricas na Amazônia. Isso significa alagar milhares de hectares, o que não é tão renovável assim… O Brasil possui 230 mil cavalos de potência instalada em usinas construídas nos últimos cem anos. E tem essa mesma quantidade em potencial na produção de energia eólica em alto mar. Possuímos também regiões de radiação solar altíssima, equivalente às desérticas, além dos potenciais de biomassa e hidráulico. Ou seja, o Brasil tem as melhores condições de produção no mundo.
Mas, mesmo dispondo dessas várias opções, os grandes empresários do setor energético querem retomar a construção de enormes hidroelétricas de acumulação com grandes lagos na Amazônia. Isso significa alagar milhares de hectares de áreas de floresta. E por que esse interesse? A resposta está na política energética, para quê e para quem é essa eletricidade, e na produção em lógica especulativa. É isso que precisamos combater. Mesmo tendo energia renovável à disposição, o povo brasileiro é penalizado. Temos que mudar a política energética nacional, a política de preços, o controle sobre a produção e a distribuição. O problema ambiental é grave, mas a solução que o capital financeiro apresenta é financeirização e a privatização.
Agora, estão propondo privatizar as florestas aqui. E o que é privatização das florestas? É entregar para os grandes fazendeiros e para os bancos a exploração das florestas. Não é preservação. É aumentar a propriedade privada sobre as áreas de reserva. As iniciativas de financeirização e mercantilização do clima são uma falsificação da solução. O que temos feito é denunciar que a privatização e mercantilização do clima não reverterão o problema climático. Pelo contrário. Quem ganha com os créditos carbono aqui? São justamente os fazendeiros e os donos de usina. Ou seja, é um mecanismo financeiro que beneficia, em nome da proteção da natureza e da reversão da mudança climática, exatamente quem está causando o problema.
hF: Como se dá a atuação do MAB nesse cenário?
GC: O MAB tem uma história relacionada com os impactos das hidroelétricas, há muitas décadas. O movimento é constituído por pessoas que foram expulsas pela construção de usinas, sem indenizações e reparações, em várias partes do Brasil. Ao longo do tempo nos nacionalizamos. O nome é Movimento dos Atingidos por Barragens, mas houve uma mudança nos últimos anos, porque não são só os atingidos pelas usinas de energia elétrica, mas também atingidos por duas situações novas que são muito parecidas: o rompimento de barragens de rejeitos de minérios de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais. Há várias outras que romperam em diferentes partes do Brasil. Essas pessoas atingidas se organizam no MAB.
Além disso, de alguns anos para cá, há o que chamamos de atingidos pelas mudanças climáticas, como foi o caso das pessoas atingidas pelas chuvas no litoral de São Paulo e, agora, o caso mais emblemático das grandes enchentes que alagaram Porto Alegre e outras cidades do Rio Grande do Sul. A luta é tanto pelos direitos das pessoas atingidas de indenização e reparação quanto por um projeto energético popular, de transformação do modelo prevalente. Nossa história está imbricada na questão energética, por isso analisamos o setor, discutimos publicamente esses aspectos e lutamos para transformar a política energética nacional.
hF: Como está a situação dos atingidos em Mariana e Brumadinho?
GC: Em 2024, completa-se nove anos de rompimento da barragem em Mariana. Até hoje as famílias não foram reparadas. A barragem rompeu no estado de Minas Gerais, perto de Belo Horizonte. A lama tóxica caiu numa bacia hidrográfica formada pelo Rio Doce, que corre por 670 quilômetros de extensão até o litoral do Espírito Santo. Todo o rio foi destruído pela lama, que então invadiu o oceano e chegou até Abrolhos, na Bahia. Estamos organizando o povo em toda essa região. Somente agora, em razão da sensibilidade do governo Lula, que está fazendo uma cobrança maior, um grande acordo de indenização das famílias vem sendo discutido com as empresas. Para se ter uma ideia, 700 mil pessoas estão movendo um processo em Londres contra as empresas, porque a Justiça brasileira se colocou, de certa forma, a favor dos donos das empresas. As famílias moveram um processo fora do país para tentar reparação, e isso está ajudando, inclusive, a acelerar o acordo de agora.
No caso de Brumadinho, a lama atingiu outra bacia hidrográfica, a do rio São Francisco. Também são milhares de pessoas atingidas. O acordo foi realizado há pouco tempo, mas as famílias ainda não receberam as indenizações, de modo que a luta agora é pelo cumprimento do acordo e pela reconstrução da bacia. E esse povo está organizado no movimento, lutando pelos seus direitos. São várias frentes de atuação, porque o problema atingiu as pessoas, as comunidades, o próprio rio, as vegetações e até o mar. É um processo muito complexo, e o MAB está priorizando principalmente a questão dos atingidos.
hF: E como está a situação no Rio Grande do Sul?
GC: Na região metropolitana de Porto Alegre há seis bacias. Todas descem em direção à capital do Rio Grande do Sul. Em maio, chegou a chover 900 milímetros em cinco dias. A média na região é de 170 milímetros mensais. Essa água toda arrastou o rio, que saltou de 13 para 33 metros de altura. A água levou tudo, derrubou casas e bairros inteiros. Morreram mais de 200 pessoas afogadas porque a água foi muito rápida. Ao todo, mais de 2 milhões de pessoas foram atingidas no estado. Porto Alegre tinha um sistema de proteção de muros para não alagar, porque é uma cidade no nível do Rio Guaíba. A responsabilidade pela manutenção desse sistema é da prefeitura, mas, nos últimos anos, os prefeitos de características fascistas e neoliberais sucatearam o sistema, que não funcionou quando necessário. Porto Alegre e a região metropolitana ficaram alagadas por 21 dias em razão disso. As pessoas perderam tudo o que tinham, perderam as casas, os móveis, tudo. Então, em alguns lugares, a luta é pela reconstrução das casas, e para que as famílias consigam voltar para onde moravam. Estamos organizando todas essas famílias. O pessoal se identificou com o movimento: reunimos quem perdeu uma casa por enchente, por lama ou pelo lago da hidroelétrica, a luta é a mesma. É preciso reparar os direitos das famílias e, evidentemente, no centro da nossa cobrança estão os governos.
Como parte da proposta de transformar a Colômbia em uma das lideranças globais da transição verde, o presidente Gustavo Petro anunciou, em 2023, que o país deixaria de assinar contratos para a exploração de petróleo e gás natural. Embora tenha sido celebrado por ambientalistas, o anúncio encontrou ceticismo em meio a diversos atores políticos, que apontaram para a dependência da Colômbia de petróleo para atender suas necessidades energéticas internas e garantir receitas para o governo. Houve também preocupação em relação aos empregados da Ecopetrol, a maior companhia petrolífera do país.
A Unión Sindical Obrera (USO, União Sindical Operária), que representa os trabalhadores da Ecopetrol, tenha dado forte apoio à campanha presidencial de Petro, agora se depara com novas tensões com o governo. A Ecopetrol, que tem como acionista majoritário o Estado, é um ativo chave para a economia colombiana, e a USO é uma das mais antigas e mais perseguidas centrais sindicais do país: quase 900 de seus membros foram vítimas de homicídio, ameaças e exílio ao longo das últimas décadas.
Hoje, a USO se encontra em uma conjuntura crítica, com a pressão pela descarbonização desde dentro de uma empresa que encabeçou a produção de combustíveis fósseis na Colômbia. Petro deseja transformar a Ecopetrol em uma liderança em tecnologias limpas. Nos dois primeiros anos de sua administração, o debate central entre o governo nacional e os 25 mil trabalhadores empregados na indústria de gás natural e petróleo tem se articulado em torno de como essa transição ocorrerá.
A decisão recente do Conselho de Administração da Ecopetrol de suspender investimentos na ordem de US$ 3,6 bilhões na Bacia Permiana – um campo que cruza o Texas e o Novo México – pôs à prova a relação entre o governo e os trabalhadores do setor. A Ecopetrol estudou o local de perfuração (fracking) por mais de um ano e meio, e o negócio visava gerar mais lucros para a empresa, estimulando um aumento estimado em 9% na produção de barris. Mas o conselho, alinhado a Petro, rejeitou o projeto, citando preocupações ambientais e econômicas. A decisão acendeu controvérsias entre os trabalhadores do setor de combustíveis fósseis, para quem a descarbonização não deveria demandar a paralisação de novos projetos que aumentariam a produção de petróleo cru.
Para tratar do tema, a Phenomenal World entrevistou César Loza, presidente da USO, para discutir a história do sindicalismo no setor de combustíveis fósseis, os planos do governo Petro de promover a descarbonização da Ecopetrol e a perspectiva de uma transição verde justa.
Uma entrevista com César Loza, presidente da USO
camilo garzón: O que a chegada de Petro ao poder significou para a Ecopetrol?
césar loza: Concordamos com o governo em relação à necessidade de uma transição energética, de tal modo que se chegue a uma combinação de fontes limpas de energia e se diminua gradativamente nossa dependência de combustíveis fósseis. Mas também temos fortes discordâncias. Para uma transição energética sustentável, acreditamos na necessidade de três elementos fundamentais. O primeiro é vontade política. Vários atores precisam ter vontade política para que uma transição energética ocorra. Hoje, os trabalhadores, as comunidades locais, os sindicatos, as empresas, os governos locais e o governo nacional parecem compartilhar esse desejo, então há poucas discordâncias aqui. O segundo elemento tem a ver com nossas fontes de energia: eólica, solar e geotérmica. Também estamos alinhados nesse ponto, pois a Colômbia tem forte potencial para desenvolver esses setores. No entanto, há um terceiro elemento sem o qual uma transição energética não pode acontecer, que são os recursos econômicos. Já afirmamos isso anteriormente: o financiamento exigido para a transição energética deve vir do próprio setor de gás natural e petróleo. Infelizmente, o governo não entendeu isso. O presidente Petro fala constantemente de uma transição energética, mas de onde virá o dinheiro? Qualquer governo, seja de esquerda ou de direita, que proponha uma reforma tributária – como o governo fez em seu primeiro ano – a fim de aumentar as receitas para obter recursos para uma transição energética corre o risco de enfrentar insatisfação popular. Ela não vai acontecer.1
Dissemos ao presidente da República, ao ministro da Fazenda, ao presidente da Agencia Nacional de Hidrocarburos (Agência Nacional de Hidrocarbonetos) e ao presidente da Ecopetrol que apoiamos uma curva básica, com rigor técnico, para um teto de produção de barris – por exemplo, um teto de 750 mil ou 800 mil barris por dia. Tudo o que for produzido acima desse teto deve ser investido na transição energética. Esse compromisso claramente requer uma indústria forte e robusta. Em vez disso, porém, notamos o desinvestimento em diferentes campos de petróleo – nisso estamos em evidente e profundo desacordo com o governo.
