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  1. Motores do desenvolvimento

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    Em dezembro de 2021, o presidente Joe Biden anunciou uma proposta de incentivos fiscais para a compra de veículos elétricos (EVs, na sigla em inglês) produzidos por trabalhadores sindicalizados da indústria automotiva dos EUA.1 Os incentivos prometem apoiar a transição para as “tecnologias verdes”, reduzir a dependência dos combustíveis fósseis e “descarbonizar” a economia. E comprometem-se a fazer tudo isso enquanto fortalecem a capacidade de negociação coletiva dos trabalhadores depois de décadas de enfraquecimento dos sindicados por meio de esforços liderados pelo Estado. 

    Como era de se esperar, a proposta foi recebida com críticas. Nos EUA, Honda, Kia, Nissan, Hyundai e Tesla se opuseram ao projeto de lei em razão do incentivo à sindicalização, que beneficia principalmente a Ford, a General Motors e a Chrysler: as três gigantes automotivas de Detroit que notoriamente empregam força de trabalho sindicalizada. Se a questão é a mudança climática, questionaram os analistas de negócios, por que não expandir o crédito para as empresas que já estão produzindo carros elétricos? O plano também fomentou acusações de protecionismo. O governo mexicano argumentou que os incentivos fiscais violam o Acordo Estados Unidos – México – Canadá (USMCA, na sigla em inglês) “pela concessão de vantagem indevida a veículos produzidos nos EUA”.  Como o crédito fiscal para veículos elétricos é uma forma de subsídio, seria contrário às normas da Organização Mundial do Comércio. A Comissão Europeia também se opôs aos incentivos, afirmando que o projeto discrimina as fábricas de automóveis e autopeças da União Europeia, que empregam mais de 420 mil trabalhadores nos EUA. 

    A reação ruidosa aos incentivos fiscais para EVs expôs as tensões entre a adoção de políticas domésticas e as regras de livre comércio no contexto de uma economia regional altamente integrada. Políticas de proteção do emprego destinadas a uma parcela específica dos trabalhadores da região potencialmente reforçariam a insegurança empregatícia de outras parcelas da força de trabalho na indústria automotiva da América do Norte – incluindo a do México, onde essa indústria representa 20% do PIB

    Antes do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA, na sigla em inglês), as políticas domésticas regulamentavam o setor automotivo do México. Previsões de nível nacional e local visavam a construção de um setor manufatureiro intensivo em capital e trabalho, servindo, assim, como fonte de criação de empregos. Esse cenário mudou nos anos 1990. Com a formação do bloco geoeconômico da América do Norte em 1994, a produção de automóveis passou a envolver a política externa, os acordos comerciais e suas regras, as corporações transnacionais e os sindicatos internacionais. Atualmente, a produção de automóveis é muito mais complexa do que a mera instalação de uma fábrica em determinado local. Traçar a história da indústria automotiva mexicana ao longo de seis décadas esclarece como o setor automotivo norte-americano combina atualmente interesses regionais, domésticos e globais, e quais são as consequências provocadas por cada um deles para os trabalhadores, as políticas industriais e, agora, para as estratégias climáticas. 

    A construção do setor automobilístico do México

    Apostando no fortalecimento do desenvolvimento industrial, o governo mexicano decretou, em 1962, que 60% de cada carro vendido no país deveria ser produzido em âmbito doméstico.2 Isso exigia que as corporações automotivas multinacionais firmassem parcerias com  negócios locais para instalar fábricas de automóveis, fortalecendo concomitantemente a oligarquia mexicana e o desenvolvimento da indústria nacional de veículos.3 Uma indústria automobilística  nacional era essencial ao projeto de industrialização do México, já que a produção de veículos era diretamente ligada às indústrias de aço, ferro, petróleo, borracha, plástico e vidro.4

    As políticas domésticas privilegiaram a indústria em vez da produção agrícola de pequena escala. A industrialização induzida pelo Estado beneficiava as corporações do setor automobilístico por meio de políticas protecionistas, incentivos fiscais e investimento em infraestrutura (como as rodovias), à luz do modelo econômico de industrialização por substituição de importações (ISI). O governo também garantiu às montadoras o acesso barato a terras expropriadas de camponeses por meio da declaração de que as fábricas eram de interesse público. A Volkswagen México, situada em Puebla, a aproximadamente 130 km do sul da Cidade do México, foi beneficiada por três decretos de expropriação de terras.5 O Estado também cumpriu um papel central em direcionar a produção: em 1969, por exemplo, o governo passou a exigir que as empresas aumentassem as exportações para equilibrar as importações de componentes de seus veículos.6

    A indústria automotiva impulsionou a ascensão de uma classe trabalhadora assalariada qualificada e majoritariamente masculina no México. O desenvolvimento da indústria nos anos 1960 coincidiu com o aumento do provimento de bens e serviços públicos – saúde pública, crédito imobiliário e subsídios a estabelecimentos do setor alimentício – voltados aos trabalhadores da indústria automobilística e seus dependentes. Enquanto a educação pública era um direito básico de todos os cidadãos, os serviços de saúde e o crédito imobiliário eram acessíveis apenas para aqueles formalmente empregados pelos setores público ou privado do país.7 Esse sistema de serviços públicos suplantava os baixos salários – os trabalhadores frequentemente adotavam turnos duplos ou triplos para cobrir o custo de vida –, e permitia mobilidade social aos empregados da indústria automotiva. O sistema de proteção social priorizava claramente os trabalhadores industriais em relação àqueles empregados em outros setores, como os camponeses. Sob a adoção da ISI, a política nacional beneficiou empresas privadas e estatais e uma força de trabalho majoritariamente masculina dos setores petrolífero, automotivo e elétrico. 

    Os trabalhadores exerciam pouca influência sobre a política industrial. Desde os anos 1930, sindicatos aliados ao Estado dominavam o movimento trabalhista do México e, quando se tratava da indústria automotiva, apoiavam contratos majoritariamente favoráveis aos interesses empresariais, desmobilizando quaisquer agitações da força de trabalho que questionassem isso. O sindicalismo independente emergiu no setor automotivo8 nos anos 1970, incentivando a democracia sindical e o controle sindical sobre as negociações trabalhistas de chão de fábrica. Esses sindicatos, no entanto, eram excluídos dos debates sobre políticas públicas direcionadas ao setor automotivo. Ainda assim, em ciclos políticos de governos trabalhistas, a classe trabalhadora organizada obteve vitórias.9 

    Na década de 1970, o México trocou a estratégia de ISI pela de industrialização orientada para a exportação (IOE). Fábricas pertencentes a corporações transnacionais conhecidas como maquiladoras seguiram sendo beneficiadas pela prática de ISI por ceder instalações para empresas que ingressavam no país. A mudança nas maquiladoras, no entanto, foi a determinação de que os componentes provenientes dos EUA seriam montados no México e então exportados novamente aos EUA para comercialização.10 A ascenção da estratégia de IOE foi concomitante à imposição de medidas de austeridade pelo FMI no rescaldo da crise de dívida externa mexicana dos anos 1980. Consequentemente, entre as décadas de 1980 e 1990, o México cortou subsídios públicos e privatizou empresas estatais e serviços de educação e saúde. A política doméstica se voltou à criação de empregos mal remunerados, submetidos à dinâmica do mercado, e ao desmonte do sistema de proteção social e provimento de serviços públicos que marcou a era de ISI. 

    A virada do NAFTA 

    Embora a adoção da IOE tenha materialmente encerrado a era da política de ISI nos anos 1970, o abandono deste modelo só foi formalizado em 1989, pela edição de um decreto que criava as bases jurídicas para a adoção do NAFTA a nível nacional. A formalização do NAFTA, em 1992, assentou a maior zona de livre comércio do mundo, em linha com o nascimento de uma ordem multilateral de comércio na qual os acordos comerciais efetivamente positivavam a “constituição de uma única economia global“. Nesse momento, o modelo das maquiladoras era dominante na indústria automobilística.11 

    A implementação do NAFTA e a adoção da produção just-in-time no setor automotivo fomentaram a especialização flexível e reduziram os custos de produção. Assim, a indústria foi fragmentada em três processos altamente diferenciados: a produção de componentes ou autopeças, a distribuição e a montagem dos veículos.12 O modelo just-in-time reestruturou drasticamente a produção e o regime de trabalho. As fábricas de automóveis continuaram a montar os veículos, mas terceirizaram grande parte do processo produtivo para centenas de empresas ligadas à manufatura de autopeças, à distribuição de componentes e a atividades indiretamente relacionadas à produção de carros, como zeladoria e serviços de alimentação, além da preparação do transporte de carga. Atualmente, os segmentos de produção e distribuição são os que empregam a maior parte da força de trabalho. Essa dinâmica produtiva abriu o caminho para o acentuamento da flexibilização e precarização do trabalho: ao longo da última década, robôs industriais – que não requerem nenhum operador humano – passaram a substituir trabalhadores do setor automotivo. Segundo um relatório de 2018 produzido por Stephen Woodman para o Center for International Governance Innovation, “em 2011 havia 83 trabalhadores mexicanos no setor automotivo para cada robô (…) Em 2015, a razão caiu para 19 para 1”.

    A implementação do modelo just-in-time também tirou dos sindicatos independentes o controle sobre o processo produtivo, especialmente no que diz respeito à sua capacidade de influenciar as taxas de produção, as políticas de promoção dos empregados e as garantias trabalhistas e salariais. A nível nacional, tanto os sindicatos independentes quanto os aliados ao Estado perderam o limitado espaço que tinham na negociação de acordos, ainda que os independentes tenham mantido maior propensão à organização de greves.13

    Ainda assim, o setor automotivo do México é frequentemente tratado como um grande sucesso do NAFTA. Foi uma indústria que, de fato, gerou empregos e absorveu a participação de uma geração mais jovem no mercado de trabalho nas fileiras da economia formal. A era pós-NAFTA levou a novas oportunidades de emprego nos setores de engenharia, administração e gestão. Em regiões com alta concentração de transnacionais do setor, foram implementadas públicas voltadas à preparação de candidatos a vagas de trabalho preenchidas por testes padronizados. Os governos locais também começaram a pagar um pequeno bônus para incentivar as empresas a enviarem trabalhadores mexicanos para treinamento no exterior. Empregos bem pagos, entretanto, não foram criados no mesmo ritmo, e a maioria dos postos de trabalho abertos no setor automotivo segue marcada pela precarização e baixa remuneração. 

    A era da ISI criou as bases para um modelo de desenvolvimento que dependia do investimento privado para a geração de empregos e do Estado para a expropriação de terras, e o NAFTA consolidou esse modelo. Mesmo sob o NAFTA, o governo mexicano seguiu fornecendo isenções e incentivos fiscais para atrair investimentos na indústria automotiva.14 Segundo um relatório de 2016, produzido pelo Automotive Policy Research Center, os governos estaduais e federal concederam milhões de dólares para a Toyota, Kia, Mazda, Honda, Volkswagen, Audi e para a Pirelli, multinacional de pneus. A Kia e a Audi também receberam doações de terrenos do governo – 533 e 460 hectares, respectivamente. Em Nuevo León, o governo concedeu à Kia US$ 115 milhões em incentivos indiretos, a desoneração da folha de pagamento por 20 anos e mais US$ 197 milhões em gastos com infraestrutura para a apoiar a construção das instalações. O terreno destinado à fábrica da Audi, composto por um parque industrial que abriga os fornecedores e uma nova cidade próxima à fábrica, foi expropriado de camponeses. Além de terras, quantidades sem precedentes de água foram desviadas da população rural para a economia automotiva do México. 

    A nível nacional, as empresas privadas ainda exercem um papel central para o desenvolvimento socioeconômico. São as principais fontes de emprego e, portanto, de acesso a serviços de saúde e moradia. Na era da ISI, a relação com a geração de emprego era semelhante, mas o Estado mexicano cumpria um papel mais significativo no desenho da política industrial. Na era da produção orientada à exportação, em escala global, são as leis que estruturam e regulam o livre comércio que determinam a dinâmica da indústria, liderada pelas corporações. O NAFTA foi o primeiro acordo comercial a estabelecer o sistema de arbitragem de litígios investidor-Estado (ISDS, na sigla em inglês), permitindo aos investidores processar um país por eventual “descumprimento de obrigações” que lhe tenha causado perdas.15 Durante a vigência do NAFTA, o papel do governo era majoritariamente o de promover o investimento enquanto mantinha a força de trabalho o trabalho sob controle.16

    O trabalho na era do Acordo Estados Unidos-México-Canadá (USMCA)

    Em 2020, o NAFTA foi substituído pelo USMCA. Diferente de seu predecessor, o novo acordo aborda diretamente questões relativas ao trabalho, afetando amplamente a regulamentação trabalhista e a organização da classe trabalhadora no México. Os trabalhadores do país já foram positivamente impactados pela garantia de direitos individuais e coletivos prevista no capítulo 23 do acordo. Já em 2021, houve uma reivindicação de que o governo avaliasse potenciais violações de direitos trabalhistas em uma fábrica da GM em Silao e em uma fábrica de autopeças localizada na cidade fronteiriça de Matamoros. Em fevereiro de 2022, os trabalhadores da GM do norte do México elegeram um novo sindicato independente. O presidente do UAW (United Auto Workers, sindicato dos trabalhadores automotivos dos EUA), Ray Curry, e o maior sindicato do setor privado no Canadá,17 o Unifor, declararam apoio à vitória. O USMCA traz também uma cláusula de garantia salarial, exigindo que “40% a 45% dos componentes de um automóvel sejam produzidos por trabalhadores que recebem pelo menos US$ 16 por hora”. Apesar de ser um requisito promissor, ainda não existe clareza sobre sua eficácia para os trabalhadores do chão de fábrica. Até agora, segundo Jesús Seade Kuri, o principal articulador mexicano do USMCA, o requerimento de US$ 16 por hora vem sendo cumprido para os salários de engenheiros e  de cargos administrativos.18

    O USMCA preserva a integração dos setores automotivos do México, dos Estados Unidos e do Canadá, o símbolo da era NAFTA. De acordo com um relatório de 2021 desenvolvido pelo Congressional Research Service dos EUA, por meio desse sistema, “centenas de fornecedores produzem partes que cruzam fronteiras sete ou oito vezes antes de serem montadas na forma final de um carro”. Anteriormente, o NAFTA exigia que 62,5% do valor líquido de um veículo e 60% do custo de suas partes deveriam ser originados na região geoeconômica da América do Norte para obtenção dos benefícios de livre-comércio. O USMCA eleva o valor do conteúdo regional a um intervalo de 70% a 75%, dependendo do automóvel, e divide essa exigência de conteúdo em três grandes grupos: partes estruturais (como o motor), partes principais (como a rede elétrica) e partes complementares (como o sistema de freios). Ao alterar os valores da exigência de conteúdo regional, o USMCA amplia ainda mais a influência sobre a organização da produção de veículos, criando maior dependência mútua entre os setores automotivos de cada país. 