Um exemplo é a decisão da Ecopetrol de cortar o orçamento de investimentos deste ano, de US$ 4,5 bilhões para US$ 2,5 bilhões. A decisão terá impacto tanto na exploração quanto na produção de petróleo e de gás natural. Sem falar do arcabouço fiscal de médio prazo projetado para 2026, dada a expectativa de um crescimento da produção da companhia para até 850 mil barris de petróleo cru por dia. Na toada atual, porém, é pouco provável que essa meta seja atingida.
Em uma entrevista em 4 de março, o ministro de Minas e Energia, Andrés Camacho, afirmou que atingir uma produção diária de 1 milhão de barris de petróleo era um grande desafio para o país. Depois, o ministro da Fazenda ecoou esse sentimento. Recentemente, a Agência Nacional de Hidrocarbonetos formou um comitê interinstitucional com a meta de reativar o setor de petróleo e gás natural. A USO pediu para ser incluída nesse comitê, pois ajudar a formatar a política relativa ao desenvolvimento do setor é algo que nos beneficia. Mas há interesses conflitantes. Um exemplo-chave: o Ministério do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável se opõe ao fortalecimento da capacidade produtiva do setor.
cg: Para contextualizar um pouco: qual tem sido o papel histórico da USO na Ecopetrol?
cl: A USO foi fundada clandestinamente em Barrancabermeja em 10 de fevereiro de 1923: a organização celebrou seu centenário no ano passado. O sindicato serviu para defender os direitos dos trabalhadores empregados pela Tropical Oil Company [Companhia Tropical de Petróleo], uma multinacional estadunidense responsável por explorar o poço Infantas 2, descoberto em El Centro, no departamento de Santander. O poço está em operação desde 1918 e é o berço da indústria petrolífera colombiana.
No início, a USO era conhecida por defender os direitos dos trabalhadores e dignificar suas condições com o lema dos “três oitos” (oito horas de trabalho, oito horas de estudo e oito horas de descanso), inspirado na revolta de Haymarket em Chicago. O sindicato embarcou em uma agenda política mais abrangente quando liderou a chamada “greve patriótica” em Barrancabermeja, em 1948, exigindo a melhoria nas condições de trabalho, a nacionalização do petróleo e que o governo conservador então no poder barrasse a concessão de Mares, uma iniciativa que datava de 1909, quando o presidente Rafael Reyes concedeu a Roberto de Mares o direito de explorar petróleo nas florestas de Carare-Opón, no vale do Médio Magdalena.
Como resultado dessa greve, o governo conservador limitou a Tropical Oil Company a explorar petróleo na região até 25 de agosto de 1951; além disso, concordou que a concessão de Mares voltaria ao Estado após essa data. Isso levou à fundação da Empresa Colombiana de Petróleos (Ecopetrol), que se constituiu em agosto de 1951. É por isso que dizemos que, de certo modo, a USO foi responsável pela criação da Ecopetrol. Desde então, a USO tem defendido o petróleo como propriedade pública dos colombianos. Embora o sindicato fosse inicialmente de base, ligado a uma empresa específica, há cerca de 25 anos fizemos a transição para um sindicato do setor. Hoje, representamos trabalhadores de todo o setor de combustíveis fósseis na Colômbia, não apenas da Ecopetrol.
Somos um sindicato de esquerda que defende ideais como os de propriedade pública, ativos públicos e direitos dos trabalhadores. Porém, também somos pragmáticos: nossos trabalhadores querem um sindicato que defenda seus direitos, sua empresa, sua fonte de emprego e seu acordo de negociação coletiva. É claro que o alinhamento do sindicato com governos progressistas e de esquerda é mais fácil, mas as circunstâncias políticas mudam. Apesar de [Juan Manuel] Santos ter sido um candidato da direita, por exemplo, apoiamos sua reeleição em razão do processo de negociação da paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).
Hoje, a estrutura organizacional do sindicato consiste em um Conselho Nacional de Diretores, com 20 membros e o presidente. Existem 28 conselhos regionais em todo o país, e o corpo deliberativo mais elevado do sindicato é a Assembleia Nacional de Delegados. No setor de combustíveis fósseis, somos cerca de 25 mil trabalhadores, e cerca de 16 mil deles são empregados pela Ecopetrol, ainda que isso dependa dos ciclos de trabalho. O número de membros da USO no grupo Ecopetrol é de cerca de 9 mil trabalhadores, e os demais são trabalhadores temporários empregados por terceirizadas e outros operadores. Há outros sindicatos menores, mas somos o mais militante, que lidera a maioria das mobilizações e se envolve mais na ação política.2
cg: Qual é o papel da Ecopetrol na economia colombiana?
cl: Depois dos impostos e tributos, a Ecopetrol é a principal fonte de receitas da Colômbia. Em 2023, ela contribuiu com 58 trilhões de pesos colombianos para o país; isso equivale a 4% do PIB nacional e corresponde à soma das três últimas reformas tributárias nos últimos cinco anos. Na mais recente delas, aprovada pelo Congresso em 2022, o governo tentou fazer as empresas de mineração e petróleo pagar mais impostos, mas neste ano a Corte Constitucional revogou essa provisão, que teria garantido ao governo quase 7 trilhões de pesos em 2023. Agora, o governo precisa reembolsar o dinheiro já recolhido.
As contribuições da Ecopetrol sempre foram significativas para as finanças públicas colombianas. Se a Ecopetrol fosse privatizada, a empresa pagaria royalties e impostos, mas não geraria nada para o governo em termos de lucros, e essa diferença só poderia ser coberta por meio de reformas tributárias que taxassem ganhos privados. É por isso que importa defender contribuições que dependem significativamente das receitas e lucros da Ecopetrol.
Outro fator importante a ser levado em consideração é o preço internacional do petróleo cru: se estiver elevado, os rendimentos da nação tendem a ser melhores. Por exemplo, os preços se mantiveram abaixo de US$ 80 por barril nos últimos três ou quatro anos. Isso após a crise da Covid-19, na qual os preços desabaram a níveis negativos. Algumas empresas chegaram a pagar US$ 20 por barril para armazenar petróleo cru em navios, pois não havia transporte ou distribuição. A queda de preços mais recente havia sido em 2014, quando ocorreu uma crise global dos preços internacionais. A crise teve um impacto negativo para os trabalhadores do setor em todo o mundo, mas especialmente na Colômbia, onde os preços caíram dramaticamente, de US$ 118 por barril de petróleo tipo brent para US$ 37 em 2015.
cg: Você pode comentar sobre a relação da USO com governos anteriores?
cl: Embora o movimento trabalhista esteja constantemente em luta, certos governos foram mais prejudiciais aos sindicatos. As duas administrações de direita de Álvaro Uribe (2002-2010) foram particularmente contraprodutivas para o movimento sindical na Colômbia, em especial para a USO. Em 2003, quando Uribe estava no poder, entramos em greve. À época, o presidente da Ecopetrol era Isaac Yanovich, um reacionário adversário dos trabalhadores que odiava o sindicato. A USO era contra a privatização da Ecopetrol. Havia uma tendência de privatizar empresas públicas colombianas, como a Telecom, a antiga empresa estatal de comunicações, e o sindicato tinha motivos para crer que estavam planejando fazer o mesmo com a Ecopetrol. No fim, a greve teve um preço alto para o sindicato, resultando na demissão de 253 funcionários.
Além das greves, a Ecopetrol sofreu dois grandes golpes sob a presidência de Uribe. O primeiro foi o decreto n. 1.760, de 2003, que tirou dela sua preeminência nos contratos de petróleo, nas parcerias e na gestão dos royalties. Essas responsabilidades foram transferidas para a Agência Nacional de Hidrocarbonetos. O outro grande golpe veio com a Lei n. 1.1118, de 2006, que transformou a Ecopetrol em uma corporação e a autorizou a vender até 20% de suas ações. Esse decreto transformou a natureza econômica da Ecopetrol, fazendo dela uma empresa de capital misto. Seu proprietário majoritário era o Estado (88%), mas também tinha acionistas privados. Ademais, houve reformas trabalhistas e previdenciárias prejudiciais ao movimento trabalhista. Tudo isso fez da administração Uribe, para o movimento sindical, uma das mais conflituosas. À parte essas tensões, a história do sindicato tem sido marcada por violência e repressão.
cg: Você poderia falar mais a respeito dessa violência e repressão?
cl: Nosso sindicato foi uma vítima da guerra suja na Colômbia. Entre o fim dos anos 1980 e o início dos anos 2000, mais de cem líderes e ativistas da USO foram assassinados. A violência contra a USO é parte de uma tendência mais ampla de violência contra sindicatos em meio ao conflito armado. Os sindicatos eram associados às guerrilhas de esquerda e vistos como ameaça aos interesses empresariais, o que os tornou alvo de perseguição dos grupos paramilitares. Foram registrados 1.858 homicídios de membros de sindicatos entre 1986 e 2010, segundo dados do Observatório de Direitos Humanos da Presidência. A Comissão da Verdade documentou 865 atos que vitimaram membros da USO, principalmente nesse período. Houve quem admitisse ter cometido violência física contra líderes sindicais, e mesmo dentro da Ecopetrol alguns usaram violência contra o sindicato.
Em um caso infame, Aury Sará Marrugo, presidente da USO em Cartagena, foi assassinado em 5 de dezembro de 2001. Salvatore Mancuso, um dos principais ex-comandantes dos grupos paramilitares colombianos, mais tarde admitiu que líderes sindicais como Marrugo foram sequestrados e torturados. Depoimentos dados sob a Lei de Justiça e Paz (um instrumento legal instituído no governo de Álvaro Uribe para dar apoio à desmobilização de grupos paramilitares) também revelou que um oficial de segurança da Ecopetrol tinha conexões com os paramilitares. Consequentemente, muitos líderes sindicais evitavam se pronunciar.
cg: À parte os desentendimentos que a USO tem tido com o governo, como é a relação do sindicato com o Conselho de Administração da Ecopetrol e seu presidente, Ricardo Roa?
cl: Temos uma boa relação com o Conselho da Ecopetrol. Eles permitiram nossa participação em reuniões realizadas em Barrancabermeja e Bogotá com a vice-presidência de talento organizacional, mas algumas decisões não dependem do conselho, e sim do governo nacional. Quero deixar isso claro porque, embora a relação entre a USO e a Ecopetrol seja boa, algumas decisões são tomadas no nível do governo nacional.