    O NAFTA, e agora o USMCA, transformaram a indústria automotiva em um motor de criação de empregos e de crescimento econômico nos três países signatários. Em 2020, o setor representava 3% do PIB estadunidense, empregando aproximadamente 4,1 milhões de pessoas. No México, gerava US$78 bilhões em receitas anuais, empregando mais de 1 milhão de pessoas, o que faz deste o maior setor produtivo liderado por fabricantes de equipamento original (na sigla em inglês, OEMs – Original Equipment Manufacturers) do país. No Canadá, a indústria automotiva foi responsável por CAN$ 12,5 bilhões do PIB e empregou diretamente mais de 117 mil pessoas, além de outras 371.400 de forma indireta. Os três países estão entre os maiores produtores automotivos do mundo: os EUA são o segundo maior produtor global de carros e o segundo maior produtor e exportador de autopeças; o México é o sexto e o quinto colocado, respectivamente; e o Canadá se encontra entre os doze maiores produtores mundiais. 

    A era dos carros elétricos

    Atualmente, os veículos de emissões zero inauguraram um novo capítulo no setor automotivo norte-americano, mas a era do livre comércio vem sendo desafiada pela competição em torno da energia limpa. Uma vez que os carros elétricos são vistos como um caminho para a redução da dependência de combustíveis fósseis, fabricantes de automóveis sediadas no México se comprometeram a abandonar gradualmente, nas próximas duas décadas, os motores de combustão interna e os carros híbridos. A promessa guiou grandes investimentos: a Ford investiu US$ 420 milhões em uma fábrica de Cuautitlán atualmente destinada à montagem de carros elétricos; em abril de 2022, a GM anunciou um investimento de US$ 1 bilhão para modernizar sua fábrica em Ramos Arizpe, Coahuila, e começar a produzir veículos elétricos em 2023; em março de 2022 o grupo Volkswagen anunciou um investimento de US$ 7,1 bilhões para a produção de carros movidos a bateria em a América do Norte. A GM também divulgou um investimento de US$ 9 bilhões nas fábricas sediadas nos EUA para a produção de veículos elétricos e células de bateria.19 A modernização das fábricas da Volkswagen também se dará em ambos lados da fronteira. Com investimentos concomitantes, as empresas parecem estar comprometidas com a distribuição da produção de automóveis por todo território norte-americano, e não com a recondução completa da produção para um único local. 

    A manufatura de autopeças no México também foi incrementada: em 2019, o país produziu mais de US$ 8 bilhões em componentes automotivos elétricos, um aumento de 8,3% em relação ao ano anterior. Os investimentos também expandiram ao longo cadeia produtiva. A empresa chinesa Ganfeng Lithium, fornecedora da Tesla, anunciou a construção de uma fábrica de reciclagem de baterias de íon de lítio em Sonora. Já a chinesa Contemporary Amperex Technology Co. (CALT) – a segunda maior produtora global de baterias para veículos elétricos – vem considerando investir US$ 5 bilhões no México, no Canadá ou nos EUA. A construção de infraestrutura voltada à produção e reciclagem de baterias é central para o cumprimento dos requisitos de conteúdo local do USMCA, uma vez que, até o momento, a maior parte das baterias é fabricada na Ásia. 

    Para o México, a virada em direção aos carros movidos a energia limpa ilustra uma oportunidade de recuperar alguma parte do controle público sobre recursos naturais que foi perdido ao longo dos 25 anos de NAFTA. Em março de 2022, o Presidente López Obrador nacionalizou o lítio – essencial para a produção de baterias de carros elétricos –, por se tratar de “mineral estratégico” para o país. Com essa medida, o governo mexicano pretende construir um setor público de energia firme e acessível. O anúncio gerou controvérsias. Kenneth Smith Ramos, que liderou as negociações técnicas para criação do USMCA, declarou que a proposta contraria o acordo.20 Já Katherine Thai, representante comercial dos EUA, alegou que a legislação mexicana sobre o lítio é “anticoncorrencial e contrária às proteções e provisões do USMCA”, além de dificultar a elaboração de soluções climáticas por impedir que os três países signatários trabalhem conjuntamente no desenvolvimento de energias limpas

    O incentivo fiscal para EVs de Biden e a nacionalização do lítio de López Obrador evidenciam uma competição emergente entre os EUA e o México em torno de bilhões de dólares de investimentos verdes em potencial para o setor automotivo. Sob o império do livre comércio, no entanto, essa competição não significa simplesmente a concessão de incentivos fiscais, infraestrutura e disponibilidade de mão de obra qualificada, mas também a complicação no cumprimento dos acordos comerciais. O emerge disso é um terreno irregular de relações de poder, moldado pela história das relações exteriores e do poder empresarial de cada um dos países. 

    Esforços para “repatriar” componentes da produção automotiva demonstram como o setor envolve a negociação entre interesses locais, nacionais e globals: políticas de garantias ao trabalho adotadas por determinado país comprometem interesses trabalhistas e corporativos de outro. Ainda assim, há uma continuidade entre a origem do setor automotivo mexicano e seu estado atual. O modelo de crescimento adotado pelo governo do México, centrado na indústria de transformação, na dependência do investimento privado e no corte de gastos sociais, foi o que permitiu a progressiva precarização que prevalece no setor atualmente.

    Ao mesmo tempo, o fortalecimento da força de trabalho – evidenciado pelas recentes vitórias conquistadas pelos sindicatos independentes – pode indicar uma nova direção. O capítulo 23 do USMCA e as novas reformas trabalhistas no México, que preveem contratações públicas e eleições sindicais diretas, permitiram aos trabalhadores mexicanos desafiar os sindicatos corrompidos. Ainda que os coneários de reconciliação de diferentes interesses nacionais estejam em aberto, as mudanças na legislação trabalhista em diversos níveis de governança são acenos esperançosos às possibilidades de sindicalização emergentes.

  2. A política dos preços

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    Em 1959, os líderes da então OCEE, atual OCDE, nomearam um Grupo de Especialistas Independentes “para estudar a experiência do aumento de preços” na história recente dos países capitalistas avançados. Entre o final da Segunda Guerra Mundial e o término da Guerra da Coreia, os planejadores econômicos haviam tolerado o aumento dos preços como consequência insuperável da reconstrução pós-guerra e da especulação de commodities induzida pela guerra. Esses governos esperavam que a inflação acabasse na medida em que as economias se readaptassem após o conflito na Coreia. “No entanto,” escreveu o Grupo de Especialistas Independentes em seu relatório final, “o aumento dos preços provou ser um problema contínuo”. O relatório da OCDE classificou quatro causas para a inflação dos anos 1950: aumento dos salários, precificação monopolista, demanda excessiva e o que chamaram de “preços especiais”: aqueles influenciados, por exemplo, por outros países, por más colheitas ou pela suspensão dos controles governamentais de preços.

    Com a inflação de volta ao centro da agenda econômica, vale observar quão pouco consenso existia–durante um período lembrado pela suposta coesão social e conformidade intelectual–acerca dessas supostas questões de ordem técnica. Em 1961, o relatório final do grupo de estudos mostrou que seus membros não concordavam sequer sobre os achados concretos da pesquisa sobre as causas da inflação. Richard Kahn, o economista britânico nomeado para o grupo, insistiu em incluir uma objeção no relatório final: “Um de nós (Richard Kahn) não acredita que o conceito de ‘demanda excessiva’ forneça um método satisfatório para analisar os processos de inflação.”1

    Se a época capitalista, desde seu triunfo na era vitoriana até sua deterioração durante a Grande Depressão, foi definida pelo desemprego, a invenção da economia planejada nos anos 1920 deflagrou, com a inflação persistente, uma luta paralela. Apesar de ser um debate altamente especializado, os critérios de avaliação técnica sobre o controle da inflação sempre foram traídos pelo dissenso histórico acerca da maneira como os governos deveriam responder ao aumento dos preços.2 Os critérios são esmagadoramente políticos, uma vez que representam interesses conflitantes.  De forma semelhante ao impasse provocado pela guerra, quando o “interesse nacional” vira alvo do mais cuidadoso escrutínio político, o conflito sobre o nível dos preços não é resolvido até que determinados interesses se fortaleçam o suficiente para estabelecer seus próprios paradigmas de mudança ou conservação do estado das coisas como sendo de “interesse público”. O processo pelo qual esse movimento de disputa política estaciona em um entendimento comum é raramente analisado, mas é fundamental para o sucesso de qualquer estabilização. 

    Os ensaios que compõem essa série sobre inflação, em sua maioria, análises históricas, propõem alguns pontos de partida para pensar a política do nível de preços. Eles demonstram como esses critérios políticos determinam a técnica e a escolha do momento apropriados para o controle da inflação. Por meio da mediação ou da exacerbação de determinados aumentos nos preços ou na renda, frequentemente praticadas por meio da concessão de subsídios públicos à demanda ou à oferta, as políticas de preços de um país refletem o equilíbrio de forças e a competição pelo controle do Estado subjacentes. Uma vez que a composição da renda nacional molda, em última instância, o comportamento dos gastos, a exigência sobre a capacidade instalada e potencial e o nível de investimento em economias dominadas pela iniciativa privada, a inflação não pode ser adequadamente compreendida sem voltar a atenção às instituições que determinam como a renda é distribuída. Políticas de controle de inflação, portanto, são uma forma de olhar para o debate em torno de quais interesses privados o interesse público deve ou não proteger e nutrir.   

    Definindo a política dos preços

    Por muito tempo, o controle de preços foi considerado um instrumento importante de soberania.3 O juiz restauracionista Lord Hale, que embasou os comentários de William Blackstone, considerava a capacidade de regular preços excessivos, juntamente com a cunhagem de moeda, poderes fundamentais do rei. E foi uma frase de Hale que emergiu nos Estados Unidos após a Guerra Civil Americana como a opinião dominante sobre a constitucionalidade da regulamentação da indústria: “afetada pelo interesse público”.

    Durante o século XVIII, quando os reinos absolutistas da Europa se ocupavam com o gerenciamento das vantagens potenciais de arrecadação tributária que a emergência de novos centros de produção de lucro permitia, o ataque popular ao poder de uma realeza paulatinamente mais ilegítima envolvia essa antiga prerrogativa. A revogação do controle estatal sobre os preços era entendida como caminho para diversificar ainda mais a divisão do trabalho, expandir o número de produtores baratos, incrementar a produtividade e, assim, reduzir os preços em razão do aumento no volume da produção. O fomento dessas iniciativas privadas era a essência da política radical, inseparável da reinvenção do governo como exercício de soberania popular. O empreendedorismo, que por muito tempo havia estado subordinado ao poder soberano, tornou-se uma liberdade civil. 

    A realeza mal tinha terminado de cair quando os governos republicanos começaram a enfrentar os mesmos problemas de produção, distribuição, estabilidade e mudança. Após a fuga de Luís XVI para Varennes, a Convenção Nacional, diante comércio colonial embargado e da ameaça de invasão estrangeira, se defrontou com a imediata escassez de pão e de commodities americanas: café, açúcar e velas, para citar algumas. Os preços subiram. Para garantir a ordem durante a defesa da república, em 1793 a Convenção Nacional promulgou a Lei do Máximo Geral, inaugurando um duradouro debate interpretativo sobre a economia do controle de preços e do dinheiro.4

    O controle de preços também foi um elemento-chave da legislação estadunidense desde o século XIX. No início da República, os governos estaduais fixavam mínimos legais para a remuneração de carregadores, carroceiros e lenhadores, por exemplo. Após a Guerra Civil, a disputa pela renda real entre três classes–agricultores; grandes corporações de manufatura, processamento e distribuição de bens; e trabalhadores industriais–redefiniu a economia política dos Estados Unidos. Como resposta a esse desafio, na década de 1870, os governos estaduais fixaram os preços cobrados por silos de grão e corporações ferroviárias. Regulamento por regulamento, o controle público sobre os preços ao longo das próximas cinco décadas se expandiu para incluir combustíveis, carne, seguros, moradia e trabalho. As comissões de serviços públicos estabelecidas pelos estados e a criação, pelo Congresso Nacional, da Comissão de Comércio Interestadual (1887), do Federal Reserve Board (1913) e da Comissão Federal de Comércio (1914) foram amparados pelas teorias de “monopólio natural” elaboradas pelos fundadores da American Economics Association (AEA). 

    No rescaldo da Primeira Guerra Mundial, o Departamento de Agricultura dos EUA um programa de investigação, em resposta ao problema da queda de preços agrícolas e da consequente redistribuição dos recursos do campo para a cidade e das comunidades rurais para as urbanas, que teve décadas de duração. Fazendeiros ricos se organizaram e fizeram um insistente lobby pelas leis McNary-Haugen de 1926-1927, que propunham a criação de uma estatal exportadora que garantisse a compra, a preços fixos altos, de commodities excedentes destinadas ao dumping em mercados estrangeiros. A partir do New Deal, com a suspensão geral das leis antitruste sob a National Recovery Administration e a eventual expansão dos efeitos da cláusula constitucional de comércio interestadual pela Suprema Corte, o tabu contra a política de preços foi abertamente confrontado. Durante a Segunda Guerra, um programa de financiado pelo governo para o controle abrangente dos preços levou a produção à capacidade com supressão quase total da inflação. 