Um ponto específico de desentendimento com eles é que defendemos uma transição verde sem interrupção na produção de petróleo e gás natural. Precisamos continuar produzindo petróleo e gás natural. Não só porque esse é o ramo tradicional da Ecopetrol, mas também porque isso garante o suprimento nacional de energia. Interromper a exploração de novas reservas é pôr em perigo a Ecopetrol e a economia nacional, dado que nossas reservas de combustíveis fósseis vão durar apenas mais sete anos. Atualmente, produzimos 758 mil barris por dia, incluindo a produção obtida por fracking na Bacia Permiana, nos Estados Unidos. Esse contrato dura até 2025. Temos 580 mil barris de petróleo cru, se descontarmos o gás natural. Se tirarmos os 64 mil barris obtidos da Bacia Permiana, então até o fim do próximo ano teremos uma produção de 516 mil barris de petróleo cru. Se aplicarmos um fator de declínio de 10%, em dois anos teremos 374 mil barris. Em outras palavras, vamos precisar importar petróleo cru para abastecer nossas próprias refinarias, com o problema adicional de que não teremos o que exportar. Essa questão nos preocupa como sindicato e deveria preocupar todo o país. Precisamos prosseguir com a exploração de petróleo e gás natural, seja como for.
Se não houver nenhuma nova descoberta nos próximos dois anos, não teremos petróleo cru suficiente para abastecer as duas maiores refinarias do país, em Cartagena e Barrancabermeja. Hoje, por razões puramente técnicas, importamos barris de petróleo cru para dar conta da demanda da refinaria de Cartagena, mas também exportamos mais de 300 mil barris de petróleo cru.
Não há dúvidas de que a Ecopetrol exerce o papel mais importante no setor de combustíveis fósseis na Colômbia. A empresa garante a autossuficiência energética e refina 440 mil barris por dia, transporta mais de 1,1 milhão de barris de petróleo cru e derivados, produz sete em cada dez barris e gera 80% do gás natural do país. Nesse sentido, investimentos em negócios tradicionais não podem ser suspensos, não apenas por motivos de suprimento de energia, mas também pelas receitas que eles fornecem à nação.
cg: A USO também se preocupa com a criação de empregos. Que propostas ela tem para a Ecopetrol a fim de garantir que a transição energética da empresa não leve à perda de postos de trabalho?
cl: Na assembleia da Ecopetrol realizada recentemente, o governo nacional e o Conselho de Administração aprovaram uma modificação no estatuto da companhia para permitir que ela seja considerada uma empresa de energia, e não apenas de petróleo e gás natural. É importante observar que grandes empresas em todo o mundo estão adotando a mesma tática, e pensamos que é uma boa ideia. A Equinor, a empresa estatal da Noruega, passou por transformação administrativa em 2018, tornando-se uma empresa geradora de energia.
Embora uma estratégia similar possa levar a Ecopetrol a liderar a transição energética na Colômbia, ainda são necessários recursos e mudanças regulatórias significativos. No momento, a companhia petrolífera não pode vender energia limpa; pode apenas gerá-la para consumo próprio. Em termos gerais, acreditamos que a transição energética na Colômbia deve ser conduzida pela Ecopetrol, a fim de que permaneça sob controle estatal. Caso contrário, o negócio será tomado por companhias privadas ou multinacionais, que vão contribuir para elevar os preços da energia.
Há, ainda, a situação trabalhista. Os empregos gerados pelo setor de petróleo e gás natural são de alta qualidade, graças a esforços da USO e de seus trabalhadores. Em contrapartida, empregos gerados por fontes alternativas de energia, como energia solar, tendem a oferecer salários baixos e são em menor número do que o exigido pelos principais centros de geração de energia. Nesse sentido, a qualidade do emprego é diferente, e precisamos garantir dignidade e proteção também para os empregos na energia limpa. Isso poderia ser feito na Ecopetrol, por ser uma empresa com um histórico de garantias trabalhistas para seus empregados.
cg: Como vocês se enxergam em relação ao movimento de trabalhadores do setor de petróleo em âmbito internacional, como os sindicatos de empresas como a Petrobras e a Pemex?
cl: O governo Lula, mesmo sendo de esquerda, não defendeu a interrupção da produção de petróleo e gás natural no Brasil. Ao contrário, o Brasil está incentivando cada vez mais a exploração em alto-mar, com a meta de atingir 6 milhões de barris. Isso não quer dizer que não esteja alinhado à transição verde, e sim que está trabalhando simultaneamente nas duas frentes. Embora o governo tenha um compromisso com a transição verde, não há risco aos empregos no setor de petróleo porque a exploração dos recursos continua.
Aqui, por outro lado, há a ideia de que precisamos parar de depender de combustíveis fósseis o quanto antes. Isso não vai acontecer, por razões técnicas e socioeconômicas. O que vai acontecer com uma região como o vale do Médio Magdalena, que tem uma dependência histórica do setor de petróleo e é um centro de produção, exploração, refino e transporte? Precisamos de uma transformação social que possibilite ao povo contar não apenas com o petróleo, mas também com outras oportunidades econômicas na região. No entanto, isso não pode ser feito do dia para a noite.
cg: Há um debate hoje na Colômbia a respeito dos subsídios para a gasolina e o diesel. O governo Petro, seguindo sua política de desestimular o uso de combustíveis fósseis, decidiu retirar parte desses subsídios, o que levou a um aumento nos preços da gasolina e, agora, do diesel. Os sindicatos do setor de transportes ficaram muito contrariados com essa decisão. Qual é a opinião da USO a respeito dos subsídios?
cl: Desde agosto de 2022, o presidente Petro buscou desmantelar o chamado Fundo de Estabilização do Preço dos Combustíveis, criado em 2007 com o propósito de evitar flutuações. O objetivo dessa criação era abastecer o fundo por meio da cobrança de preços maiores quando o valor internacional do petróleo estivesse baixo, e transformar o excedente em subsídio à gasolina quando estivesse alto. No entanto, desde sua criação, o fundo teve déficit, e o Estado precisou subsidiá-lo. Petro decidiu retirar esse incentivo gradativamente, começando pela gasolina, e agora anunciou que o mesmo vai se aplicar ao diesel. Desde julho de 2022, o preço de um galão [3,78 litros] de gasolina subiu de 9.046 para 14.564 pesos colombianos, um aumento de 61% em termos nominais e de 40% em preços constantes (ajustados pela inflação).
Na Colômbia, a estrutura de preços dos combustíveis fósseis é tal que 35% é composto por tributos. Outro fator que contribui para os níveis elevados é o combustível comprado do Golfo do México, um preço de referência internacional que aplicamos aqui. É por isso que dizem que o governo subsidia cada galão de gasolina com um tanto de dinheiro, porque no Golfo do México o galão de gasolina é mais caro. O governo Petro agora aplicou uma política de liberalização de preços para alinhar os nossos aos do Golfo do México. Fizeram isso com a gasolina e vão fazer o mesmo com o diesel.
Recentemente, o ministro da Fazenda disse que o aumento no preço do diesel seria de 6 mil pesos: 2 mil neste ano e 4 mil no próximo, em duas levas. Isso certamente vai levar a uma agitação social: transportadoras têm ameaçado parar a produção e já começaram a agir nesse sentido.
Nós da USO gostaríamos que houvesse maior rigor técnico e acadêmico para propor uma nova estrutura de preços, em que menos impostos seriam pagos e os combustíveis seriam mais baratos. Outra opção é que a Ecopetrol mantenha uma margem de lucro pelo refino do petróleo cru, depois de ele ser processado e entregue nos pontos de abastecimento. Porém, isso não tem sido possível por um motivo muito simples: se a estrutura de preços mudar, e os impostos forem reduzidos, então as receitas para as regiões serão menores. Há uma questão estrutural aqui, enraizada em como os preços dos combustíveis são determinados.
Tudo isso deveria fazer parte do debate público. As pessoas já estão questionando: se 20% da gasolina consumida no país é importada, mas todo o diesel é produzido internamente usando nosso próprio petróleo cru, por que os preços tanto da gasolina como do diesel deveriam estar amarrados aos do Golfo do México, se a maior parte da produção é local? Esse tem sido um debate de longa data no país. Do ponto de vista do sindicato, a estrutura de preços no país deveria mudar sem ter como resultado nem perdas à Ecopetrol nem a redução das receitas tributárias.
cg: Para encerrar, como você vê o futuro da exploração do petróleo e do gás natural?
cl: Podemos olhar para o exemplo do projeto Komodo 1, que envolve a perfuração de um poço em alto-mar a 40 quilômetros de Santa Marta. O objetivo desse projeto é identificar uma região produtora de gás natural com reservas que atendam às necessidades da Colômbia para os próximos anos. No entanto, o Ministério do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável suspendeu temporariamente o projeto, após solicitar à autoridade ambiental que aguardasse mais informações sobre seus impactos. Essa situação é contraproducente para a Ecopetrol, e para o suprimento de energia que precisamos garantir. Há um pedido no gabinete do ministério para converter mais de 80 poços estratigráficos em poços de produção, mas não houve avanço nesse pedido.
Estamos convocando os órgãos governamentais a coordenar e fortalecer a exploração na Colômbia, incluindo os 300 contratos que estão em desenvolvimento no país. Mencionamos a saída da Ecopetrol da negociação referente à Bacia Permiana nos Estados Unidos, que envolvia comprar da Oxy uma participação de US$ 3,6 bilhões nos ativos da CrownRock. Estimava-se que o negócio aumentaria a produção da empresa em 9%, mas o Conselho de Administração da Ecopetrol o rejeitou, citando uma preocupação fiscal, bem como a oposição do governo ao fracking. Não estamos dizendo que a decisão deveria ter sido outra, mas sugerimos ao conselho que os US$ 3,6 bilhões que não foram gastos deveriam ser repatriados e investidos no país.
Não é razoável manter todos os projetos de expansão da produção em compasso de espera, especialmente na falta de uma estratégia definida para o crescimento econômico da empresa. E, apesar de sucessivos pedidos, ainda não conseguimos obter um encontro sobre esse assunto com o presidente Petro.
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Em 28 de agosto deste ano, Israel lançou o maior ataque militar na Cisjordânia desde a Segunda Intifada, há mais de duas décadas. A operação, que batizaram de “Operação Campos de Verão” [Operation Summer Camps], teve como alvo três cidades no norte do território—Jenin, Tulcarém e Tubas—e matou 39 palestinos. Os militares também feriram 150 pessoas, prenderam dezenas de outras e destruíram a infraestrutura básica das cidades. Trechos de estradas foram removidos, fachadas de lojas foram derrubadas e linhas de água e eletricidade foram depredadas.
Apesar das declarações dos oficiais de segurança israelenses indicando que as incursões poderiam ser o início de uma operação militar prolongada, na verdade, houve retirada de algumas cidades do norte. Enquanto isso, as tropas permanecem ativas, com incursões e prisões registradas no fim de semana em Nablus e Hébron (os militares israelenses também mataram uma ativista de ascendência estadunidense e turca com um tiro na cabeça em uma manifestação em um vilarejo ao sul de Nablus no dia 6 de setembro).
A intensa operação terrestre e os dramáticos bombardeios aéreos recentemente iniciados têm menos a ver com a abertura de uma nova frente de guerra para além de Gaza e do Líbano e mais a ver com uma escalada da atividade militar de Israel no território. As forças israelenses têm passe livre na Cisjordânia ocupada e frequentemente o utilizam com o objetivo declarado de atacar os combatentes da resistência palestina. Desde 7 de outubro de 2023, mais de 650 palestinos foram mortos Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, dos quais mais de 150 eram crianças. Poucos dias antes do lançamento da Operação Campos de Verão, colonos-soldados israelenses atacaram Wadi Rahal, um vilarejo próximo a Belém, e mataram um homem palestino. Duas semanas antes desse assassinato, os colonos perpretaram um pogrom no vilarejo de Jit, queimando casas e assassinando outro palestino. Ainda antes de outubro, 2023 já era o ano mais letal registrado para os palestinos na Cisjordânia.
Esses acontecimentos ocorrem no contexto do genocídio israelense em curso em Gaza e da ocupação militar do território por Israel em vigor desde 1967. A ocupação, amplamente considerada ilegal por toda a comunidade internacional, tem ficado mais forte e violenta a cada ano.
Na manhã seguinte ao início desse novo ataque ao território, conversamos com Fathi Nimer sobre as incursões, as condições de vida após outubro de 2023 e a história da anexação e da ocupação na Cisjordânia. Nimer trabalhou no instituto palestino Mundo Árabe para Pesquisa e Desenvolvimento, na Universidade de Birzeit e no Centro de Estudos sobre Direitos Humanos de Ramallah. Atualmente, é bolsista do programa de política da Palestina em Al-Shabaka.
Entrevista com Fathi Nimer
JACK GROSS: Ontem à noite, as Forças de Defesa de Israel (FDI) deflagraram uma operação contra vários territórios na Cisjordânia, com ataques aéreos em Nur Shams, bombardeios em Faraa, incursões em Beit Fajjar e um cerco a Jenin. O que sabemos sobre o que aconteceu até agora? Trata-se de uma operação limitada ou de uma escalada mais ampla?
FATHI NIMER: Rumores de que uma operação mais intensiva poderia ser lançada na Cisjordânia têm circulado nos últimos meses—e, a rigor, nos últimos dois ou três anos. Um dos motivos é que diferentes grupos de resistência surgiram nos últimos tempos, principalmente nos campos de refugiados, uma das únicas áreas em que os palestinos conseguem se organizar com relativamente menos interferência tanto da Autoridade Palestina (AP), como coordenadora de segurança, quanto do aparato de inteligência de Israel.
Essas áreas se tornaram centros dos novos grupos de resistência armada—que Israel pensava ter eliminado. Desde o início do genocídio, grupos na Cisjordânia procuraram desviar o aparato das FDI de Gaza. Podemos ter uma noção da ameaça representada por esses grupos se pensarmos que, pela primeira vez em quase vinte anos, Israel recorreu ao bombardeio aéreo desses campos. Eles já vêm fazendo isso há dez meses na Cisjordânia, mas não obtiveram os resultados desejados. As FDI acreditam que um ataque massivo poderá causar danos suficientes para dissuadir o prosseguimento da resistência.
O local escolhido pelas FDI para o ataque também é relevante. Jenin é conhecida como um local de resistência desde, pelo menos, a Segunda Intifada—no passado, esteve sujeita a toques de recolher prolongados e a mais assassinatos seletivos do que outras cidades da Cisjordânia. Mas, nesse momento, há também ataques direcionados pelas FDI a locais que não são normalmente associados à resistência armada, como Jericó, por exemplo. A situação na Cisjordânia se deteriorou tão rapidamente nos últimos anos, processo que se acelerou ainda mais desde outubro, que até mesmo áreas que não haviam sido alvo de ataques armados no passado estão sendo afetadas.
Embora o foco atual das FDI esteja no norte da Cisjordânia, a história não termina aí. Em paralelo, há uma grande “campanha de segurança” posta em curso pela AP em Nablus. Nesse tipo de operação na Cisjordânia, nem sempre fica clara a diferença entre as Forças de Segurança Nacional Palestinas e as Forças de Defesa de Israel: o objetivo comum de neutralizar a resistência armada e qualquer coisa que desafie o monopólio do poder da AP faz com que elas trabalhem em conjunto.
É importante ter em mente que o que acontece hoje é o resultado acumulado de uma série de eventos ocorridos ao longo de anos. A meu ver, o 7 de outubro acelerou o processo, mas sempre estivemos caminhando em direção a esse nível de escalada, porque a política de Israel é, como sempre foi, atacar com a maior força possível sem lidar com as pressões subjacentes. E, enquanto as causas fundamentais do conflito permanecerem inalteradas, inevitavelmente, a resistência será perene.
Outro aspecto a ser observado é que, evidentemente, Israel pode implementar um bloqueio econômico e fazer um genocídio em Gaza sem nenhuma repercussão local, mas, na Cisjordânia, há centenas de milhares de assentados israelenses. A Cisjordânia é um território pequeno, com assentados espalhados por toda parte—tanto em termos de concepção quanto de pré-requisito, os assentamentos são construídos para impedir a existência de um território palestino contíguo que possa se tornar um Estado. Os palestinos estão cercados por assentados israelenses e os assentados israelenses estão cercados por palestinos. Isso significa que, para todos os efeitos, um isolamento total é impossível.
Pode ser que a estratégia de Israel seja “viver pela espada”, mas essa espada se estende hoje por três frentes ativas—Gaza, Líbano, e agora a Cisjordânia—, sem contar o envolvimento periódico de outros grupos na região. Numa situação como essa, Israel tem realmente condições de enviar pelotões para cada um dos assentamentos, de botar um tanque em casa esquina? Isso afeta sua cadacidade de responder prontamente ao que acontece nas outras frentes.
Esta análise não é divulgada pela liderança política, que se limita a publicar bravatas. Mas entre as lideranças militares, há um entendimento de que, se perderem o controle da Cisjordânia e uma rebelião eclodir, isso será um problema maior do que os que poderiam surgir em qualquer outra frente, porque as populações ali estão muito misturadas.
DYLAN SABA: Como você disse, houve um aumento da atividade da resistência na Cisjordânia nos últimos anos, principalmente durante a chamada Intifada da Unidade, em 2021. Algo característico daquele momento e dos anos seguintes foi o surgimento de grupos de resistência palestinos não afiliados às fações históricas da política palestina. Agora, o cenário permanece o mesmo ou há um retorno à política de resistência de facções na Cisjordânia?
FN: Minha impressão é que o cenário continua o mesmo. Os jovens, em geral, estão desiludidos com os partidos formais. Para ser franco, a maioria das facções da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) foi amplamente desmobilizada. O Fatah permanece alinhado à AP e, portanto, não está interessado em uma escalada—a rigor, nem todas as correntes do Fatah têm essa posição, mas as facções pró-resistência foram fortemente marginalizadas desde o fim da Segunda Intifada.
Na década de 2000, houve até um estadunidense, o general Keith Dayton, presidindo o que foi chamado de reforma do setor de segurança. Os detalhes desse episódio são complexos—envolvendo tensões entre os governos dos EUA e de Israel e a cooperação com setores de inteligência da Jordânia e com forças militares egípcias—, mas, basicamente, o que aconteceu foi a criação de um novo quadro de soldados treinados pelos EUA, leais à liderança da AP, mas não ao Fatah como partido político. A antiga força de segurança foi desmantelada e essa nova força, treinada pelos EUA, tomou o seu lugar. Essas são mesmas forças que reprimem protestos, inclusive com meios letais, em toda a Cisjordânia.
E isso faz sentido, já que praticamente todo protesto se transforma inevitavelmente em um protesto contra a AP, porque ela é um quase-governo que participa diretamente da repressão aos palestinos. A atmosfera política sufocante da Cisjordânia faz com que as pessoas tenham muito medo do mukhabarat, o Estado de inteligência, um fenômeno tipicamente árabe atualmente. Aqui na Cisjordânia, temos somente o aparelho repressivo do Estado, sem termos um Estado de fato.
Voltando à sua pergunta sobre os grupos de resistência atuais, é importante entender que eles são transversais às facções: os jovens reivindicam afiliações a diferentes grupos partidários sem a sanção oficial desses grupos. Penso que esse é um dos principais motivos pelos quais é difícil reprimi-los ou cooptá-los. Eles não são facilmente pegos via repressão frontal ou suborno. Isso ficou muito evidente no caso da Cova dos Leões, um grupo da Cidade Velha de Nablus que ganhou certa proeminência em 2021. A AP não conseguiu suborná-los com empregos no aparato de segurança, e Israel conduziu uma campanha de um ano para assassinar todos os líderes do grupo, mas não conseguiu desmantelar completamente a organização. É possível que isso seja parte do motivo pelo qual o ataque israelense é tão duro e devastador. A mensagem que eles pretendem passar é que seu poder é totalmente asfixiante e que resistir seria ridículo. Creio que a tentativa de passar essa mensagem é o que explica grande parte da política de “segurança” israelense na Cisjordânia.
DS: Você apontou uma série de ameaças de diversas naturezas que os palestinos enfrentam, desde antes de 7 de outubro, na Cisjordânia—ameaças de incursões militares israelenses, de violência dos colonos e da AP. Como você entende a relação entre essas diferentes forças repressivas na Cisjordânia?
FN: O objetivo da colonização capitaneada pelo Estado de Israel é garantir o máximo de terras palestinas com o mínimo de palestinos.
Mesmo quando ninguém o invoca, esse imperativo ainda anima a corrente principal da política israelense. As forças opressoras que você citou estão todas orientadas para esse objetivo. Os colonos são essencialmente tropas terceirizadas que consubstanciam a colonização da Cisjordânia. É um erro considerar colonos e Estado como coisas separadas.