    Contemporaneamente, os debates sobre o controle da inflação permanecem carregados de conflitos políticos. No verão5 de 2021, assim que a perspectiva de aumento acelerado no nível dos preços ficou aparente, economistas e jornalistas voltaram a atenção às reuniões do Federal Reserve. O Fed, diga-se, inicialmente anunciou que não começaria a elevar as taxas de juros até 2023: a inflação induzida pela pandeia era “transitória”, garantiu o presidente Jerome Powell a seu eleitorado financeiro. Essa explicação para a inação do Fed entregou a fraqueza da política programática de pleno emprego após décadas de inércia oficial. Cada mês de elevação contínua de preços minava a o apoio público ao programa do banco central. 

    Quando algumas vozes, atentas aos interesses favorecidos pelas decisões supostamente apolíticas da política monetária, questionaram a resposta do governo, o sacerdócio econômico se uniu em condenação. O aumento dos preços e os lucros recordes não seriam, em parte, indicativos da capacidade de exploração das empresas? Um aumento repentino da taxa de juros não seria um tratamento desleixado destinado às origens erradas do aumento de preços? A NPR não demorou para dar voz a Jason Furman, ex-presidente do Council of Economic Advisers (CEA) no governo Obama, que assegurou a milhões de cidadãos: “as empresas sempre querem maximizar seus lucros. Não acho que estejam fazendo isso em maior escala nesse ano do que em qualquer outro”. A página de opinião do Wall Street Journal (WSJ) foi mais direta: “A Casa Branca e os democratas do Congresso decidiram que criticar as empresas pelos aumentos de preços é politicamente mais útil do que admitir que Washington [está em] falta em razão do endividamento federal para a concessão de incentivos equivocados e uma por uma épica criação de dinheiro que estão impulsionando a inflação”. Os dogmas do governo da taxa de juros são tão sagrados que a mera possibilidade de discussão de alternativas foi rapidamente afastada. 

    No meio tempo, repórteres de mercado registravam a perspectiva do empresariado para explicar o aumento nos custos. A sessão de notícias do WSJ reportou que as empresas de energia usaram os lucros gerados pelo recorde de preços para comprar suas próprias ações, ao invés de investir na capacidade produtiva. Executivos de companhias aéreas gabaram: “estamos muito, muito confiantes na nossa capacidade de recuperar mais de 100% do aumento nos preços do combustível”. Os jornalistas de mercado concluíram, de fato: “Empresas ostentam seu poder na precificação”. Questionado, em maio, acerca da causa do aumento de preços, Powell explicou: “é visível que as empresas têm capacidade de aumentar os preços, e que estão fazendo isso”. A possibilidade de contenção ou, ao menos, de escrutínio público dessas decisões, não foi alvo de comentário.

    Apesar da promessa inicial em sentido contrário, o Fed elevou a taxa básica de juros em por meio de dois aumentos combinados de 0,75% a partir de março de 2022. Essa medida só é capaz de moderar a alta dos preços por reduzir o investimento real, o crescimento do emprego e do consumo. “É hora de aumentar os juros”, disse o New York Times a seus leitores. “Ainda que Ele me mate, Nele esperarei”.

    O caso da guerra fria

    Na história da precificação, não há período que defina melhor o debate atual do que a política da Guerra Fria. Escrevendo sobre os esforços de planejamento de Kennedy e Johnson, George Soule, ex-editor da New Republic e diretor geral do National Bureau of Economic Research, explicou que “via de regra, o objetivo dos gestores é expandir a produção e evitar aumentos nos preços”. As administrações de Kennedy e Johnson não tinham as ferramentas legais para essa tarefa. Pontos concentrados de controle nas cadeias de abastecimento—“processadores e distribuidores”, como Soule os descreveu—podiam, em períodos de demanda crescente, cobrar mais por seus produtos do que o aumento nos custos unitários.6 O aumento de vendas diante de custos de produção estáveis ou em queda implica o aumento de produtividade. O objetivo dos economistas de Kennedy e Johnson era garantir a distribuição equitativa dos ganhos da produtividade crescente por meio de um sistema de diretrizes de salário e preço. No entanto, conforme o boom dos anos 1960 aumentou a produtividade, os balanços das empresas acumularam os ganhos por meio da prática de preços mais altos.

    Durante a Guerra Fria, a indústria manufatureira provou ser a mais resistente às diretrizes de preços e lucros. Como Soule escreveu, “quando existem alguns poucos produtores, pode ser mais fácil chegar a acordos ou seguir tacitamente uma liderança na formação de preços”. O esquema legal deixado pela combinação entre New Deal e Guerra Fria retirou do poder soberano o controle abrangente de preços. Embora a Lei de Produção de Defesa da Guerra da Coreia tenha estabelecido estoques militares e subsídios diretos para produtores, a revogação dos instrumentos de controle de preços foi alvo de incansável lobby por parte de fabricantes e processadores de alimentos.

    Em 1961, o Grupo de Especialistas Independentes da OCDE entendeu essa isenção de regulamentação dos preços de manufatura como uma fonte de pressão inflacionária. “No caso dos Estados Unidos”, escreveram, “há motivos para acreditar que tentativas, em algumas indústrias, de aumentar as taxas de lucro na elevação dos de vendas, ou de ter um ponto de equilíbrio mais baixo, contribuíram para o aumento dos preços industriais” durante o período de 1953-1960.7 Levando em conta os custos crescentes, o grupo da OCDE considerou a extensão do aumento de preços durante a década 1950 foi excessiva: “se alguma forma de capacidade de operação fosse atingida, os lucros brutos em certas indústrias seriam bastante altos”. Como Lyndon Johnson e o 89º Congresso logo descobririam, de fato, os rendimentos corporativos foram absorvidos pelo crescente uso de capacidade estimulado pela Guerra do Vietnã. Sob a inflação produzida por esses produtos, o governo era incapaz de segurar o limite dos salários.

    Em busca do pleno emprego, vários governos do Atlântico Norte tentaram restringir a fixação privada de preços e salários por meio da adoção de diretrizes de produtividade, conforme o modelo dos EUA. Em vez dos “controles de preços” das décadas de guerra, o controle de preços passou a ser discutido pelos economistas sob as óticas setorial e de classe, por meio de “política de renda” principalmente direcionadas ao trabalho organizado. Além do Relatório Econômico Anual do Presidente publicado pelo Conselho de Consultores Econômicos dos EUA, a República Federal da Alemanha também recomendou diretrizes, o Commissariat général du Plan Francês previu diretrizes e controles formais em seus Quarto, Quinto e Sexto planos, o governo austríaco estabeleceu uma Comissão de Preços e Salários, e os britânicos publicaram diretrizes por meio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e da Comissão Nacional de Rendas, ambos criados em 1962.

    A teoria econômica por trás desses novos programas de controle da inflação impunha excessivas à organização política de economias mistas. Direitos e privilégios relacionados à propriedade privada remanesciam no conteúdo desses novos conselhos e comissões destinados ao planejamento da macroeconomia. Embora tenham sido um tanto bem-sucedidas no início dos anos 1960, essas diretrizes falharam quase uniformemente diante da aceleração da inflação na virada da década. Na altura dos anos 1970, economistas e gestores públicos haviam tentado maximizar os efeitos das políticas de renda. A Dinamarca havia congelado os salários em 1963 e a Grã-Bretanha em 1966 e em 1972. Os franceses haviam congelado os preços em 1963, os suecos em 1970, e os noruegueses em 1972. Em 1971, a administração Nixon deu seguimento ao congelamento de salários e preços por três meses por meio da instauração de um sistema parcial de controles de salários e preços.

    Nenhum desses esforços foi capaz de deter a inflação mundial. Havia duas razões para o fracasso. Primeiro, dado que o investimento era controlado pelo setor privado, a limitação dos lucros era frequentemente cobrada na moeda da capacidade produtiva. De todos os setores impactados pelo congelamento de Nixon, por exemplo, nenhum era mais importante que o de energia: embora os controles de preço tenham isolado os EUA do choque geopolítico de preços do Oriente Médio, sob a restrição dos lucros, as empresas petrolíferas reduziram a produção e geraram escassez. “As grandes empresas petrolíferas”, disse o senador de Illinois Adlai Stevenson em 1974, “aproveitaram a escassez para cortar o fornecimento para a concorrência remanescente no setor, os comerciantes independentes”. Em vez de confiar apenas nos controles de preço e produção para regular essas empresas privadas, Stevenson e Fred Harris, senador de Oklahoma, propuseram a criação de um “fornecedor de última instância” estatal.8. Contrárias à teoria de que o nível de preços e a oferta eram determinados somente pela demanda e, portanto, opostas à política de austeridade recomendada por ela, essas propostas criativas dos meados dos anos 1970 não chegaram a lugar algum nos EUA.

    Na medida em que o investimento e a produção permaneceram legalmente sob controle privado, as decisões sobre o investimento ficaram reféns de pré-requisitos relacionados às taxas de lucro. O comentário feito por Jack Jones, da Federação de Sindicados do Reino Unido (em inglês, Trades Union Congress – TUC), sobre as políticas nacionais de renda em 1977 foi: “Eu ainda não vi…nenhuma evidência concreta de que os esforços desse setor… tenham produzido qualquer aumento significativo no investimento ou no emprego, e esse é o teste… na minha visão, uma estratégia industrial exclusivamente baseada em conversas educadas com os industriais e com as associações comerciais…não é, de forma alguma, uma estratégia”.9 Avaliando o fracasso dessas experiências na Alemanha Ocidental e na Áustria, o cientista político Gerhard Lehmbruch comentou: “ampliar o campo da tomada de decisões econômicas corporativas para além das políticas de renda (ou, mais precisamente, das políticas de controle salarial) teria implicado, entre outros efeitos, o controle dos lucros e dos investimentos…”. Leo Panitch descreveu as experiências de controle de inflação dos anos 1970 como a “forma específica de colaboração de classe induzida pelo Estado nas democracias capitalistas”, caracterizada por uma “crença na neutralidade do Estado e na sua promulgação do ‘planejamento’”. Panitch entendia que a fé na neutralidade estatal em relação à luta de classes revelava “o vazio desse planejamento.”10

    Interesse social e interesse nacional nas políticas de estabilização

    A segunda causa do fracasso das políticas de renda foi o consentimento popular. Durante a década de 1970, os governos do Atlântico Norte estimularam suas populações a participar das políticas de renda sob o pretexto do “crescimento”, mas a inflação contínua revelou a fraqueza desse argumento como motivo suficiente para garantir o consentimento popular em relação ao planejamento. Se a estabilidade macroeconômica exigisse quedas nos salários reais ou controles sobre os lucros dos empregadores, de que adiantaria? Uma expansão geral, segundo a qual um incremento não orientado dos gastos estimularia todas as linhas da indústria, provou-se impossível sem ser inflacionária. Objetivos públicos específicos, como moradia acessível, aumento da renda de grupos desfavorecidos, crescimento do setor de energia renovável ou promoção de igualdade social competem por espaço orçamentário com objetivos privados, como moradias de luxo, lucros corporativos ou operações de empresas de combustíveis fósseis. Deve haver uma série de sanções destinadas à alocação consciente de recursos destinados a um modelo de expansão da capacidade voltado à promoção da composição da demanda por pleno emprego desejada.

    A guerra, como escreveu Wesley Mitchell, fundador do National Bureau of Economic Research (NBER, na sigla em inglês), altera o cálculo econômico. Em vez de calcular a produção de bens sob a ótica do dinheiro e orientar a produção pelo objetivo de lucro, os gerentes precisam calcular o dinheiro sob a ótica da produção de bens orientada às necessidades de financiamento do projeto social. Os preços são controlados, o governo ingressa no mercado como comprador e como distribuidor, frequentemente distribuindo sob uma lógica não orientada pelos preços. Os recursos são alocados para qualquer direção na qual possam expandir a composição necessária dos bens exigidos pelo programa. A não ser que haja definição acerca de alguma composição final do produto, os esforços do governo para resolver quaisquer gargalos de capacidade no curso de uma expansão geral acabarão revelando outros pontos de resistência ao longo da cadeia de abastecimento. “O fator determinante do limite efetivo das conquistas muda mês a mês e ainda mais ano a ano, e de país a país”, escreveu Mitchell.11

    A descoberta das pessoas comprometidas com o princípio das políticas de renda durante a última crise do capitalismo foi que, para garantir o engajamento privado, o objetivo do planejamento nacional precisa ser publicamente justificado em termos mais específicos do que simplesmente a promoção do “crescimento econômico”. Para que uma estratégia semelhante tenha qualquer chance de sucesso, as instâncias públicas responsáveis por resolver os gargalos devem ter clareza acerca de qual é a composição final dos gastos desejada que seus esforços devem perseguir. Numa democracia representativa, somente as autoridades eleitas podem sancionar moralmente esse planejamento nacional. A pergunta que o historiador Richard Adelstein fez a respeito das reformas legislativas da era progressista foi: “qual é o propósito coletivo que poderia unir os indivíduos e cuja expressão poderia ser o objeto da política?…Qual seria o equivalente público dos lucros privados?”.12 Desde então, mesmo em tempos de paz, os governos seguem sendo confrontados pela mesma questão. Nos Estados Unidos, esse propósito coletivo só foi exprimido no programa de armamentos da Segunda Guerra Mundial e no mosaico específicos dos contratos de aquisição e dos materiais necessários para supri-lo. Não há qualquer paralelo doméstico a isso na história estadunidense.