Quando os colonos intimidam os palestinos, são protegidos pelo Exército de Israel, que, por ser um exército de recrutas, também inclui colonos alistados. Na verdade, há unidades inteiras formadas apenas por colonos (uma dessas unidades, como você deve se lembrar de alguns meses atrás, deveria ter recebido sanções dos EUA, mas os EUA recuaram porque, para o governo Biden, até mesmo esse gesto simbólico de aplicar a Lei Leahy significaria rigor excessivo).
Portanto, essas forças trabalham de mãos dadas. Os colonos agem mais diretamente no roubo das terras e consideram o método de anexação do Exército muito lento e cauteloso. O Exército vê os colonos como um embaraço internacional, mas, no fim das contas, os dois têm o mesmo objetivo, que é maximizar a posse de terras palestinas.
Há muitos métodos de desapropriação, e a expansão dos assentamentos é somente uma das formas de anexação em operação na Cisjordânia. As reservas naturais foram usadas para anexar muitas terras palestinas. Nas Colinas do Sul de Hebrón, uma faixa inteira de terra foi designada como “zona militar fechada”—anexada ostensivamente para fins militares, o que acabou encorajando o assentamento ilegal.
Não obstante a retórica israelense em sentido contrário, uma avaliação do período pós-Oslo sugere que a Autoridade Palestina foi um dos melhores investimentos que Israel já fez: eles mantêm o controle das fronteiras e do espaço aéreo enquanto a AP cuida de todo o “trabalho sujo”, como educação, coleta de lixo, assistência médica, preocupações com a segurança de Israel e todas as questões administrativas básicas e desagradáveis que vêm com a ocupação e que, de acordo com o direito internacional, o ocupante deve prover. E cuida de tudo isso sob condições extremamente restritivas.
Teoricamente, a AP foi criada como um órgão provisório cuja finalidade era estabelecer um Estado palestino no prazo de cinco anos. Ela resultou do processo de Oslo e, mais especificamente, do Acordo de Oslo II. Mas os parâmetros do poder da AP eram muito limitados, tanto naquela época quanto agora. A AP não tem qualquer autonomia ou soberania de fato. Hoje ela é apenas um órgão administrativo ordinário com alguma pompa. Um dos aspectos de Oslo II era o chamado Protocolo de Paris, que dispunha sobre o sistema econômico da AP, sobre como ela administraria sua economia e que relação teria com a economia israelense, porque, para todos os efeitos, a economia israelense engoliu a economia palestina. Isso também foi algo planejado, via um processo de reversão do desenvolvimento que começou já no início da ocupação, quando foram instituídas todas essas legislações para impedir que os palestinos concorressem de alguma maneira com os israelenses e para inundar os mercados palestinos com produtos israelenses. Portanto, os palestinos são uma base de consumidores cativos e uma força de trabalho cativa—dentro das fronteiras de Israel e nos assentamentos na Cisjordânia.
JG: Você poderia explicar melhor como a Cisjordânia é dividida em termos jurídicos, militares e de infraestrutura? O que são as áreas A, B e C? Por que essas distinções existem? O que elas significam para os palestinos que vivem sob ocupação? Além disso, até que ponto as restrições à movimentação e à atividade econômica dos palestinos na Cisjordânia se intensificaram depois de 7 de outubro?
FN: Conforme os acordos de Oslo, a Cisjordânia é dividida em três áreas: A, B e C. A Área A é a menor. Teoricamente, ela estaria totalmente sob o controle palestino, mas, na prática, não há nada que esteja efetivamente sob controle palestino. Na Área B, o controle é compartilhado, supostamente, entre a AP, no que diz respeito aos assuntos civis, e as FDI, no que diz respeito à “segurança”. A Área C, maior pedaço de terra da região, está totalmente sob controle israelense, e compreende a maior parte do que deveria ser o “Estado palestino” após o processo de paz. É nesse contexto que a Autoridade Palestina mantém seu programa político de uma solução de dois Estados.
Os palestinos são impedidos de ter sua própria moeda ou de cobrar seus próprios impostos. Israel cobra impostos sobre tudo, principalmente o IVA e os impostos de importação, o que significa que, se Israel quiser congelar ou se apropriar dessas receitas, poderá fazê-lo—e o faz com frequência, sempre que quer exercer qualquer tipo de pressão sobre a Autoridade Palestina. Ou seja, não temos permissão nem mesmo para alterar nossas tarifas, impostos ou qualquer outra coisa. Temos unidade tributária, mas não temos permissão para mudar nada disso. Há também projetos como o Comitê Conjunto de Águas, que determina como a água é distribuída—uma reformulação nominal de como isso era feito antes da AP—, que garante ao Exército israelense poder de veto em qualquer coisa relacionada a essa distribuição. No fim das contas, é Israel quem determina quais palestinos têm acesso a água, pois é quem concede as licenças.
Por exemplo, não temos permissão para escavar em busca de água além de certa profundidade, e quem é pego fazendo isso tem seu poço cimentado. Quem quiser escavar para obter água, terá de solicitar uma licença. Obviamente, a taxa de rejeição das licenças ultrapassa os 98%. Isso ocorre até mesmo na Área A, que supostamente está sob controle total da AP.
Podemos traçar um paralelo entre o sistema de águas e muitas outras restrições de recursos na maior parte da Cisjordânia, porque esse sistema de controle afeta tudo. Até mesmo para construir uma casa é necessário obter uma licença. O pedido não é feito ao seu governo, a AP, mas à Coordenação de Atividades Governamentais nos Territórios (COGAT) do Exército israelense. E boa sorte para conseguir uma aprovação. É por isso que ouvimos tantos relatos de demolições de casas. As demolições não se restringem a punir pessoas condenadas por “terrorismo”, mas afetam outras famílias sujeitas ao regime de licenciamento de Israel. A propósito, as condenações por terrorismo também oferecem uma visão muito interessante sobre os tribunais militares de Israel: 99,7% dos casos terminam em condenação. Basicamente, você pode ser acusado de, sei lá, ter plantado uma árvore na sua cabeça, e ainda assim ser condenado, porque o sistema funciona dessa forma. Não há como recorrer de nada, se é que haverá algum julgamento. No caso da detenção administrativa, nem sequer há o direito a um julgamento ou ao devido processo legal. Mais de 3.6 mil palestinos estão atualmente detidos dessa forma. A pessoa simplesmente é presa por seis meses, prazo que pode ser renovado indefinidamente, e, em muitos casos, o advogado nem sequer sabe qual é a acusação. Muitas pessoas passaram dez ou vinte anos detidas administrativamente sem saber o motivo.
Portanto, todos esses sistemas tornam a vida na Cisjordânia muito difícil, especialmente na Área C, que está sob controle total de Israel. A Área C é predominantemente rural, e o objetivo é que o maior número possível de palestinos se desloque dessas áreas rurais, porque sua residência obstrui o acesso dos centros urbanos, que estão na área A, a vários recursos— as principais cidades ficam nesse centro, como Ramallah, Nablus e a maior parte de Al Khalil.
E o que está acontecendo agora, depois de 7 de outubro? Como eu disse, a vida já era difícil nessas áreas mas, desde outubro de 2023, tudo se tornou muito mais complicado e imprevisível.
Vocês já devem ter visto imagens de Ben-Gvir distribuindo rifles para os colonos. Mais de 100 mil armas foram distribuídas desde o início da guerra, e os colonos usam essas armas para perseguir, atacar e atirar em palestinos na Cisjordânia sem precisar de grandes motivos. O Exército, é claro, os protege.
Mais de 150 mil palestinos trabalhavam do outro lado da Linha Verde, e todos eles foram proibidos de atravessar a linha para obter seu sustento depois de outubro. Apenas para dar um exemplo de algo que mudou, minha família tem uma pequena fazenda em um vilarejo chamado Kufr Ein, que fica a trinta minutos de Ramallah. Desde o dia 7 de outubro, com os colonos indo para todos os lados e com o fechamento dos postos de controle, agora levamos mais de uma hora para chegar lá, porque temos de pegar uma rota muito tortuosa de estradas estreitas e atravessar vilarejos palestinos que não têm infraestrutura para esse tipo de tráfego. Mesmo antes de outubro, estimava-se que 60 milhões de horas de trabalho eram desperdiçadas todos os anos por causa das restrições de movimentação impostas aos palestinos. As restrições de movimentação incluem postos de controle, desvio de estradas, cercas de separação, o regime de licenças e outras dificuldades diversas.
Todas essas dificuldades nos impedem até mesmo de nos adaptarmos ao sistema de ocupação sob o qual vivemos, simplesmente porque uma economia palestina real ou a autossuficiência dos palestinos não são coisas desejáveis. Um exemplo claro disso é o caso das cooperativas agrícolas, espinha dorsal da economia dos palestinos nos anos 1980, que se tornaram alvo do então ministro da Defesa Yitzhak Rabin. Rabin instruiu o Exército a impor toques de recolher nos vilarejos palestinos durante o período da colheita para que as plantações apodrecessem no campo.
Na década de 1960, Moshe Dayan disse que se Israel pudesse cortar a energia elétrica de Hebrón, seria um meio de controle muito mais eficiente do que mil dispersões de revoltas. E ele estava certo. Temos de escolher entre a privação total ou nos tornarmos partes mais obedientes do sistema—por exemplo, nos afastar do vilarejo de nossas famílias para ganhar um salário do outro lado da Linha Verde, o que, na prática, reduz o número de palestinos nas áreas em que os colonos israelenses vêm procurando estabelecer postos avançados.
JG: Além do controle militar direto sobre os palestinos e seus meios de subsistência na Cisjordânia, houve esforços para transferir parte desse controle do comando militar para o comando civil israelense. Na primavera de 2023—depois de o partido Likud ter votado, em 2017, a favor de uma política de anexação formal e completa da Cisjordânia—, um acordo entre Smotrich e o ministro da Defesa Yoav Gallant começou a transferir vários poderes do comando militar para o comando civil, um passo claro em direção à anexação de jure, e não apenas de facto,da região. Essa transferência de autoridade se acelerou no último ano. Você pode falar mais sobre essas medidas e o que elas representam para a política de colonização de Israel e para os palestinos na Cisjordânia?
FN: Quase sempre que Israel faz algo de jure, isso já foi estabelecido de facto.
Vimos isso com Jerusalém Oriental, que foi tratada como parte de Israel durante décadas, em clara violação ao direito internacional. E aí, na década de 1980, eles disseram “vamos fazer isso de jure” e aprovaram a Lei de Jerusalém, que declarou uma Jerusalém unificada como a capital de Israel. A reação a essa medida foi diminuindo, ninguém mais se importava. É exatamente assim que eles mudarão o status quo na questão do Nobre Santuário. Eles negaram qualquer intenção de mudar esse status por um longo tempo, mas estão fazendo isso nesse exato momento.
Há muito tempo, o bloco pró-assentamento fala abertamente sobre seu objetivo de anexação da Cisjordânia. Essa é uma posição comum em toda a direita israelense.
Por mais interessante que seja o assunto, discutir cenários possíveis para um Estado independente é, a essa altura, um exercício meramente acadêmico, porque os acontecimentos concretos já estão determinando tudo. Alguns poderes de concessão de licenças, como você mencionou, foram transferidos para uma autoridade civil, o que é uma grande violação da Quarta Convenção de Genebra e da legislação de ocupação. Para que uma ocupação seja legal, ela precisa ser temporária, esse é um conceito fundamental da legislação internacional de direitos humanos, que é frequentemente repetido pelos tribunais israelenses. Mas, dada a transferência de centenas de milhares de colonos para o território ocupado, é claramente uma mistificação chamá-la de ocupação temporária. Simplesmente não se investe bilhões de dólares em uma área nem se constrói uma infraestrutura de controle permanente quando se trata de uma medida temporária. E não se transfere o controle para uma autoridade civil quando se está realizando uma ocupação militar temporária. Há décadas que existem evidências muito claras de que Israel pretende anexar a Cisjordânia.
O que essas novas medidas significarão, então, para os palestinos? Penso que o maior efeito que isso terá sobre os palestinos é que, em vez de haver uma taxa de rejeição de licenças de 98%, veremos uma taxa de 100%—uma mudança quantitativa, ou de velocidade. Mas a pergunta que fica é: como será a anexação de jure? Não me parece que eles queiram assumir completamente o controle da Área A. Penso que eles preferem ter uma Autoridade Palestina ainda mais diminuída, talvez governada por alguém como Mohammed Dahlan, na Área A, enquanto assumem o controle total das Áreas B e C.
Eles já estão começando a fixar assentamentos na Área B. Isso causou espanto quando aconteceu pela primeira vez, há uma década, mas hoje é normalizado. Os parâmetros dos Acordos de Oslo estão gradualmente se desfazendo já há algum tempo, mas penso que é seguro dizer que, a esta altura, eles já deixaram de valer totalmente.
Mesmo que ocorra um cessar-fogo, não voltaremos ao estado anterior das coisas. Nem na Cisjordânia, nem em Gaza e nem no ‘481, onde os cidadãos palestinos de Israel, nesse momento, estão basicamente vivendo sob o domínio de um Estado militar. Alguns colegas que vivem dentro de Israel descrevem um nível de censura semelhante ao que existia antes de 1967, quando viviam sob um governo militar.
Após a retirada de Gaza na década de 2000, ninguém queria cogitar a possibilidade de uma reocupação. Os israelenses estavam felizes por terem se livrado desse fardo. Mas agora há pessoas que realmente pedem uma limpeza étnica em Gaza, para esvaziar o território e restabelecer os assentamentos dali—essa é uma mudança radical em relação à última década. Se um retorno à colonização direta for viável novamente em uma área como Gaza, isso será uma ameaça significativa para a Cisjordânia. Será impossível manter o status quo aqui. Nesta semana, o ministro israelense das Relações Exteriores, Israel Katz, sugeriu evacuar os palestinos da Cisjordânia para lidar com a resistência armada. Portanto, apesar da ampla continuidade e do precedente que estou descrevendo, penso que não estamos preparados para o que está por vir.
Mil linhas vermelhas já foram cruzadas. A única maneira de Israel interromper essa política é se houver um custo—político ou econômico—para o seu prosseguimento.
DS: Você falou sobre como as populações de colonos israelenses e de palestinos estão interligadas na Cisjordânia. O número de colonos judeus israelenses nos territórios ocupados após 1967 passou de alguns milhares para quase 500 mil (230 mil em Jerusalém Oriental e 25 mil nas Colinas de Golã, por exemplo). Como esse assentamento foi incentivado, ideológica e economicamente?
FN: A mudança para os assentamentos é fortemente encorajada, porque os colonos têm muitos subsídios e contam com muita segurança. Há seis ministérios do governo que oferecem benefícios de educação, moradia, investimento, assistência social e incentivos fiscais para indivíduos e empresas.
Os assentamentos são definidos como áreas de prioridade nacional, o que significa que recebem subsídios de aluguel, educação e até melhorias em classificações de crédito. Ou seja, mesmo os aspirantes a colonos sem vinculação ideológica com esse projeto podem ser motivados a se mudar para os assentamentos ilegais, onde é possível desfrutar de privilégios da cidadania israelense e há a mesma disponibilidade de tudo que há dentro da Linha Verde, só que por um preço mais baixo.
Os assentamentos não são apenas postos avançados remotos: sua construção requer uma rede de infraestrutura, água, eletricidade, cercas e proteção militar. As estradas exigem a anexação e o recorte de porções maiores do território, o que requer a construção de cordões de segurança e, por sua vez, ainda mais anexação. Estamos falando de água, estamos falando de eletricidade, estamos falando de cercas, estamos falando da presença do Exército. E a presença do Exército também exige estradas, que por sua vez requerem a anexação de outros mais territórios, e também a construção de um cordão de segurança ao redor da área, o que demanda, novamente, a anexação de mais territórios dos palestinos.
JG: Com frequência, se diz que o Plano Allon está na origem da ideia de anexação da Cisjordânia. Todo plano de anexação costuma estar associado à extrema direita da política israelense—hoje em dia, particlarmente, a figuras como Smotrich—, mas você poderia falar um pouco mais sobre essa relação?
FN: O Plano Allon foi originalmente elaborado por Yigal Allon depois da guerra de 1967 e da tomada por Israel da Península do Sinai, das Colinas de Golã, de Gaza e da Cisjordânia. Seu objetivo era delinear as etapas seguintes da expansão de Israel. Ele passou por muitas revisões—inicialmente, Gaza deveria ser completamente anexada, por exemplo—, mas é notável que o projeto para a Cisjordânia tenha permanecido sem grandes alterações, invocando o Vale do Jordão e as áreas ao redor e ao sul de Jerusalém.
Se compararmos o mapa da Área C e o mapa da construção de assentamentos hoje, veremos que o que está sendo feito é muito parecido com o que Israel pretendia fazer logo após 1967. A agenda do plano Allon era criar essa pequena zona autônoma entre Nablus e Jenin para que os árabes “governassem a si mesmos”.
As principais interpretações do Plano Allon não se realizaram de fato, mas os mapas, a lógica por trás deles, as áreas que foram anexadas e as propostas para a construção de assentamentos são todos os mesmos. Isso desmente a associação do estabelecimento dos assentamentos com a direita, com a organização extremista Juventude das Colinas ou com qualquer governo ou corrente política específica de Israel. A lógica fundamental é a mesma há muito tempo, e a associação da anexação e da colonização com a direita é um fenômeno muito recente, fora de sintonia com o registro histórico da limpeza étnica dos palestinos.
DS: Gostaria de falar sobre o direito internacional e a estratégia de abordar juridicamente a questão por meio de apelos às instituições internacionais. Há um amplo consenso internacional de que o projeto de assentamento israelense na Palestina é ilegal, mas, como você mencionou, esse reconhecimento quase nunca é acompanhado de ações ou de quaisquer consequências.
No mês passado, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) deu um parecer consultivo declarando que os assentamentos em toda a Palestina ocupada, bem como a própria ocupação, são ilegais, e afirmando que Israel tem o dever legal de evacuar os assentamentos, pagar indenizações aos palestinos e honrar o direito de retorno. Como esse parecer é recebido pelos palestinos na Cisjordânia? Como a estratégia mais geral de Abbas foi recebida na Cisjordânia antes e depois de 7 de outubro? Você acredita que esse parecer ou essa abordagem abrem novos caminhos para uma atuação jurídica ou criam alguma base para a reivindicação da autodeterminação palestina?
FN: Isso tem alguma utilidade, especialmente do ponto de vista das relações públicas. É útil também para o ativismo jurídico porque, para muitas pessoas em todo o mundo, a ideia de direito internacional ainda tem algum peso. Se um país está violando o direito internacional, então há uma base para fundamentar uma reivindicação moral contra essa prática. Não há discordância, digamos, entre os palestinos nas ruas, de que nossos direitos estão sendo violados, de que a Convenção de Genebra está sendo violada. A questão é: quais as consequências disso?
No que diz respeito à realpolitik, não me parece que isso realmente esteja influenciando o modo como os Estados pensam. Há apenas alguns meses, os EUA declararam que uma resolução do Conselho de Segurança da ONU não era vinculante. Então, o que nos resta? Houve uma rejeição de toda a ordem internacional! A questão de como a decisão da CIJ pode afetar a situação precisa ser posta no contexto do fracasso das negociações pós-Oslo, que simplesmente excluíram o direito internacional da equação. Em cada etapa, os palestinos são pressionados a abrir mão de seus direitos para que as negociações possam avançar e, se os palestinos negarem um acordo ruim, todos os palestinos serão imediatamente considerados pessoas que rejeitam a paz, e essa caracterização justificará mais ocupação e mais anexação, porque supostamente agimos sem razão.
Esse tem sido o modus operandi por trinta anos, com resultados catastróficos. Como ficamos sabendo pelos Palestine Papershá alguns anos, a Autoridade Palestina basicamente abriu mão do direito de retorno consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU. Ninguém consultou os refugiados a esse respeito, mas isso foi sacrificado para que as negociações avançassem. Quando analisamos as posições na negociação, o compromisso de Israel se resume a uma mera promessa de cumprimento do direito internacional.
JG: Outro elemento impressionante do parecer da CIJ é a ideia de que os assentamentos precisam ser despovoados, dada a sua ilegalidade, o que, está claro, é uma etapa logicamente necessária para uma solução de dois Estados, mas também está em óbvia contradição com os fatos que observamos e com a imensa importância dos colonos na política e na sociedade israelenses.
FN: Quando Israel retirou os colonos de Gaza, isso provocou um enorme clamor público—inclusive a renúncia de Netanyahu do governo de Sharon. Ainda existe um grande movimento, o Movimento Laranja, que protesta contra a retirada de Gaza.
Na época, só cerca de 8 mil pessoas foram realocadas. Como Israel sobreviveria politicamente realocando mais de meio milhão de colonos para longe de seus postos ilegais? A Autoridade Palestina até ofereceu a troca de terras—trocar território israelense por assentamentos. Isso foi algo não só ridículo, produto do desespero pela solução de dois Estados, mas também inútil, porque não havia, do lado israelense, vontade de permitir a existência de um Estado palestino. Vemos essa oposição total a um Estado palestino diariamente nos comentários dos governantes israelenses. Portanto, a meu ver, a solução de dois Estados—seja na versão do governo dos EUA ou na de analistas e ativistas—é uma discussão completamente abstrata, uma cortina de fumaça que desvia a atenção dos fatos reais.