    O debate sobre as políticas de renda da década de 1970 mobilizou esse ponto teórico subjacente. Como escreveu Gardiner Ackley, economista da Great Society, acerca das políticas de controle de Nixon:

    Há uma crença difundida de que o “consentimento” dos grandes grupos de interesse econômicos–que, a longo prazo, é a única base possível para sustentar o sucesso de um sistema de controle de inflação–só pode ser garantido e preservado por meio da coordenação entre o sistema de restrições de preços e salários e outras ferramentas de política pública que assegurem a progressiva redistribuição da renda na direção específica que a sociedade aprove. De fato, na medida em que a fonte da pressão inflacionária existente resida na insatisfação com a o estado atual da distribuição de renda por parte de um ou mais grupos de poder, enquanto houver resistência de outros grupos a mudanças significativas nessa distribuição, não é provável que haja real “consentimento” para uma política de renda.13

    Nos anos 1970, a busca infeliz por consentimento popular esgotou a fé liberal que a Guerra Fria sustentava sobre o que havia sobrado do estado de bem-estar social.  A necessidade de uma visão social mais ampla levou Ackley, o consagrado tecnocrata keynesiano estadunidense, a uma conclusão tardia, à qual incontáveis líderes de movimentos de transformação social já haviam chegado–da “democracia industrial” dos socialistas da Era Dourada e o “cooperativismo” do Partido Populista ao “Arco da História” de Martin Luther King Jr.–: a conclusão de que aqueles que conscientemente desejam inaugurar novos capítulos para a experiência humana devem, necessariamente, virar a página de sua própria história.

    Nixon conduziu, de seu modo cínico, um ensaio desse renascimento, o que lhe rendeu uma eleição, mas custou o prestígio e a autoridade moral do governo federal estadunidense. O papel dos funcionários públicos no controle de preços, enfraquecido pela exploração da situação promovida pelo governo Nixon, foi alvo de um ataque empresarial coordenado durante os anos 1970. Organizações patronais como a Business Roundtable; centros de pesquisa financiados por subsídios empresariais ou fortunas privadas; como o Cato Institute, o American Enterprise Institute e a Heritage Foundation; e associações profissionais como a Federalist Society reformularam o esquema legal herdado do New Deal. No processo, o judiciário e o Congresso cortaram consideravelmente as atividades de regulação das tarifas do governo. Sob um processo de desindustrialização e crescente liberalização do comércio, conforme os interesses foram se reorganizando na competição pela renda nacional entre o setor energético e o crescente setor de serviços (entre os quais um dos mais refratários era o setor de saúde), o entendimento popular acerca da responsabilidade pelo controle de preços foi deslocado das instituições de produção e distribuição para o Fed e o Tesouro Nacional. Hoje, a norma é que as gigantes do mercado fixem os preços: daí a geração de crise quando o interesse público requer a expansão da demanda efetiva.

    O regime social vigente é moldado pelo estatuto jurídico e pela abordagem teórica que identificam e regulam as causas macroeconômicas da inflação. O arrocho dos orçamentos públicos e a dilatação do controle patronal sobre a produção e os preços nos empurra para a política de taxas de juros. No mercado de trabalho, o impedimento criado pela teoria macroeconômica à reforma estrutural reforça um modelo distributivo que conforma arranjos raciais, étnicos, de gênero e de cidadania próprios. Em muitos estados, por exemplo, os baixos salários recebidos por professores de escolas públicas são o legado de um tempo no qual a profissão era majoritariamente exercida por mulheres, cujas carreiras, de acordo com a expectativa social, eram limitadas ao trabalho de meio período e à renda complementar a de seus maridos. O crescimento do número de empregos não sindicalizados na construção civil, por sua vez, é um exemplo perverso da transformação de normas étnicas e raciais: o desmonte da legislação federal e trabalhista que possibilitou a remuneração dos trabalhadores com salários de fome foi transformado em caso de sucesso em razão da diversidade da força de trabalho do setor. Contemporaneamente, as persistentes desigualdades de renda e oportunidade em razão de raça e gênero no mercado de trabalho têm operado como prerrogativa para um movimento sindical sitiado que corretamente as enxerga como base para novos modelos de organização. Mas, enquanto não houver coordenação entre as políticas salariais, os multiplicadores macroeconômicos e o controle de outros rendimentos, o crescimento de um novo movimento trabalhista será limitado pela escolha pública por recessão ao invés de inflação. Num país regido pela supremacia eleitoral, apenas a formação de um amplo consenso social seria capaz de coordenar o consentimento popular necessário à implementação desse programa.

    Na experiência dos Estados Unidos, a formação desse consenso foi sempre subsidiada por vitórias bélicas. Quando os gestores estadunidenses lançaram mão de símbolos patrióticos e do crescimento econômico para infiltrar uma política de estabilização no arcabouço jurídico da Guerra Fria, o resultado foi uma desorganização profunda da vida nacional. A reivindicação desse simbolismo é ainda mais inadequada para a renovação desse arcabouço jurídico do que foi para a tentativa de estabilização no interior dele. Hoje, a construção de instituições estabilizadoras cuja finalidade seja mais ilustre que a destruição humana é uma tarefa de importância histórica. Diante do retorno do controle da inflação à ordem do dia e da renovação do conflito de classe, os ensaios dessa série oferecem novas perspectivas acerca de problemas incontornáveis das formas modernas de organização social.

  3. Mudança de Regime?

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    O efeito mais importante da resposta econômica do Ocidente à invasão e bombardeio da Ucrânia pela Rússia, após o choque e a surpresa, foi o congelamento dos ativos do Banco Central russo. Na edição de 7 de março de sua newsletter Global Money Dispatch, o estrategista de investimentos do Credit Suisse, Zoltan Pozsar, escreve que o confisco das reservas cambiais da Rússia pelo G7 marca uma mudança de regime no sistema monetário global. Pozsar enuncia esse novo regime de Bretton Woods III. Ele antecipa que soberanos asiáticos, temendo que suas reservas estrangeiras em dólares e euros estejam em risco de expropriação em caso de futuros conflitos de política externa, vão colocar seus fundos excedentes fora do alcance das autoridades financeiras do Ocidente. Para Pozsar, isso anuncia o surgimento de “moedas lastreadas em commodities no Oriente” e sinaliza o desfecho da hegemonia do dólar.

    Em um artigo subsequente, publicado em 31 de março, Pozsar especula que os desenvolvimentos recentes vão levar a China a substituir o Ocidente como o comprador, em último caso, do do petróleo russo. Como resultado, produtores de petróleo terão que ser redirecionados da rota Leste-Oeste, mais rápida, via Canal de Suez, para uma passagem mais longa (requerendo transferências de navios) da Rússia para a China. A geopolítica vai moldar a reorganização das redes de infraestrutura real, tornando mais lentas as cadeias de abastecimento e aumentando o custo do crédito. Pozsar prevê que essa rearrumação dos fluxos globais de commodities e dinheiro pode antecipar uma nova ordem econômica mundial, na qual a China substituirá os EUA como a maior hegemonia monetária. O petrodólar, ele imagina, será substituído pelo petro-yuan.

    A análise de Pozsar – assim como a resposta de Adam Tooze a ela – dá conta da assimetria na economia mundial: entre as economias avançadas que dominam as finanças globais e os países em desenvolvimento que produzem a maioria (cerca de sessenta por cento) do PIB mundial. A Ásia talvez seja o centro gravitacional da manufatura mundial, mas as empresas europeias e norte-americanas ainda comandam a maioria dos lucros embutidos nas cadeias globais de suprimentos. Essa tensão na economia global não deve ser resolvida tão cedo, mas tem se tornado cada vez mais turbulenta. A instrumentalização da política comercial pela administração anterior, feita pelo Partido Republicano, foi apenas reforçada pela atual administração democrata. O discurso recente da secretária do Tesouro, Janet Yellen, defendendo a “amizade de cadeias de suprimentos” — onde os EUA fortalecem os laços comerciais com aqueles com os quais compartilham interesses estratégicos e “valores fundamentais,” enquanto cortam com os demais— reflete o novo clima. (No seu discurso, Yellen também defende a revitalização de Bretton Woods com base na sua visão de que a ordem econômica baseada no dólar ” beneficia a todos nós”).

    Para compreender essa emergente ordem econômica mundial, é necessário complementar a famosa abordagem “matriz de balanços” de Hyun Song Shin para a globalização financeira, com uma lente que veja o sistema global do dólar como uma matriz de domínio monetário, militar e legal. Estamos testemunhando o crescimento de um novo capítulo neste sistema — se estivermos em uma nova era chamada Bretton Woods III, ela é a forma mais instrumentalizada do sistema global do dólar até agora.

    Bretton Woods I

    De 1952 a 1973, Bretton Woods I forçou a sujeição de outras moedas ao dólar. Obter ouro exigia a conversão de outras moedas, como a libra esterlina ou o franco francês, em dólares, que eram os únicos conversíveis em ouro. A dominação do dólar, portanto, dependia de uma taxa de câmbio estável entre dólares e ouro. Isso significava limitar a oferta de dólares — que eram impressos de maneira fácil, quando comparado com a produção de ouro, uma mercadoria escassa. Uma crescente demanda por dólares no final dos anos 1960 tornou cada vez mais difícil manter uma paridade fixa entre dólares e ouro. Em agosto de 1971, temendo um colapso do dólar, o presidente Nixon desvinculou a moeda do ouro. Os detentores de dólares não podiam mais ir ao guichê do banco e trocar a moeda por ouro. De fato, a ordem monetária internacional conhecida como Bretton Woods chegava ao fim.

    A decisão de Nixon de tirar o dólar de sua ligação com o ouro foi acompanhada da ameaça de sanções comerciais, a menos que os europeus valorizassem suas moedas, tornando as exportações dos EUA mais baratas e atraentes para o mercado mundial. Para seus colegas estrangeiros do G-10, o secretário do Tesouro de Nixon, John Connally, deu uma declaração infame: o dólar “é nossa moeda, mas é o problema de vocês.” O abandono dos Estados Unidos da sua própria gestão do dólar global resultou em mais de uma década de desordem econômica marcada por alta inflação e desemprego.

    Pozsar compara o momento atual a essa ruptura estrutural nos regimes monetários. Mas não estamos de volta a 1971. Quando os mercados pareciam imperturbáveis na primeira semana da guerra russa na Ucrânia, nas palavras do presidente do Fed, Jerome Powell, foi porque “nós institucionalizamos o fornecimento de liquidez“. Powell se referia às linhas de swap e instalações de repo do Tesouro, tornadas permanentes no verão passado, que estão prontas para oferecer dólares a bancos centrais estrangeiros e mercados monetários, em caso de turbulência no mercado. Na comparação com a saída abrupta de fluxos financeiros da China e à ampliação dos spreads da dívida soberana na periferia europeia nos dias seguintes à invasão da Ucrânia, o dólar se fortaleceu e as expectativas de inflação nos EUA pareceram bem ancoradas, em parte por conta das garantias do Fed de que iria estabilizar os mercados de financiamento em dólares como intermediário, em último caso.

    Como guardiões do dólar – envolvidos na criação e emissão da moeda, bem como na compensação e liquidação de pagamentos, o Federal Reserve e o Tesouro dos EUA possuem um poder inigualável sobre o sistema financeiro mundial. Um sistema financeiro mundial assimétrico, sustentado por uma única moeda, estimula a instabilidade. Deixar o dinheiro global à mercê das vicissitudes dos mercados de câmbio globais resultou em décadas de crises financeiras, principalmente nas periferias do sistema financeiro global. Entretanto, quando uma gigantesca bolha financeira estourou no epicentro da ordem mundial do dólar em 2007, as intervenções para combater a crise tornaram-se parte central do mandato do Fed. O intervencionismo tornou-se seu nova mantra.

    Se as sanções são o punho de ferro, as linhas de swap são a luva de veludo da ordem global dolarizada. Nas últimas duas crises financeiras globais, as trocas de dólares do Fed para bancos centrais estrangeiros – totalizando quase um trilhão em 2008 e meio trilhão em 2020 – foram concedidas a uma dúzia de bancos centrais. Depois da crise financeira global de 2008, o dólar emergiu ainda mais poderoso em seu papel de moeda global de reserva e veículo de comércio. O ciclo financeiro global do dólar pós-2008 significa que a moeda norte-americana dita as flutuações no comércio mundial, nos empréstimos internacionais, nos retornos do mercado de ações e no crescimento global. Em caso de falta de autonomia monetária e fiscal, governos enfrentam restrições orçamentárias mais rigorosas, ciclos de negócios mais voláteis e, em tempos de crise, calotes soberanos. A infraestrutura monetária da hegemonia dos EUA é mais ampla e arraigada do que nunca.

    Bretton Woods II 

    Sem dúvida, o confisco das reservas cambiais da Rússia pelo G7 incentivará a China a reavaliar sua estratégia de acumulação de reservas em dólares e euros. Isso pode até acelerar um impulso para a internacionalização dos mercados em renminbi no futuro, e países podem ser incentivados a trocarem o SWIFT pelo Cips, o sistema chinês de pagamentos transfronteiriços menos utilizado, que abrange 100 nações. Mas, por ora, a China permanece firmemente inserida na vasta infraestrutura monetária dos EUA. Seus empréstimos – aquisições de títulos do Tesouro dos EUA ou financiamento da Iniciativa Cinturão e Rota – continuam sendo, majoritariamente, em dólares. Apesar de toda a conversa sobre Rússia e China estarem alinhados contra as potências ocidentais, parece que a China, no momento, está bloqueando o financiamento das vendas de petróleo russo para evitar sanções secundárias impostas pelos EUA. As externalidades de rede são uma força poderosa na economia.

    Enquanto Pozsar argumenta que o Banco Popular da China “pode dançar ao som de sua própria música”, o país asiático não pode escapar do fato de que a economia mundial continua a dançar ao som do dólar. As reservas cambiais dos governos, o comércio global e a dívida internacional estão todos desproporcionalmente denominados em dólares. Economias emergentes orientadas para a exportação dependem dos consumidores das economias avançadas para adquirir o que produzem. Os países acumulam suas receitas de exportação em ativos financeiros denominados em dólares e euros. Desde o final da década de 1990, a economia global foi caracterizada pelo fato de que economias orientadas para a exportação atrelam suas moedas ao dólar. As receitas com exportações foram direcionadas para as reservas cambiais denominadas em dólares e para os fundos soberanos de países exportadores de manufaturas e commodities. O arranjo foi provocativamente descrito por Michael Dooley e Peter Garber como “Bretton Woods II“, uma troca colateralizada de dívidas em que as reservas soberanas denominadas em dólares supostamente funcionavam como garantias para respaldar investimentos corporativos multinacionais em nações anteriormente comunistas, a exemplo da China.

    A hipótese de Bretton Woods II partia da ideia de que a hierarquia financeira global era estável. A China acumulou mais de três trilhões e meio de dólares em suas reservas cambiais. Parte disso é composta por recursos que poderiam ter sido gastos para melhorar o bem-estar social dos cidadãos chineses. Duas décadas depois, a massiva acumulação de ativos denominados em dólares continua a sustentar o dólar. A questão é: os bancos centrais estrangeiros ainda estão dispostos a correr riscos desproporcionais, comprando grandes quantidades de títulos de baixo rendimento em dólares ou euros, quando emissores de moeda forte demonstraram a capacidade de expropriar suas reservas cambiais?

    Em um novo artigo, Dooley, Garber e David Folkerts-Landau afirmam que os eventos atuais confirmam sua tese de Bretton Woods II. Para eles, as sanções não apenas são justificadas, mas, de fato, compõem o resultado “natural”, caso os países descumpram o “contrato social global”. Uma garantia deve ser exercida, caso os atores se comportem mal. Para eles, o “sequestro” dos ativos russos serve de exemplo para outras nações de que os EUA são capazes de exercer seu poder para usurpar ativos em dólares. As apreensões, argumentam, só reforçarão para as economias “geopoliticamente arriscadas” que elas devem fornecer mais garantias para participar das cadeias de suprimentos globais.

    Pozsar arrisca que a China não vai mais estabilizar a supremacia global do dólar no futuro; que, por uma variedade de motivos – desde a escassez de recursos diante das mudanças climáticas até a necessidade crítica de commodities na infraestrutura verde – os países do Oriente vão se vincular às commodities. Ele deixa de mencionar que, ao contrário da China, os EUA são um importante produtor de petróleo e gás. Ironicamente, a guerra tem sido bastante benéfica para a indústria de combustíveis fósseis dos EUA. A liberação sem precedentes das reservas estratégicas de petróleo dos EUA para amenizar as perturbações no fornecimento causadas pela guerra foi acompanhada de penalidades contra empresas americanas que não estavam perfurando mais petróleo. A recém-anunciada força-tarefa conjunta da administração Biden com a Comissão Europeia (que visa chegar à chamada segurança energética, afastando a Europa da energia russa) praticamente garante um mercado europeu maior para o gás natural liquefeito (GNL) dos EUA, pelo menos até 2030. O compromisso de ajudar a garantir contratos de energia para fornecedores de GNL dos EUA representa uma total reviravolta para a Europa, que tinha interrompido novos contratos de GNL dos EUA devido às preocupações ambientais, sociais e de governança (ESG). O aumento nas exportações de GNL dos EUA para a Europa é apenas um indicativo de como os EUA está prestes a emergir fortalecido pela crise atual.

    Armando o dinheiro mundial

    Uma perspectiva ingênua sobre Bretton Woods passa por uma visão benigna da hegemonia do dólar, mas o dinheiro mundial sempre foi geopolítico.

    No meio do século XX, a libra esterlina ainda financiava quase metade do comércio mundial. O petróleo extraído dos campos de petróleo iranianos por empresas britânicas era vendido em libras esterlinas. Em 1950, o governo britânico determinou que os membros da área da libra esterlina – seu bloco de moeda colonial que exigia que os governos membros depositassem seus ganhos em moeda em Londres – reduzissem suas compras de petróleo em dólares, produzido por empresas americanas, e comprassem, ao invés disso, “petróleo em libras“. Apesar de ter deixado a Commonwealth, o Egito foi coagido a aceitar o mesmo acordo. (Quando o Egito pediu para converter seus saldos em libras esterlinas em dólares, ao sair da união colonial, o Reino Unido quebrou seu acordo com o país africano, suspendendo a conversibilidade da libra, assim como fez anteriormente com as reservas de câmbio da Índia). Em 1951, quando Mossadegh nacionalizou os ativos da Anglo-Iranian Oil Company, os britânicos impuseram um bloqueio de sanções ao Irã. Até 1953, uma operação conjunta entre a CIA e o MI6 havia destituído Mossadegh do cargo. Quando Gamal Nasser nacionalizou a (britânico-francesa) Suez Canal Company, em 1956, interrompendo o movimento de petróleo em libras pelo Mediterrâneo, Grã-Bretanha, França e Israel ocuparam o canal de Suez.

    Desde 1950, quase metade de todas as sanções globais foram impostas pelos EUA. Economias como o Irã – em sanção feita pelo presidente Jimmy Carter em 1979 – foram impedidas de participar plenamente da economia global por décadas. A globalização da década de 1990 trouxe consigo um aumento nas sanções. Os efeitos da crise financeira global de 2008, por sua vez, trouxeram outro aumento geral. O unilateralismo é uma das características definidoras do regime de sanções: elas foram impostas, sobretudo, por estados europeus a nações africanas.

    Impostas por estados poderosos aos menos poderosos, as sanções são a face coercitiva e desagradável da economia global. Não é inédito para as potências ocidentais expropriar ativos do banco central de outro país. Ainda em 2018, o Banco da Inglaterra confiscou US$ 1 bilhão em ouro venezuelano mantido em seus cofres. Isso ocorreu apesar das normas de imunidade soberana estrangeira nas leis dos EUA e do Reino Unido que claramente dizem respeito à exceção soberana, ou seja, determinando que haja imunidade contra a apreensão de ativos.

    A retirada dos Estados Unidos do Afeganistão parece ser um caso de teste para o uso de sanções como arma econômica pela administração Biden. A redução das tropas dos EUA em agosto de 2021 pôs fim aos envios volumosos de dólares – que eram entregues semanalmente paletes transportados em aviões – para Cabul. (Economias com crédito fraco e sistemas bancários dependem de dinheiro em espécie, e o dólar é dinheiro, sem dúvida.) A retirada militar foi seguida pela guerra monetária. Impondo sanções financeiras ao novo governo Talibã, o Tesouro dos EUA bloqueou o Da Afghanistan Bank, o banco central do país, de acessar suas reservas cambiais mantidas no Fed de Nova York. O Afeganistão, por seu turno, depende de leilões de dólares para definir sua política monetária. As sanções paralisaram o funcionamento do DAB, catalisando uma crise bancária. À medida que os dólares desapareciam, a economia do Afeganistão implodiu. Em fevereiro de 2022, usando a Lei de Poderes Econômicos de Emergência Internacional, a administração Biden consolidou e congelou as reservas cambiais do Afeganistão mantidas no Fed. Mais tarde, naquele mês, confrontada com a piora da fome no país, os EUA relaxaram algumas de suas sanções.

    Os últimos meses testemunharam a extensão dessa guerra econômica. O rol de sanções dos EUA contra a Rússia incluiu o bloqueio de instituições financeiras russas para transmissão e compensação de pagamentos via infraestruturas financeiras como o SWIFT, além da apreensão dos ativos no exterior de Putin e seus associados. Essas ações foram possibilitadas pela proteção legal dos poderes de emergência, cujo uso mais refinado remonta ao USA PATRIOT Act de 2001. A guerra econômica também envolveu um conjunto de intervenções diplomáticas. Isso incluiu, por exemplo, enviar representantes americanos à Venezuela para negociar a reabertura de suas reservas de petróleo para os mercados mundiais (o que requer a remoção das sanções dos EUA ao país); convencer membros da OPEP a produzir mais petróleo para conter os aumentos nos preços da energia; uma declaração do G7 na qual os EUA se uniram à Europa, comprometendo-se a limitar os preços dos combustíveis fósseis, se necessário; e enviar o vice-conselheiro de segurança nacional dos EUA e arquiteto das sanções, Daleep Singh, à Índia para repreender o governo local por comprar petróleo russo com desconto (nenhuma raiva semelhante foi dirigida aos alemães, que continuaram comprando energia russa). Exercer pressão sobre nações produtoras de petróleo para aumentar a produção – enquanto se assegura aos cidadãos do G7 que a independência energética está intrinsecamente ligada à energia limpa a longo prazo -, criar leis a respeito de novas regulamentações sobre criptomoedas e avançar com um dólar digital apoiado pelo Fed foram algumas das medidas tomadas pela administração Biden. Esses esforços hercúleos para estabilizar a ordem do petrodólar aconteceram após um dilema político enfrentado pelo Fed, no qual conter a inflação por meio de aumentos nas taxas de juros provavelmente teria um impacto prejudicial na economia mundial.

    A escala e o alcance das sanções financeiras à Rússia e sua natureza tática em evolução – que inicialmente visavam os dois maiores bancos do país e isentaram as exportações de energia russa das sanções, mas depois passaram para a expropriação das reservas cambiais do Banco da Rússia e uma proibição de importação pelos EUA do petróleo russo – representam um golpe para sua economia impulsionada por receitas. Essa economia foi moldada pelo legado do choque terapêutico liderado pelos EUA, que fez o rublo despencar em 1998. As sanções desencadearam a exclusão dos títulos de grau de investimento russos dos três principais índices do mercado de títulos. A saída de corporações ocidentais, incluindo a BP, maior investidor estrangeiro da Rússia, agravou a queda econômica.

    Embora os controles de capital e os aumentos nas taxas de juros impostos pelo banco central russo tenham levantado o rublo do colapso nos primeiros dias da guerra na Ucrânia, ao ser isolada da infraestrutura financeira global, a dívida externa da Rússia, de cerca de US$ 194 bilhões, está cada vez mais ilíquida. Os recentes pagamentos de juros da Rússia no valor de US$ 117 milhões em sua dívida soberana denominada em dólares, processados por meio de bancos correspondentes dos EUA, foram aprovados pelas autoridades dos EUA, evitando um calote. No entanto, em 4 de abril, o Tesouro dos EUA não permitiu o processamento de cerca de US$ 600 milhões em pagamentos pendentes de títulos russos. Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional dos EUA, anunciou que os EUA não permitiriam mais que a Rússia fizesse pagamentos de dívidas por meio de bancos dos EUA. A intenção explícita de catalisar uma “nação não amigável” para uma crise de dívida soberana evoca aquele momento decisivo em 1956, quando Eisenhower ameaçou o governo britânico de que os EUA afundariam os títulos esterlinos, a menos que os britânicos se retirassem de Suez. Foi o único caso em que as sanções dos EUA alcançaram seu objetivo pretendido de política externa.

    Bretton Woods III

    A ordem econômica emergente revela uma escalada na utilização do dólar como arma. As apreensões de ativos do banco central russo pelo G7 não têm magnitude precedente. Estima-se que as reservas cambiais russas mantidas no exterior estejam em torno de US$ 300 bilhões, duas vezes maiores do que as do Afeganistão. Como terceiro maior produtor de petróleo do mundo, a Rússia responde por mais de um décimo da produção global de petróleo e gás. Seus petrodólares, ou seja, dólares obtidos através das exportações de petróleo, são depositados no exterior nos mercados financeiros globais. (Antes das sanções, 80% das transações de câmbio e metade do comércio externo da Rússia eram realizadas em dólares). Os turbo-capitalistas russos têm investimentos bilionários nos principais centros financeiros mundiais. Isso inclui não apenas riqueza privada em imóveis em Knightsbridge ou clubes de futebol como o Chelsea – cuja venda pelo magnata russo Roman Abramovich foi complicada, em razão das sanções impostas pelo governo do Reino Unido – mas, também, fundos soberanos emprestados nos mercados financeiros de Londres. Segundo Pozsar, a Rússia emprestou cerca de US$ 200 bilhões no mercado global de swaps de câmbio (Londres é um polo dominante desse mercado global).

    A apreensão coordenada de ativos da Rússia pelo G7 sinaliza como a ordem econômica ocidental se consolidou no topo da hierarquia monetária global. Isso ocorre às custas de um multilateralismo mais extenso. A postura neutra adotada por trinta e cinco economias ao se absterem da votação da Assembleia Geral da ONU condenando a Rússia é complexa, indicando alianças conflitantes diante de linhas de batalha cada vez mais rígidas. (Este sentimento foi vividamente capturado por Daleep Singh em sua recente viagem à Índia: “Amigos não estabelecem linhas vermelhas… Estamos muito interessados em todos os países, especialmente nossos aliados e parceiros, para não criar mecanismos que fortaleçam o rublo e tentem minar o sistema financeiro baseado no dólar“). Um terço do mundo, principalmente no Sul Global, vive sob sanções dos EUA. A falta de suprimentos impulsionada pela guerra em trigo e outros produtos, somada aos problemas relacionados à pandemia, está agravando a precariedade nesses países. Após distúrbios relacionados à falta de combustível e alimentos, estados de emergência foram declarados no Sri Lanka e no Peru.

    O lawfare econômico faz parte dessa paisagem recém-armada. Considere o próprio sistema global do dólar como uma matriz financeiro-militar respaldada por uma estrutura legal. Suas principais capitais são Nova York e Londres. Os maiores fluxos financeiros transfronteiriços ocorrem entre Wall Street e a City de Londres. A Eurozona, com suas restrições orçamentárias, é uma jurisdição monetária periférica no sistema do dólar offshore. Grande parte do dinheiro do mundo, desde títulos de dívida internacionais até ouro, está abrigada em Nova York e Londres. Em cerca de um quilômetro quadrado que abriga os maiores mercados de moeda estrangeira do mundo, em formas-chave de financiamento em dólares, como derivativos, a City de Londres supera Wall Street. Mais de noventa por cento dos contratos derivativos, como swaps de câmbio – uma forma fundamental de financiamento global – são baseados em dólares. Nova York e Londres também dominam a profissão jurídica global. Metade da resolução de disputas em todo o mundo ocorre nos tribunais da Inglaterra e do País de Gales, e cerca de um quarto ocorre no estado de Nova York. O direito transnacional ostenta a insígnia do unilateralismo americano. O segundo circuito dos EUA, que inclui Nova York (a jurisdição envolvida no imbróglio do DAB), lidera na aplicação de decisões judiciais extraterritoriais. Enquanto isso, os EUA se opõem a outros estados soberanos que aplicam suas leis de forma extraterritorial contra residentes americanos. A advocacia por meio das sanções tem se mostrado muito lucrativa para a Anglo-América.