Para os palestinos, a questão não é o número de Estados, é a soberania. Em Camp David, nos ofereceram um Estado farsesco, sem controle sobre nossas fronteiras, nosso espaço aéreo e nossa água. Em nosso Estado supostamente soberano, não temos forças armadas nem controle sobre a maior parte de Jerusalém Oriental, designada como nossa capital. Isso é o que foi oferecido aos palestinos, algo completamente sem sentido. O que os palestinos precisam ou querem não entra na equação, e os Estados Unidos—com remessas diárias de armas e imenso domínio em fóruns internacionais, sem os quais Israel não poderia se sustentar—não são uma terceira parte neutra agindo em prol de uma resolução significativa.
O progresso das negociações de cessar-fogo pode ser lido como uma analogia grosseira e brutal de como as administrações anteriores falavam sobre a mudança em direção a uma solução de dois Estados: garantia constante de que a diplomacia está trabalhando duro nos bastidores, prestes a realizar um avanço, enquanto a anexação e a matança prosseguem com apoio inabalável.
Desde o início da guerra em Gaza, a causa palestina ganhou um espaço significativo no sistema jurídico internacional. Além dos procedimentos legais resultantes da própria condução da guerra por Israel—o país é formalmente acusado de genocídio na Corte Internacional de Justiça (CIJ) e há chance de que mandados de prisão por crimes de guerra e contra a humanidade sejam expedidos contra líderes israelenses, inclusive Benjamin Netanyahu—, a chamada abordagem baseada em direitos ganhou impulso como referência para tratar a autodeterminação palestina. Em menos de um ano, mais nove nações1 anunciaram o reconhecimento formal da Palestina e, no último mês, a CIJ emitiu um parecer consultivo declarando ilegais a ocupação e o assentamento israelense em Gaza, em Jerusalém Oriental e na Cisjordânia.2 Esses desdobramentos alavancam a noção de que existe um Estado palestino de jure, apesar da ocupação beligerante de Israel.
Da perspectiva da libertação palestina, a abordagem baseada em direitos tem vantagens significativas em relação ao paradigma que vem a substituir: o arcabouço de Oslo, segundo o qual o estabelecimento de um futuro Estado palestino deveria resultar da negociação entre representantes israelenses e palestinos sob supervisão estadunidense. As negociações bilaterais falharam sistematicamente em razão da profunda assimetria de poder entre as partes e da parcialidade dos Estados Unidos na mediação. A abordagem baseada em direitos evita esses constrangimentos ao recorrer a marcos legais e instituições jurídicas internacionais para reivindicar uma solução.
O tratamento legalista, porém, tem suas próprias limitações. Ao adotar a lógica da partilha do território, os esforços em curso no arcabouço legal existente ignoram a violência fundamental da desapropriação e do deslocamento palestinos que remonta ao início da ocupação israelense em 1967. Em resposta a essas insuficiências, o jurista palestino Rabea Eghbariah publicou um artigo em uma revista acadêmica de direito apresentando a Nakba como um novo conceito jurídico que incorpora de forma precisa os danos infligidos ao povo paltestino. O artigo, “Toward Nakba as a Legal Concept”, atraiu a ira e provocou a censura de acadêmicos e do corpo administrativo da Faculdade de Direito Columbia. Situação semelhante já havia acontecido com uma versão anterior do texto em Harvard. O trabalho foi finalmente publicado pela Columbia Law Review no primeiro semestre de 2024.
Rabea Eghbariah está concluindo seus estudos de doutorado na Faculdade de Direito de Harvard e trabalha com restrições aos direitos civis e políticos dos palestinos como advogado e pesquisador. Na seguinte entrevista, Jack Gross, editor da Phenomenal World, e Dylan Saba, advogado e escritor, conversam com Eghbariah sobre a Nakba e a Palestina no direito internacional.
Entrevista com Rabea Eghbariah
Jack gross: Vamos começar com uma pergunta fundamental. O que há de excepcional na experiência palestina em relação ao direito internacional?
rabea eghbariah: Existem duas perspectivas para analisar isso. Uma delas diz respeito à singularidade desse caso, a outra, à proeminência—mesmo o que não é excepcional se torna particularmente vívido na Palestina. É claro que, em termos históricos, há muitas singularidades no caso da Palestina. Mas meu trabalho também consiste em demonstrar que os marcos legais aplicados à Palestina fazem parte de um sistema jurídico internacional mais amplo e representam as hierarquias coloniais que ele produz em sentido geral. E esse é um caso que permite observar essas estruturas em sua forma mais crua.
A questão palestina é uma história centenária que pode remontar a distintos pontos de origem, mas uma referência chave para entendê-la é a Declaração de Balfour, de 1917, quando o governo britânico se comprometeu oficialmente a apoiar o estabelecimento de um “lar nacional para o povo judeu” na Palestina. A partir daí, o direito internacional foi a estrutura usada para incubar o sionismo na Palestina, por meio do sistema de mandato. Um aspecto singular da Palestina sob esse sistema é que, entre todos os territórios classificados e incorporados pela Comissão de Mandato, foi o único ratificado e constituído como colônia de povoamento.
O sistema de mandato fazia parte da estrutura da Liga das Nações.3 Era um estatuto legal que classificava diferentes nações como Mandatos de Classe A, B ou C. A Palestina era um Mandato de Classe A, o que significava, nos termos dos próprios classificadores, que estava entre os territórios mais próximos da civilização e mais aptos à autoadministração. A Declaração de Balfour foi publicada em 1917, seguiram-se a ela cinco anos de governo militar e, em 1922, o Mandato Britânico na Palestina foi consolidado.
Sob o sistema de mandato, o sionismo e o colonialismo britânico trabalharam em conjunto. Qualquer pessoa pode encontrar isso incorporado e positivado ao longo de todo o texto do Mandato Britânico para a Palestina. A única menção ao gentílico “palestino”, por exemplo, está no Artigo 7, que regulamenta a aquisação da cidadania palestina por judeus. O arranjo decorrente segue essa mesma lógica, apagando 94% da população local sob a classificação identitária negativa como “comunidades não judaicas da Palestina” e garantindo a prevalência das reivindicações nacionalistas judaicas do território. O Mandato tinha o fim de facilitar tanto a imigração de judeus para a Palestina quanto o desenvolvimento de instituições autônomas sionistas, ao mesmo tempo em que suprimia ou negava possibilidades semelhantes aos palestinos.
Tudo isso, é claro, antecede 1948. É a pré-condição da Nakba, o estabelecimento de um sistema que negava ao povo palestino a autodeterminação e a criação de instituições autônomas de governo. O objetivo era claramente declarado e foi explicitamente descrito em uma carta enviada por Balfour ao primeiro-ministro David Lloyd George: “no caso da Palestina, nós deliberada e corretamente nos recusaremos a aceitar o princípio da autodeterminação”.4 O Mandato estabeleceu a infraestrutura jurídica internacional que de fato define o cenário atual da Palestina.
Estamos falando de um projeto colonial de povoamento viabilizado por instituições jurídicas internacionais que culminou na Nakba de 1948. Uma vez construído o cenário, o direito internacional se reafirmou por meio do plano de partilha do território. A partir da revolução árabe contra o Mandato, em 1936, os britânicos essencialmente passaram a buscar uma saída para a situação. Após a Segunda Guerra Mundial, decidiram delegar a questão palestina à recém-constituída Organização das Nações Unidas (ONU). A ONU enviou um comitê para produzir um relatório sobre a Palestina, que apresentou duas conclusões conflitantes: uma linha minoritária favorável ao Estado único e uma majoritária a favor da partilha.5 A linha majoritária do relatório, que obviamente venceu a disputa, continha um excesso de linguagem explicitamente racista, argumentando, entre outras coisas, que os palestinos eram retrógrados demais para a concessão do direito à autodeterminação. Essa linguagem colonialista era ainda muito influente em 1947 e de fato orientou a maneira como a comunidade internacional lidou com a Palestina.
dylan saba: Como você lê o fato de que a partilha—ao mesmo tempo uma forma de estratégia colonial e uma tecnologia jurídica—foi a solução vencedora?
re: A partilha é um mecanismo desenvolvido durante a colonização. Os britânicos a usaram primeiro na Irlanda, depois no subcontinente indiano. Era entendida como um tipo de solução e uma forma de descolonização—uma resposta, nessa medida, a questões de nacionalidade. No entanto, é claro, é um mecanismo que consolidou violentamente, em cada caso, os legados do colonialismo. No caso do subcontinente indiano, implicou um grande e agressivo deslocamento populacional, destruindo a integridade territorial, suprimindo a diversidade de identidades políticas e obliterando a autodeterminação da Caxemira.
Na Palestina, a partilha moldou o projeto colonial sionista de povoamento como um “conflito” entre duas nações rivais e não entre uma sociedade de colonizadores e um povo colonizado. O conceito de partilha também consolidou a lógica sionista de uma identidade judaica exclusivista que deve ser bifurcada6 e separada das identidades políticas árabe e palestina. O mantra dos dois Estados remonta a essa premissa da partilha.
Uma vez que a lógica da partilha foi adotada na Palestina, tornou-se necessário refutar a autodeterminação palestina e romper a integridade territorial para instalar o Estado judeu. A recomendação do Comitê Especial da ONU para a Palestina [UNSCOP, na sigla em inglês] em 1947 foi dar 56% do território palestino para o futuro Estado judeu, em uma época na qual os sionistas na Palestina detinham apenas 7% da área total das terras do Mandato. Os autores do relatório reconheceram que os 56% recomendados incluíam as terras mais férteis, enquanto a outra unidade, isto é, o futuro Estado palestino, talvez fosse economicamente inviável ou necessitasse de ajuda internacional contínua para se sustentar. Obviamente, os palestinos rejeitaram a recomendação, e é importante lembrar que, mesmo depois de 1948, seguiram contestando a partilha e oferecendo horizontes políticos alternativos.
A partilha, no entanto, sequer chegou a ser implementada na Palestina em sua forma original, mas deu origem à Nakba de 1948 e, a partir daí, consolidou um sistema brutal de dominação, fragmentação e rejeição da autodeterminação. O Plano de Partilha da ONU, adotado em novembro de 1947, abriu caminho para a conquista de 80% da Palestina por milícias sionistas e para o deslocamento de mais de 750 mil palestinos de suas casas entre 1947 e 1949. Eles nunca tiveram permissão para retornar. Os sionistas usaram a partilha como pretexto para realizar essa Nakba. Como o próprio Ben-Gurion disse: “Presumimos que esta é só uma situação temporária. Vamos nos estabelecer neste lugar primeiro, nos tornar uma grande potência e depois encontrar uma maneira de revogar a partilha (…) Não enxergo a partilha como uma solução final para a questão palestina”.