    Junto às redes de defesa de riqueza legal e financeira anglo-americanas, está um aparato de segurança transnacional. O Five Eyes, a rede de compartilhamento de inteligência mais poderosa do mundo, é um acordo anglofônico. As guerras intermináveis foram lideradas pelos EUA e pelo Reino Unido como potências ocupantes conjuntas. A abrangência da rede militar britânica é a segunda maior do mundo, atrás apenas da dos Estados Unidos. O Aukus, o pacto de defesa de 2021 entre os EUA, o Reino Unido e a Austrália, sinaliza uma renovada “interoperabilidade” entre as forças. Embora não a reproduza diretamente, essa nova cooperação ocorre juntamente com aumentos nas reservas cambiais de dólares australianos e canadenses. A coincidência de poder, em sentido amplo, e softpower – Five Eyes e Fedwire – representa a integração de força militar, jurídica e econômica.

    Cui bono?

    Todos nós somos sujeitos desta nova, embora nebulosa, ordem econômica – que pode ser chamada de “Bretton Woods III” -, marcada pela acentuada penetração do dólar e sua instrumentalização na economia mundial. O ressurgimento do intervencionismo estatal após a pandemia foi seguido por uma renovada agressão estatal. Enquanto a codependência entre China e EUA (descrita de maneira evocativa como “Chimerica“) foi uma característica marcante do Bretton Woods II, o Bretton Woods III é uma cepa virulenta do sistema global do dólar. A invasão russa à Ucrânia – cujas raízes remontam à ampliação da OTAN no Leste Europeu – contraposta por um bloqueio econômico ocidental, desvenda sua lógica em tempo real. Enquanto as sanções anglo-americanas contra o Irã pretendiam acabar suas exportações de petróleo, as sanções dos EUA contra a Rússia isentaram o setor de energia. Excluir as exportações de petróleo e gás russos (bem como agricultura e contratos de derivativos) das sanções – para estabilizar os preços dos combustíveis fósseis e os mercados financeiros no Ocidente – até uma proibição de importação de energia russa no âmbito da esfera anglofônica é a forma atual e imprevisível da globalização armada. 

    Nas últimas semanas, destacaram-se as destruições causadas pela instrumentalização do dólar mundial. A guerra jurídica entre a Rússia e o G7 só se intensificou. As demandas do governo russo para que suas exportações de gás sejam pagas em rublos, em vez de dólares, foram consideradas uma violação de contratos pelo governo alemão. O bloqueio dos Estados Unidos aos pagamentos da Rússia em dois títulos soberanos denominados em dólares (regidos pela lei inglesa) levou a administração de Putin a buscar medidas legais em seus próprios tribunais contra as medidas que impedem a Rússia de pagar sua dívida e recuperar suas reservas do banco central que foram apreendidas.

    Que a apreciação do dólar vai infligir mais dor às partes mais pobres da economia global já é evidente. A estabilidade no cerne do sistema global do dólar, garantida por todos os meios necessários, será contraposta por uma tremenda instabilidade na periferia. As complexidades de utilizar o dólar mundial como arma na guerra econômica ressuscitam os antigos dilemas do gerenciamento de uma moeda hegemônica. Existem pelo menos duas maneiras pelas quais um regime global do dólar, na sua forma instrumental, pode se desenrolar. Alinhar regimes no Indo-Pacífico e no MENA com o pico do norte-atlântico da ordem mundial do dólar por meio de ajuda militar e monetária é o caminho previsível. (Países que recebem liquidez em dólares tendem a estar entrelaçados nas redes globais de bancos e redes militares dos EUA.)

    Enquanto isso, defensores da estabilidade hegemônica benevolente, como Charles Kindleberger e Ronald McKinnon, advogavam pela desarticulação da ordem do dólar por meio do multilateralismo. Para McKinnon, isso significava que o Fed deveria levar a sério sua responsabilidade como banco central do mundo. (Isso não é uma tarefa fácil: conter a inflação por meio de aumentos nas taxas de juros tem resultados financeiros prejudiciais para economias em desenvolvimento que conduzem negócios e tomam empréstimos em dólares, e levanta questões sobre a capacidade de uma moeda soberana ser suficiente como moeda mundial estável.) O atual Fed, sob a gestão Powell, deu um passo nessa direção por meio de uma maior provisão de liquidez para governos. A rede de linhas de swap poderia ser expandida muito mais. Um complemento ainda mais democrático às linhas de swap implantaria  as tecnologias de vigilância e de investigação forense nas mãos do Fed e do Tesouro para acabar com a evasão fiscal e fechar os paraísos fiscais offshore. Um passo nessa direção – o acordo global mínimo de impostos do ano passado -ainda precisa ser implementado.

    A declaração conjunta dos ministros de energia do G7, em 10 de março, em resposta à invasão da Ucrânia, defende caminhos mais limpos para a independência energética. Prometendo “fluxo ininterrupto de energia para as populações mais vulneráveis”, a declaração, à primeira vista, parece ser redigida por uma organização verde progressista, mas, em última instância, envolve a energia limpa no nacionalismo prejudicial da “segurança energética”. Políticas perversas podem advir desse casamento: Boris Johnson está buscando o dinheiro da Arábia Saudita para financiar uma planta de aviação sustentável no Reino Unido, ao mesmo tempo em que persuade a Arábia Saudita a aumentar a produção de petróleo.

    Uma ordem mundial do dólar desarmada envolveria a provisão de renda básica para comunidades vulneráveis por meio de contas no Fed, reestruturação justa da dívida para economias pobres cujos futuros foram prejudicados por ônus de dívida onerosos (países com grande dívida denominada em dólares estão em maior risco de crises bancárias) e financiamento público para infraestrutura verde no Sul Global. No entanto, a economia mundial parece estar seguindo na direção oposta. Os gastos militares mundiais ultrapassaram a marca sem precedentes de dois trilhões de dólares em 2021. Os gastos dos EUA sozinhos representam quarenta por cento desse valor. Ao mesmo tempo, a campanha global para vacinar as nações mais pobres contra o vírus tem falhado. A administração americana tem a capacidade de desarmar a globalização. Mas isso exigiria uma mudança de estratégia longe do “fortalecimento de amizades” por meio de alianças militares e monetárias em direção a um verdadeiramente novo multilateralismo nos assuntos monetários internacionais. Renunciar a alguns dos privilégios exorbitantes do dólar pode libertar os EUA de parte dos fardos da hegemonia econômica.

    Esse artigo foi traduzido do inglês por André Lucena.

  4. Dólar e império

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    Quais são os impactos geopolíticos e geoeconômicos da dominância persistente do dólar estadunidense nos sistemas monetário e financeiro internacionais? Yakov Feygin e Dominik Leusder questionam, em artigo, se o uso global do dólar como moeda padrão para reservas cambiais, comércio e empréstimos internacionais garante, de fato, um “privilégio exorbitante” aos Estados Unidos. Assim como Michael Pettis, argumentam que a primazia do dólar impõe um fardo exorbitante à população dos EUA em razão dos custos discrepantes que gera. 

    Enquanto beneficia amplamente o 1% mais rico dos Estados Unidos, a hegemonia do dólar resulta em menos emprego e baixo crescimento salarial para o resto da população do país. Isso decorre das condições estruturais necessárias para que determinada moeda seja utilizada como moeda internacional. Randall Germain e eu argumentamos em diversas ocasiões que a emissão da moeda globalmente dominante obriga o país emissor a incorrer em déficits no balanço de pagamentos,1 e que a recorrência desse processo gera uma corrosão da base produtiva doméstica. Uma vez que o balanço de pagamentos deficitário é bancado pela manutenção de uma miríade de passivos financeiros com atores externos, isso envolve necessariamente um acúmulo de dívida e outros tipos de obrigações por parte das empresas e famílias estadunidenses. 

    Grande parte dessas obrigações estrangeiras se dá na forma de participação acionária nas empresas estadunidenses. Ainda que os EUA tenham uma participação quantitativamente semelhante em empresas estrangeiras, esses ativos estão nas mãos do 1% mais rico. O grosso da dívida estadunidense com o resto do mundo é formado por dívida pública e privada, incluindo a securitização de hipotecas. E dado que o 1% do topo se esquiva extensivamente do pagamento de impostos, é o povo estadunidense que paga por essas dívidas. Enquanto o rentismo financeiro e a evasão fiscal permitem aos ricos colher os frutos da hegemonia do dólar, o resto da população compete entre si pelo acesso a produtos importados artificialmente baratos, produzidos em países de renda baixa, enquanto batalha para conseguir pagar por moradia. 

    O argumento de Feygin e Leusder sobre a raíz de classe do domínio do dólar é bastante consistente (o que, traduzindo da linguagem acadêmica, significa “eu disse a mesma coisa, então eles devem estar certos!”), mas eles abandonam os aspectos geopolíticos desse fenômeno muito rápido. Há duas lacunas na análise tradicional dos impérios europeus do século XIX que os levam a uma interpretação conceitualmente falha da estrutura de império e, particularmente, da relação entre centro e periferia nesse contexto. Analisar essa falha interpretativa ilumina o papel global exercido, à época, pela libra esterlina e, hoje, pelo dólar. 

    A primeira lacuna está em enxergar o centro desses impérios como Estados-nação internamente coesos como os da Europa e da América do Norte no período posterior às duas guerras mundiais. Minha tese é a de que a atuação desses Estados imperiais europeus do século XIX é melhor compreendida como um sistema de poder de fronteiras permeáveis entre um centro e um conjunto hierarquicamente organizado e integrado de periferias.

    Os Estados imperiais europeus do século XIX não eram linguística e culturalmente harmônicos como aqueles do pós-guerra. Sua formação foi marcada por um fluxo massivo de imigração – de suas colônias tropicais, inclusive – que condensou populações que falavam idiomas distintos entre si, e por um fluxo de emigração de milhões de pessoas para colônias da zona temperada. Como Ian Lustick demonstrou, ainda que traçassem divisas quase impermeáveis de segregação racial em praticamente todo lugar, os gestores desses impérios não faziam uma separação tão evidente entre centro e periferia. Na linha do argumento de Feygin e Leusder, as elites banqueiras de Londres, Montreal e Melbourne tinham mais em comum entre si do que com os agricultores, estivadores ou açougueiros que levavam cordeiro australiano e o trigo das planícies para o banqueiro londrino. Como as trajetórias de Leo Amery e Cecil Rhodes exemplificam, as elites metropolitanas e coloniais circulavam entre o centro e a periferia nos mesmos navios que transportavam, na segunda classe, os trabalhadores braçais. 

    A segunda lacuna, nesse mesmo sentido, está em considerar como modelo geral aquele dos impérios tardios construídos na África (e, em menor grau, na Ásia), e não o “império alimentício” britânico que havia sido estabelecido anteriormente. Do ponto de vista econômico – que foi importante para a libra esterlina –, a verdadeira atividade imperial foi aquela do início do século XIX, com o genocídio e o desterramento de populações indígenas de regiões de baixa densidade demográfica das zonas temperadas, posteriormente repovoadas, majoritariamente, por colonos europeus. A Austrália, a Argentina, o Canadá, a Nova Zelândia e, acima de tudo, os Estados Unidos, se tornaram destacados exportadores dos alimentos e matérias-primas agrícolas que alimentaram os trabalhadores e as máquinas da revolução industrial na Europa. A título de comparação, o montante total investido pelo império britânico na Austrália, com uma população de cerca de 4 milhões de pessoas em 1900, foi praticamente igual àquele investido na Índia Britânica, onde a população passava dos 300 milhões. As exportações britânicas para a Austrália e a Nova Zelândia entre 1894 e 1913 ultrapassaram as exportações para toda a África subsaariana. Todo esse volume de comércio e de investimentos estava em libra esterlina e era gerido por uma elite financeira, de fato, transnacional, mas culturalmente e, em grande parte, etnicamente britânica. 

    É no interior desse contexto histórico que as vantagens geopolíticas e geoestratégicas do dólar no sistema monetário devem ser entendidas. O dólar não apenas funciona como a moeda de uma nação específica, mas como a moeda de um Estado imperial global que é centrado nos Estados Unidos, mas não se limita a ele como entidade jurídica formal. Assim como no século XIX, as divisas entre o centro e as periferias do império não são tão nítidas. As periferias têm diferentes status na hierarquia imperial, os candidatos rivais se espalham por dentro e por fora dessa hierarquia, e a moeda única é um importante baluarte desse império. Essa dinâmica traz quatro aspectos importantes para o dólar estadunidense. 

    Primeiro, o dólar parcialmente liberta os Estados Unidos e seus aliados de restrições de recursos. Nas duas guerras mundiais, o império alimentício britânico foi um peso decisivo em favor dos aliados contra a Alemanha na balança de recursos físicos. Na primeira Guerra Mundial, o império britânico nos trópicos, em particular a Índia, foi categórico em termos de recursos humanos, tendo fornecido a grande maioria de combatentes fora do palco europeu e mais de 20% da força total das tropas – os colonos brancos contribuíram com mais 20%. O império britânico e seus anexos extensivamente emitiram dívida em libra esterlina para pagar por esses recursos físicos e humanos. Da mesma forma, a emissão de dívida em dólar financia as forças especiais estadunidenses que, hoje, treinam exércitos locais como tropas auxiliares

    Embora não haja uma relação mecânica, o déficit cumulativo no balanço de pagamentos dos EUA entre 1992 e 2019 equivale a 83% das despesas acumuladas do país com defesa. Aumentos significativos no orçamento militar ocorreram simultaneamente a aumentos no déficit do balanço de pagamentos. Essencialmente, economias com balanço de pagamentos superavitários fornecem aos EUA bens de consumo em troca de crédito em quantidade suficiente para liberar os recursos produtivos domésticos para o enorme aparato militar do país. Essa capacidade de recorrer ao mercado global não é simplesmente pautada na crença dos atores externos de que os dólares provenientes de exportações são úteis para futuras importações dos EUA, mas também na dependência do mercado doméstico estadunidense para o crescimento das suas economias. Com exceção da China após 2010, as grandes economias de exportação superavitária cresceram em ritmo mais lento que os EUA desde 1992, apesar do superávit no comércio exterior. Ainda, outras grandes economias com balanço de pagamentos deficitário são igualmente reféns do crescimento estadunidense – os casos mais evidentes são Canadá e México. Como o crescimento do Reino Unido seria possível se Londres não fosse um centro global de fluxos financeiros em dólar, ou se a Irlanda não fosse um paraíso fiscal conveniente? As reservas e as transações em dólar permitem a essas economias evitar a apreciação de suas moedas e a consequente exclusão de sua produção do mercado mundial. 

    Segundo, todos os cinco países anglo-saxônicos mantêm vínculos geopolíticos estreitos com os Estados Unidos por meio de uma combinação de acordos de cooperação para compartilhar serviços de inteligência, exercícios militares, ações de combate e por uma densa rede de elites que circula entre seus territórios. A integração de serviços militares e de inteligência é tão firme quanto a das finanças e, assim como nas finanças, há uma hierarquia de privilégios e acessos irradiada a partir do centro. Esses laços militares andam lado a lado com os financeiros. O debate sobre a retirada de tropas estadunidenses da Alemanha foi um exemplo do truísmo que permeia a precificação do petróleo em dólar pelos países exportadores em troca de proteção militar dos EUA. 

    Terceiro, o Federal Reserve Bank (Fed, o banco central estadunidense) é, na verdade, o banco central global. Por ser a última instância garantidora de liquidez em tempos de crise, o Fed exerce poder estrutural sobre quase todo o sistema financeiro mundial. O acesso ao Fed é questão de vida ou morte para sistemas bancários do mundo todo em momentos de grande crise financeira. Em termos técnicos, o dólar estadunidense é a “moeda soberana” ou “moeda fiduciária” global. Colocando da forma mais simples possível, os sistemas monetários em geral são formados por moedas internas (criadas no interior do sistema financeiro) e moedas externas (criadas pelo Estado fora do sistema financeiro). Os bancos trocam a compra de dívida pública por uma licença para criar moeda interna, ou seja, por crédito a outros atores privados. Esse crédito não precisa ser lastreado em reservas pré-existentes: em vez disso, a extensão desse crédito a outros atores cria um empréstimo que, por sua vez, vira um ativo, o depósito simultâneo dos fundos do empréstimo na conta do mutuário cria um passivo para o banco e, voilà, passa a existir um dinheiro novo. Mundialmente, quase 60% dos empréstimos transfronteiriços denominados em dólar são gerados por bancos não-estadunidenses. Em outras palavras, esses bancos voluntariamente criam passivos em dólares em seus balanços e, consequentemente, ficam dependentes do Fed em momentos de crise financeira. Mas esse “voluntariamente” deve ser lido num contexto em que exportar para os EUA transforma estagnação econômica em crescimento modesto. O superávit comercial acumulado pela zona do Euro entre 2011 e 2018 equivale a 90% do déficit acumulado no balanço de pagamentos dos EUA. 

    Os únicos limites à criação de moeda interna são a regulação e a fraca autodisciplina dos banqueiros. Nos anos 2000, bancos europeus e de outros países começaram a fazer empréstimos internacionais reciclando dólares que haviam acumulado por meio de superávits comerciais e da criação de moeda interna através do sistema eurodólar. A denominação em dólar do balanço do sistema bancário europeu ou canadense médio ultrapassou um terço do total, somando cerca de US$ 14 trilhões em ativos em 2017. Esse tipo de operação implica uma vulnerabilização considerável do sistema bancário na hipótese de colapso das garantias que salvaguardam esses ativos e de descumprimento dos mutuários no pagamento de seus empréstimos, como aconteceu em 2008 e 2020. Esses mesmos sistemas bancários, nessas crises, precisaram de dólares estadunidenses, mas seus bancos centrais não podiam criar moeda externa para resgatar os passivos denominados em dólar. Em vez disso, o Fed criou dólares – moeda externa – para emprestar para esses bancos centrais, para que eles, por sua vez, emprestassem para o seu próprio sistema bancário. Como acontece na cooperação militar, os países que mantinham vínculos mais próximos com os EUA receberam um tratamento melhor e tiveram acesso mais rápido a essas linhas de swap. Os laços financeiros do círculo anglo-saxônico são tão estreitos que alguns analistas se referem ao complexo de operações entre esses países como um conjunto coeso de “finanças anglo-americanas” e descrevem o banco central do Canadá como o “13° Fed.2 O uso e a reciclagem de dólares mantém a transferência de recursos descrita nos dois pontos anteriores. 

    Quarto, o uso generalizado do dólar significa que os Estados Unidos ou instituições reguladas pelos Estados Unidos controlam a maioria dos fluxos comerciais e financeiros do mundo. Isso garante aos EUA, especialmente por meio do Tesouro, um poder tático ou operacional sobre os sistemas financeiros não-estadunidenses mesmo em situações que não são de crise. O sistema global de canalização financeira usa as redes Fed-wire, CHIPS e SWIFT, cujas transações são majoritariamente processadas em Nova York. Isso obriga que os bancos de outros países estejam presentes nos Estados Unidos que, além de sediarem, também regulamentam e supervisionam essa rede, o que lhes confere o poder de impor determinados comportamentos às instituições estrangeiras. A ameaça de exclusão das redes de transação em dólar, por exemplo, obriga bancos estrangeiros a cumprir as sanções impostas pelos EUA contra seus inimigos geopolíticos. A SWIFT expulsou bancos iranianos e norte-coreanos da sua rede de pagamentos, o que prejudicou grandemente os programas nucleares e o comércio comum dos países. Os EUA também utilizaram a ameaça de expulsão da rede de pagamentos como forma de obrigar bancos de outros países a aplicar sanções a empresas e bancos russos quando a Rússia invadiu a Crimeia.3 Ainda, os EUA usaram os dados de transferências financeiras internacionais da SWIFT para identificar e monitorar grupos terroristas. Enquanto o Fed dá a cenoura na gestão da crise, o Tesouro empunha o porrete da exclusão do sistema de pagamentos. 

    Análises como a de Feygin e Leusder estão certas por chamar atenção ao fardo exorbitante que o dólar estadunidense impõe à população dos EUA que não faz parte da elite. Mas esse fardo precisa ser entendido no contexto de um sistema de poder mais amplo que irradia de forma desigual a partir de Washington, Nova York, do Vale do Silício, etc., por meio de uma rede de países aliados, empresas e intelectuais descompromissados que se movem livremente entre fronteiras permeáveis de cidadania e residência permeáveis. Esse sistema foi fundado e está ancorado na utilização do dólar como a moeda real de um império global cujo centro orbita mas não é limitado a Washington. O privilégio exorbitante não compensa o fardo exorbitante: é o outro lado da moeda detida por grande parte da elite global de poder.

  5. A Política de Classe do Sistema Dólar

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    O sistema global do dólar tem poucos vencedores a nível nacional. Na perspectiva ordinária, compreender o dólar dos EUA significa entender o “privilégio excessivo” que ele confere à América. Entretanto, o papel do dólar na estrutura do sistema financeiro internacional e na definição da relação entre a hegemonia norte-americana e o restante do mundo é ambíguo, assim como a questão de quem exatamente é beneficiado pelo arranjo atual. A supremacia do dólar alimenta um crescente déficit comercial americano que direciona a economia do país para a acumulação de renda, em vez do crescimento da produtividade. Isso contribuiu para a queda da participação do trabalho e do capital no fator renda, assim como para o aumento dos custos de serviços como educação, cuidados médicos e habitação para aluguel. Com problemas como esses, é possível afirmar com certeza que a moeda de reserva confere benefícios substanciais ao país que fornece liquidez e ativos de referência denominados nessa mesma moeda?

    Para o resto do mundo, os males são bastante claros. Nos países em desenvolvimento, a necessidade de sustentar suas economias contra crises cambiais e deflação da dívida significa a acumulação de dólares em detrimento de investimentos domésticos que são necessários. Essas políticas geralmente são acompanhadas pela freio no consumo e na renda para estabelecer um superávit comercial permanente em relação ao sistema do dólar. Em muitos países, o sistema do dólar permite que elites corruptas mandem seguramente seus ganhos ilícitos para centros bancários globais localizados em jurisdições com leis de propriedade frágeis.

    Uma análise mais detalhada das dinâmicas subjacentes que sustentam esse arranjo revela porque, na aparência, ninguém quer desafiar o dólar, mas por que todos os países, incluindo os EUA, têm interesse em fazê-lo.

    Em vez de considerarmos o sistema do dólar como aquilo que é, fundamentalmente, uma ferramenta nacional do governo dos Estados Unidos, devemos entendê-lo como uma consequência de uma economia globalizada que dá privilégio às preferências das elites financeiras pela liberdade de movimento internacional de capital. O sistema não repousa em um apoio uniforme ao dólar como moeda global, mas na falta de uma governança monetária internacional robusta e de acomodações aos mercados internacionais de dinheiro. A atual posição central do dólar não decorre das prioridades da segurança nacional ou dos interesses dos Estados Unidos. Muito pelo contrário: ela está enraizada nas escolhas de atores privados no mercado financeiro global, que atuam como intermediários entre instituições financeiras, elites políticas e empresariais, e Estados. As visões convencionais da soberania westfaliana não são suficientes para explicar as divisões causadas pelo dólar na “matriz” de balanços interligados que compõem a economia global financeirizada. Embora o sistema do dólar tenha tido, sem dúvidas, um efeito desproporcionalmente negativo nos países em desenvolvimento, as principais divisões que surgem desse sistema são ao longo das classes, em vez de categorias nacionais.

    Nesse contexto, pode ser tentador recuar para as fronteiras nacionais e defender a desglobalização de várias formas. Porém, o fato de o sistema do dólar se basear primariamente em conflitos sociais, em vez de geopolíticos, significa que as melhores soluções sugerem uma reforma do sistema que seja capaz de capacitar as pessoas no grau mais baixo da hierarquia social global.

    O perfil do sistema do dólar

    A acumulação global de riqueza e os pagamentos para o comércio e outras transações são, em grande parte, denominados em dólares, o que faz com que a moeda seja o principal lastro para crédito e faturamento. Como a maioria das entidades que operam nesse sistema não está sob a supervisão do Federal Reserve, a maior parte dos dólares é fornecida por meio de crédito interbancário offshore, financiado por depósitos em dólares em bancos não americanos, conhecidos como “eurodólares”. Essas transações offshore exigem garantias seguras firmadas em dólares para gerenciar sua liquidez, preferencialmente em títulos do Tesouro dos Estados Unidos. Zoltan Pozsar destaca, há muito tempo, essa característica da canalização financeira offshore, alertando sobre um “buraco negro” no mercado de financiamento em dólares. As reservas de dólares offshore dependem da liquidez de títulos do Tesouro e de substitutos imediatos como garantia para levantar dinheiro em caso de uma chamada de margem.

    A razão para essas reservas de dólares é dupla. Em primeiro lugar, há a necessidade de financiar o comércio. O sistema Eurodólar facilita as relações comerciais entre países com moedas diferentes, dando-lhes acesso a uma moeda estável comum para nomear o comércio – o dólar. O crédito em dólares permite a execução de contratos sem a troca real de moeda emitida pelos EUA. Em vez disso, o sistema funciona como uma troca de promissórias para entregar recibos em diferentes períodos de tempo. Instituições financeiras localizadas nos principais centros financeiros liquidam esse sistema de crédito usando uma combinação de contas a prazo e, se necessário, acordos de recompra para obter dólares por meio de empréstimos de curto prazo, geralmente sob garantia por dívida do Tesouro dos EUA.

    Por conta do fato de que 80% do comércio nas economias de mercado emergentes é realizado em dólares, empresas com receitas em moeda doméstica adquirem dívidas insustentáveis em dólares se a moeda doméstica cair. Por esse motivo, os bancos centrais tentam acumular ativos na moeda norte-americana, mais comumente dívida dos EUA. Para adquiri-los, geralmente mantêm um superávit comercial persistente ao reprimir os salários reais de seus trabalhadores. Isso pode ser sustentável a curto prazo, mas a longo prazo leva a períodos de estagnação econômica, ou guerras comerciais e cambiais internacionais.

    O segundo fator impulsionador dessas reservas de dólares offshore é a desigualdade de riqueza e retornos corporativos descomunais. Grandes corporações, fundos de pensão e pessoas extremamente ricas não podem depositar seu dinheiro no sistema bancário comum. Em contraposição, eles os mantêm em reservas de ativos líquidos denominados em dólares que podem ser convertidos rapidamente em dólares. Embora esse sistema de “bancos paralelos” tenha usos legítimos, também facilita a evasão fiscal e a corrupção cleptocrática. A repressão dos salários reais apenas agrava essa tendência. Desigualdades globais ubíquas no comércio geram mais retornos para os proprietários de capital, aumentando a desigualdade.

    Assim, o sistema do dólar facilita e alimenta o poder das elites que têm interesse em manter o status quo. Um sistema global com uma moeda-chave dominante auxilia a acumulação de rendas em detrimento do maior consumo pelos trabalhadores nos países exportadores e o acúmulo dessas rendas no buraco negro legal das finanças offshore.