O termo Nakba surgiu para descrever essa transformação radicalmente violenta da Palestina de um território de maioria árabe por mais de um milênio para um autoproclamado Estado judeu fundado na destruição palestina. No rescaldo de 1948, a Nakba foi ilustrativa de um problema árabe que se desenrolava na Palestina, e não de um problema palestino que se projetava no mundo árabe. A criação de Israel na Palestina significou a ruptura da continuidade territorial do mundo árabe e, a partir disso, expôs a crise dos nacionalismos árabes. Passados 70 anos, a Palestina virou um caso excepcional, o mundo árabe se fragmentou ainda mais, o projeto do nacionalismo árabe entrou em declínio e os governos árabes na região hoje veem a Palestina como uma questão com a qual precisam lidar.
jg: Em seu artigo, você descreve um episódio histórico que é ilustrativo de como o direito internacional tentou lidar com a especificidade da experiência palestina, buscando usar conceitos já estabelecidos para compreender as atrocidades e reagir a elas. Em um relatório produzido na sequência do massacre de Sabra e Shatila, em 1980, coordenado por Sean MacBride, um grupo de advogados internacionalistas discutiu a pertinência do conceito de genocídio para dar conta dessa forma de violência.
re: O relatório MacBride é muito valioso exatamente pela forma como expõe um processo de raciocínio. Os autores estão escrevendo um relatório sobre a invasão israelense ao Líbano e se deparam com a questão: por que o povo palestino está no Líbano, para início de conversa? Ao tentar entender o massacre de Sabra e Shatila de 1982, eles chegam à conclusão de que o que acontece no Líbano está vinculado ao que acontece simultaneamente no resto da Palestina—as formas de governança e dominação estão conectadas. Então, buscam um arcabouço que lhes permita assimilar essa dupla dimensão.
Diante da necessidade de um arcabouço capaz de captar essa totalidade, vincular essas diferentes coordenadas, os autores expandem o conceito de genocídio. Ou seja, investigam o significado do termo genocídio e o que ele pode incluir. Citam Lemkin e registram a forma como Lemkin tratou a ideia de genocídio cultural. Ponderam como o “genocídio cultural” poderia ser incorporado ao conceito jurídico de genocídio. E tentam expandir a doutrina, mas acabam chegando a um impasse. Há uma opinião majoritária que afirma que esse é um caso de genocídio, e uma opinião minoritária que discorda desse ponto de vista com base na noção de que o genocídio requer intenção específica. Bem, os massacres de Sabra e Shatila inegavelmente são genocidas—e há uma resolução da ONU de 1982 que os reconhece como atos de genocídio. Mas os autores do relatório MacBride não conseguem chegar a um acordo sobre o que é genocídio e acabam recomendando que se estabeleça um comitê internacional para analisar a aplicabilidade do conceito de genocídio ao caso dos palestinos. Foi a única forma de chegar a uma recomendação unânime.
Outro paralelo esclarecedor na comparação entre aquela época e o momento atual é a retórica. O lema de “eliminar o Hamas” é o pretexto atual para o genocídio, enquanto o lema dos massacres genocidas em 1982 era “eliminar a Organização para a Libertação da Palestina”. O relatório sobre Sabra e Shatila lança luz sobre a maneira como a experiência palestina se intersectou com a violência genocida ao longo de 76 anos e, ao mesmo tempo, sobre os limites dos conceitos jurídicos vigentes em captar a totalidade da experiência palestina.
No artigo, argumento que precisamos usar Nakba para nomear os crimes contra o povo palestino. Assim como o Holocausto inseriu o crime de genocídio e a experiência sul-africana inseriu o crime de apartheid no vocabulário jurídico internacional, a experiência palestina pode inserir o crime de Nakba.
Entende-se que sempre há sobreposição na tipificação de crimes jurídicos internacionais cometidos contra grupos de pessoas—o Holocausto, por exemplo, incluiu práticas que podem facilmente ser identificadas como apartheid. Ainda assim, distinguimos entre esses conceitos porque entendemos que, apesar da sobreposição, a violência fundamental que definiu o Holocausto é o extermínio, enquanto a violência fundamental que definiu o apartheid é a segregação. Nesse sentido, se olharmos para a experiência palestina e perguntarmos qual é a violência fundamental que define a Nakba, perceberemos que é o deslocamento.
Mas a Nakba nunca terminou, e sua violência fundamental, o deslocamento, deu origem a uma estrutura de fragmentação que funciona para negar a autodeterminação palestina. O conceito da Nakba tem como objetivo dar atenção a esse processo contínuo de deslocamento, fragmentação e rejeição da autodeterminação—a natureza inconfundível do que os palestinos sofreram no último século.
ds: Você escreve sobre fragmentação em seu artigo. Seu argumento deixa claro que o regime jurídico vigente na Palestina—a fragmentação territorial, as várias condições jurídicas conferidas aos palestinos de diferentes partes do mapa—é resultante da intervenção inicial da partilha. Até mesmo o nacionalismo judaico, agora codificado na Lei do Estado-Nação de Israel de 2018, decorre dessa fragmentação da partilha. Quando olhamos para o sistema de mandato, é nítido como o sistema jurídico internacional serviu aos interesses das potências coloniais e do nascente Estado sionista. Mas o propósito da fragmentação fica menos evidente hoje, diante do extraordinário desequilíbrio de poder entre judeus israelenses e palestinos. Falando em termos claros: por que não dominar, simplesmente? Por que criar todos esses sistemas intrincados?
re: É simplesmente dominação por fragmentação. Quanto mais fragmentado está o grupo, menor é sua capacidade de se autogovernar ou de resistir como comunidade. A fragmentação cria um problema de coordenação. Existe um sistema extremamente sofisticado de dominação que classifica os palestinos em diferentes condições jurídicas e de identidade, de modo que cada subgrupo acaba se definindo por sua própria luta. Num mapeamento inicial, há cinco condições jurídicas elementares para os palestinos: cidadãos palestinos de Israel, residentes de Jerusalém Oriental, residentes da Cisjordânia, residentes de Gaza e comunidades refugiadas ou diaspóricas. Cada condição tem uma dinâmica interna de controle, dominação e relativo privilégio jurídico. É uma inversão do dividir para conquistar: primeiro veio a conquista, depois a divisão. Esse modelo de governança cria palestinos com mais privilégios jurídicos do que outros, subconjuntos dos quais a ocupação pode explorar diferentes atividades, segmentar regimes de trabalho, etc. Em um nível muito elementar, quando Benjamin Netanyahu promove divisões políticas entre Gaza e a Cisjordânia, opera sob essa a mesma lógica, com esse mesmo objetivo.
Quanto à questão da dominação por fragmentação, é útil pensar nesse sistema como a consolidação de um processo começa com a partilha, ou seja, como um caso supostamente binário de fragmentação, mas se alonga por mais de 70 anos. Ao passar do tempo, a partilha acabou se desenvolvendo em um sistema de fragmentação em camadas, tendo em vista que, em 1967, Israel também conquistou o restante das terras palestinas. O que você faz com todas essas pessoas que dominou? Elas agora são, propriamente falando, súditas do seu regime, mas você não pode torná-las todas cidadãs, porque isso sabotaria o projeto de manter uma maioria judaica. Os palestinos representam um problema para o projeto sionista, a mera existência dos palestinos desafia e perturba o sistema, e por isso ele avança a cada passo com o objetivo de fragmentar, controlar e administrar ainda mais essa existência. E esse modelo de controle é estruturado por classificações legais que determinam a condição sociojurídica de cada palestino no sistema.
ds: O que você classificou como fragmentação é uma barreira política principal para a libertação palestina, e é essencial elaborar essa questão. Estou curioso para saber, nesse sentido, como você entende a relevância de desenvolver o conceito jurídico da Nakba. O objetivo é dar nome ao horizonte político e reafirmar a luta contra a fragmentação? É uma forma de mobilizar a pressão externa, incitando defensores internacionais a nomear corretamente a forma de dominação que se pretende combater? Qual é o papel que juristas podem cumprir ao abordar problemas relacionados a circunstâncias históricas ainda em desenvolvimento?
re: Respondendo à sua primeira colocação, eu diria que você está absolutamente certo: unidade e fragmentação são forças que coproduzem a condição palestina atual. Ao longo do tempo, diferentes conjunturas históricas deram mais destaque às manifestações de unidade ou de fragmentação. Em 2021, por exemplo, os protestos contra a limpeza étnica em Sheikh Jarrah rapidamente se expandiram para revelar uma unidade entre palestinos do rio Jordão ao Mar Mediterrâneo. Esse levante popular foi, então, intitulado “Intifada da Unidade”. O genocídio em Gaza, em contrapartida, revelou a força da fragmentação mais claramente. Cada subgrupo de palestinos enfrentou uma realidade material inteiramente diferente, refletindo a profundidade da fragmentação. Ainda assim, seria um erro grave pensar nessa fragmentação/unidade em termos binários. As forças que impulsionaram a Intifada da Unidade, na verdade, estão sempre em jogo. Ao mesmo tempo, o mecanismo propulsor do sionismo é a fragmentação cada vez maior dos palestinos. O conceito de Nakba articula essa dialética e o modo como a existência palestina é definida pela interação entre a unidade imaginada e a fragmentação material e jurídica.
Bem, quanto à pergunta: por que deveríamos tentar criar esse conceito? É realmente um exercício meramente intelectual? O que posso dizer é que vivemos um momento em que a linguagem empregada para definir o que acontece é crucial. O que estou tentando fazer, creio, é apresentar um diagnóstico que aborde a raiz do problema. Há um risco de que, se confinada a um certo subconjunto da questão palestina, a questão do genocídio possa fazer de Gaza uma exceção. A questão palestina se torna a questão de Gaza e a questão de Gaza se torna a questão do genocídio—como se ele não tivesse relação com o que está acontecendo na Cisjordânia, com o que está acontecendo com os palestinos de ‘48,7 com o que está acontecendo em Jerusalém ou com o que está acontecendo nos campos de refugiados. Há uma injustiça fundamental que vem se desenrolando nos últimos 76 anos. Desenvolver um conceito inconfundível de Nakba—como foi feito no passado, iterativamente, com genocídio e apartheid—nos confere a linguagem apropriada para tratar essa fragmentação e dominação em sua totalidade.