    Uma doença financeira holandesa

    A fissura entre os beneficiários da elite e os perdedores da classe trabalhadora no sistema do dólar existe também nos Estados Unidos. O país sofre enormes consequências econômicas negativas de sua posição como emissor da moeda de reserva dominante – cujos efeitos são distribuídos de forma desigual. A demanda por ativos denominados em dólares de alta qualidade sobrecarrega os Estados Unidos com uma “doença holandesa” de natureza financeira; uma situação em que a dependência da exportação de uma única mercadoria eleva a taxa de câmbio e, assim, elimina a produção de bens comercializáveis e com valor agregado em favor de serviços e rendas financeiras. Exemplos clássicos de países onde a “doença holandesa” ocorreu costumam ser exportadores de commodities, como a Holanda na década de 1970 (após a descoberta do petróleo no Mar do Norte), bem como Nigéria e Rússia. Economias com “doença holandesa” frequentemente são marcadas pela presença de uma elite estreita e em contração, cujo poder repousa na renda das vendas da única mercadoria, ou nos serviços e na gestão que florescem em torno dos fluxos de caixa gerados por essa mercadoria.

    Para os Estados Unidos, essa única mercadoria é o dólar. O mecanismo por trás desse processo não é difícil de entender. Do ponto de vista da contabilidade simples, a todo ativo deve corresponder um passivo. Isso significa que um excedente na conta de capital – ou o desejo do mundo de adquirir ativos seguros denominados em dólares dos EUA – é compensado por um déficit na conta corrente. Assim, o déficit orçamentário dos Estados Unidos e seu déficit comercial são ambos endógenos ao sistema do dólar. Quando os déficits orçamentários dos EUA caem, seja como resultado de um aumento no superávit comercial, ou de cortes no orçamento, o risco financeiro aumenta à medida que os mercados substituem a dívida do governo dos EUA por ativos arriscados, como os infames títulos lastreados em hipotecas da crise de 2008.

    O custo mais visível da doença é a valorização constante do dólar desde a década de 1980, apesar da queda da participação dos EUA no Produto Interno Bruto mundial. O principal sintoma doméstico tem sido o aumento dos custos de bens não comercializáveis, como remédios, aluguéis de imóveis e educação, em relação a bens comercializáveis. Essa desconexão é, a menos em parte, responsável pela baixa taxa de inflação do país, a queda na participação salarial e o aumento da insegurança econômica, apesar do acesso a uma variedade maior de bens de consumo. Embora o consumidor americano possa agora comprar um conjunto cada vez maior de eletrodomésticos, eletrônicos e pequenos luxos, os serviços necessários para a mobilidade econômica e a sustentabilidade doméstica estão cada vez mais fora de alcance.

    É difícil ver como os EUA estão extraindo benefícios econômicos desse sistema. Nos primeiros anos do pós-guerra, poderia ter sido verdade – em um sentido estrito e aritmético – que esse arranjo era, economicamente, um benefício para os Estados Unidos. O custo de ter uma moeda de reserva era menor após a guerra, simplesmente porque a parcela do PIB global não relacionada aos EUA era consideravelmente menor do que é agora. No entanto, atualmente, quando a parcela americana de uma torta maior é relativamente menor, os custos da demanda global por dólares são mais altos. Na verdade, a maioria dos outros governos desencorajaria ativamente compras substanciais e sustentadas de sua moeda.

    Se esse sistema é tão abaixo do ideal, por que ainda está em vigor? A resposta é que ele é o locus de um novo tipo de política de classe transnacional.

    A política de classe da dolarização

    As estruturas para compreender a persistência do sistema do dólar tendem a variar de reducionistas a desatualizadas, frequentemente examinando a política internacional  tendo na figura dos estados-nação a principal unidade de análise. Por meio dessa visão, o dólar é um produto dos interesses hegemônicos dos EUA, utilizado como ferramenta da diplomacia. Porém, a financeirização global subverteu esse quadro: os interesses das elites não são agregados internamente, mas internacionalmente, e são transmitidos por meio do mecanismo de balanço de pagamentos e do sistema financeiro. Os líderes e tecnocratas dos EUA não obrigam diretamente os países em desenvolvimento a investir seus influxos de balanço de pagamentos em Tesouros; nem foi realmente a tomada de decisões ativa, por exemplo, do Banco Popular da China que levou à acumulação de reservas de dólares chinesas.

    Suponhamos que as autoridades chinesas queiram que o Banco Popular da China reduza suas reservas em dólares. Para resolver seu desequilíbrio externo com os EUA, eles precisariam dar conta dos seus desequilíbrios domésticos. Isso acontece porque as personalidades contábeis elementares afirmam que tudo o que não é consumido domesticamente é poupado; essas economias são, assim, “exportadas”, principalmente para os Estados Unidos, na forma de fluxos de capital. Como Michael Pettis argumentou consistentemente, a baixa participação da renda domiciliar na China (com altos níveis de desigualdade de renda causados pelo rápido crescimento) levou a uma alta taxa de poupança doméstica e ao subconsumo. Uma parcela muito grande da renda nacional está nas mãos de entidades com alta poupança e que preferem a liquidez em dólares, como pessoas de alto patrimônio líquido e grandes corporações. Para reverter esse desequilíbrio, a renda teria que ser transferida desses poderosos para os trabalhadores da China – uma dinâmica descrita por Albert Hirschman já em 1958. Exceto por uma redistribuição drástica de renda, talvez o Banco Popular possa simplesmente procurar outra moeda de reserva e um ativo seguro equivalente. No entanto, nenhuma dessas situações seriam possíveis, porque nenhum país, além dos EUA, possui mercados profundos e líquidos em um ativo de referência.

    A suposição implícita aqui, no entanto, é que o setor financeiro e as elites corporativas realmente desejam uma alternativa. Não há motivo para acreditar que isso seja verdade. O sistema, da maneira como é feito, não tem muitas desvantagens para os participantes atuais, e qualquer alternativa exigiria uma mudança distributiva. As vastas reservas em dólares da China ilustram como as economias de mercados emergentes com desequilíbrios domésticos causados por anos de crescimento desigual podem usar ativos denominados em dólares como um método politicamente conveniente, mantendo o crescimento sem recorrer a transferências entre setores – por exemplo, de lucros para salários. Exportadores do mundo desenvolvido, como Japão e Alemanha, também mantêm um modelo de crescimento baseado em competitividade de custos e supressão salarial. Um papel mais proeminente para o Euro ou o Iene prejudicaria esses modelos. Para exportadores de recursos, isso facilita a corrupção e a evasão fiscal por meio de simples fluxos de capital. Nos Estados Unidos, beneficia as elites da indústria financeira, que podem colher as recompensas intermediando os influxos de capital nos mercados dos EUA, enquanto o custo de serviços não comercializáveis, como mensalidades, cuidados com a saúde e imóveis, sobe para todos os outros. Em todos os países, as elites saem vitoriosas.

    A preferência das elites globais e dos mercados globais pelo sistema do dólar demonstra, portanto, a futilidade de aplicar um quadro westfaliano ao sistema financeiro global. Herman Mark Schwartz, um dos principais especialistas em dólar e no processo de hegemonia americana, oferece uma maneira melhor de pensar no dólar – ou seja, como a moeda estatal de um sistema global quase imperial, em que as diferentes regiões econômicas são unidas por uma moeda de reserva compartilhada. Esta “moeda imperial” é mais um subproduto e menos um habilitador (ou mesmo uma restrição habilitadora) do expansionismo e aventurismo militar americano, ambos anteriores ao status de moeda de reserva do dólar.

    Dois benefícios geopolíticos claros são concedidos aos Estados Unidos, por conta do seu status de país detentor da moeda de reserva: linhas de swap de liquidez em dólares e a capacidade de impor o poder temível das sanções americanas. No entanto, a capacidade dos Estados Unidos de exercer esse poder foi construída ad hoc, ao longo de várias décadas e em períodos de grande contingência. Pesquisas recentes mostram que o sistema internacional do dólar não foi propositadamente projetado, mas sim montado por elites que acreditavam que os mercados internacionais de dinheiro não deveriam ser estruturados ativamente em direção a uma noção do bem comum, mas sim protegidos. O sistema de redes de swap associado à crise financeira de 2008 teve suas origens nos esforços para sustentar o eurodólar já na década de 1960, com a decisão dos líderes de que seria melhor facilitar do que lutar ou reestruturar. Enquanto as desigualdades domésticas não forem resolvidas às custas dessas elites, o dólar permanecerá hegemônico.

    A fonte do poder do Federal Reserve sobre o sistema eurodólar e a vulnerabilidade dos mercados emergentes dentro dele é a dependência global do respaldo do banco central. Na crise de 2008-9, o Fed implementou as chamadas linhas de swap de liquidez entre bancos centrais, como forma de sustentar o sistema global. Essas linhas tomaram a forma de acordos de moeda recíprocos entre bancos centrais: o Fed repunha as reservas em dólares de outros bancos centrais em troca de moeda local. O verdadeiro poder das linhas de swap não é quem as recebe, mas sim quem não as recebe. Em um artigo recente para a Nation, Andres Arauz e David Adler destacam como essas linhas de swap podem ser usadas como uma forma de triagem monetária, na qual os Estados Unidos decidem quais países têm melhores perspectivas para enfrentar tempestades econômicas. No entanto, a crise da Covid-19 lançou até isso em dúvida. Não apenas o Fed estendeu seu apoio por meio de swaps para um grupo mais amplo de países do que em 2008 e 2009, mas em 31 de março de 2020, ele abriu uma instalação de recompra (repo) com autoridades monetárias internacionais estrangeiras (FIMA). A FIMA Repo Facility permite que outros bancos centrais e autoridades monetárias troquem diretamente seus títulos do Tesouro por dólares, evitando assim a necessidade de vender seus títulos do Tesouro diretamente em um mercado ilíquido. Ao fazer isso, o Fed criou uma fonte adicional de liquidez em dólares para qualquer banco central.

    Reformando o sistema do dólar

    A desdolarização parece ser uma perspectiva distante. Não há um equivalente ativo em euros, por exemplo, e os mercados de capitais na zona do euro não são tão desenvolvidos quanto o dos EUA. As tentativas de aprofundar os mercados de capitais e introduzir um mecanismo comum de dívida foram repetidamente prejudicadas pelos países da União Europeia, que se opõem contundentemente ao compartilhamento de riscos financeiros. O recente fracasso da proposta de ‘coronabond’ fornece ampla evidência dessa dinâmica. Enquanto países como Alemanha e Holanda permanecerem firmes em sua oposição à integração financeira necessária na zona do euro, a composição da moeda nas reservas internacionais permanecerá fortemente inclinada para o dólar. As perspectivas políticas para a criação do Bancor, uma moeda sintética proposta pela primeira vez por John Maynard Keynes, são igualmente sombrias.

    Em vez disso, devemos optar por gerenciar o sistema atual para mitigar seus danos, um processo no qual os Estados Unidos devem desempenhar um papel de liderança. Temos algumas propostas.

    Primeiro, os Estados Unidos devem oferecer a seus parceiros comerciais acesso direto ao balanço do Federal Reserve por meio de linhas de swap institucionalizadas que fazem parte de acordos comerciais. Os Estados Unidos devem dar a seus parceiros acesso à liquidez de dólares de alta qualidade em troca da manutenção de uma política comercial equilibrada. Essa troca diminuiria o déficit comercial americano, ao mesmo tempo que exerceria pressão crescente sobre o salário real dos parceiros comerciais.

    Em segundo lugar, como Nathan Tankus sugeriu recentemente, o Federal Reserve pode estender sua linha de swap para o Fundo Monetário Internacional (FMI). Isso permitiria que o FMI atuasse como um formulador de políticas fiscais globais, emitindo os chamados Direitos Especiais de Saque (SDRs, na sigla em inglês). Em sua forma atual, os SDRs são em grande parte ilíquidos e não podem ser convertidos em dólares ou mesmo em outras moedas nas quais a dívida de mercados emergentes é denominada. Fornecer linhas de swap para os SDRs é uma maneira politicamente conveniente de utilizar as instituições que já temos para garantir que os SDRs sejam realmente resgatáveis em dólares. A proposta de Tankus foi defendida em uma carta ao G20 assinada por muitos líderes mundiais sob a liderança do ex-primeiro-ministro do Reino Unido, Gordon Brown.

    Em terceiro lugar, os Estados Unidos devem começar a ver seu déficit não como um problema, mas como um recurso público, e gerenciá-lo como os exportadores de energia usam fundos soberanos para evitar a Doença Holandesa. Para gerenciar esse bem público, os EUA deveriam eleger uma série de bancos públicos para financiar iniciativas econômicas específicas. O Federal Reserve garantiria a dívida dessas instituições, descontando-a a uma taxa de penalidade para reservas, títulos do Tesouro dos Estados Unidos ou reservas em dólares. Esses títulos poderiam, dessa maneira, ser negociados com um rendimento ligeiramente mais alto do que os títulos do Tesouro e fornecer aos investidores um produto alternativo aos títulos do Tesouro de uso geral. Os passivos desses veículos de investimento forneceriam garantias e promoveriam a estabilidade financeira, ao mesmo tempo em que compensariam os efeitos da hegemonia do dólar na indústria doméstica através de investimentos permanentes e ativos.

    O conjunto certo de ferramentas, porém não é suficiente. Para ir além da gestão do status quo, precisamos, primeiro, reconhecer que o sistema do dólar evoluiu não como uma ferramenta de estratégia imperial do Estado, mas como o projeto de uma elite transnacional que, efetivamente, usurpou o controle de um bem público internacional. Enquanto a confrontação ativa com os interesses da elite continuar a faltar, o sistema do dólar persistirá como um jogo de soma zero – uma situação que, a longo prazo, é insustentável para a economia política global. E, seguindo a observação de Herbert Stein: o que é insustentável não será sustentado.

    Esse artigo foi traduzido do inglês por André Lucena.