Desde que o presidente dos EUA, Joe Biden, sancionou a Lei de Redução da Inflação [Inflation Reduction Act—IRA] em agosto de 2022, as indústrias mexicanas de autopeças e montagem de automóveis vêm crescendo. A Tesla e a montadora estatal chinesa Jetour anunciaram a construção de novas fábricas de veículos elétricos (VEs) e carros a gasolina, estimulando investimentos na cadeia de suprimentos. O AGP Group, fornecedor de vidro da Tesla, planeja abrir uma fábrica junto à da empresa automotiva em Santa Catarina, Nuevo León. Em agosto de 2023, a Metalsa, fabricante de chassis para a Toyota, abriu sua segunda fábrica em Guanajuato. Tatiana Clouthier, ex-secretária de Economia do México, declarou em tom de aprovação que o IRA “não discrimina o setor automotivo [do México]”, ecoando o otimismo generalizado que enxerga o IRA como um maciço investimento no setor automotivo mexicano que criará empregos.1
A lei dos EUA, ao vincular fortemente o setor de fabricação de automóveis ao de mineração e à estratégia climática, tem grandes implicações socioeconômicas e políticas para além das fronteiras do país. Os veículos elétricos, a economia digital e a transição energética exigem níquel, cobre, cobalto e, mais importante, lítio—todos agora listados como “minerais críticos” pelos governos do México, Canadá e EUA. A recepção do IRA no México contrasta fortemente com as críticas dos países europeus, cujas montadoras são amplamente excluídas dos créditos fiscais para veículos elétricos que exigem que componentes minerais e/ou de baterias sejam obtidos e processados nos EUA ou em países com quem os estadunidenses mantêm acordos comerciais, como é o caso do México.
O IRA chegou três anos após a assinatura do Acordo Estados Unidos-México-Canadá [United States-Mexico-Canada Agreement—USMCA], juntando-se a um conjunto de políticas que transformaram o antigo setor automotivo do México em um polo de fabricação de carros elétricos. A condição para acessar o Crédito para Veículos Limpos do IRA é que a montagem final de determinado automóvel tenha ocorrido na América do Norte, definida nesse contexto como Estados Unidos, Porto Rico, Canadá e México. A exigência de “conteúdo de valor regional” para os produtores que buscam vender no novo mercado consumidor subsidiado por impostos dos EUA reforça as “regras de origem” do USMCA, que definem os padrões necessários para que uma mercadoria acesse as isenções tarifárias previstas no acordo.
Os incentivos financeiros para que os empregadores reorganizem geograficamente a produção também prometem incrementar o poder de barganha da força de trabalho mexicana para negociar maiores salários, benefícios e participação na vida econômica de seu país. Dois exemplos recentes dessa luta entre trabalhadores e produtores do setor automotivo, no entanto, demonstram as limitações que o USMCA impõe aos trabalhadores e às autoridades governamentais do México e dos EUA em relação ao cumprimento dessa promessa continental. Recentemente, duas fabricantes de peças sediadas em Michigan—a VU Manufacturing e a Unique Fabricating— responderam às demandas dos trabalhadores por negociações coletivas embasadas em provisões do USMCA com fuga de capital: as empresas optaram por descumprir tanto as disposições trabalhistas do Código do Trabalho Mexicano de 2019 quanto as do acordo considerado histórico entre o México e os EUA. Os potenciais benefícios do IRA à força de trabalho mexicana empregada nas cadeias de suprimento regionais da produção de automóveis seguem em aberto.
Trabalho e livre comércio
A renegociação do NAFTA em 2017, impulsionada pelas críticas ao livre comércio durante o governo Trump, criou a oportunidade de incluir a força de trabalho no corpo principal de um novo acordo.2 O USMCA, acordo resultante, dedica vários capítulos a amenizar os temores sobre a perda de empregos na indústria dos EUA para os trabalhadores mexicanos. Foi uma preocupação manifestada tanto pela direita protecionista quanto pela esquerda trabalhista, e é algo que abre espaço para variadas soluções. Em um conjunto de recomendações para a renegociação, a Federação Americana do Trabalho e Congresso de Organizações Industriais (AFL-CIO) argumentou que os salários dos trabalhadores mexicanos do setor automotivo deveriam ser altos o suficiente para garantir a eles e a suas famílias um padrão de vida decente— acesso a comida, água, moradia, educação, assistência médica, vestuário, transporte e capacidade de economizar recursos para aposentadoria e emergências. O capítulo 4 do acordo final, “Regras de origem”, reflete essa preocupação, exigindo que “40 a 45% do conteúdo automotivo seja produzido por trabalhadores que ganhem, no mínimo, US$ 16 por hora”.
Além dos aumentos salariais, a maior federação trabalhista dos EUA recomendou o fortalecimento da sindicalização, da democracia no local de trabalho e dos direitos de negociação coletiva. Em vez de retrair o comércio, como a retórica protecionista mais conservadora geralmente indica, esses padrões nivelariam o terreno de ação para os os trabalhadores norte-americanos do setor automotivo. Nesse sentido, a versão final do USMCA incluiu diversos mecanismos relacionados aos direitos trabalhistas no México. O Capítulo 23, “Trabalho”, e o Anexo 23-A, “Representação dos Trabalhadores em Negociações Coletivas no México”, descrevem os direitos no local de trabalho e estão de acordo com a Declaração da OIT sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho. O Anexo 31-A, “Mecanismo Trabalhista de Resposta Rápida Específico da Instalação” [Facility-Specific Rapid Response Labor Mechanism – RRLM], que se aplica ao México e aos EUA, permite que os trabalhadores apresentem queixas formais caso tenham direitos trabalhistas e liberdade de associação negados. O descumprimento das disposições trabalhistas do USMCA pode resultar na suspensão do tratamento tarifário preferencial, na imposição de penalidades e no impedimento do ingresso de produtos ou serviços produzidos pela empresa no mercado dos países.3 Desde a promulgação do USMCA, em julho de 2020, o RRLM foi revindicado dezoito vezes.4
O USMCA também estabeleceu o Comitê Trabalhista Interagências [Interagency Labor Committee—ILC] para fazer cumprir as obrigações trabalhistas, que inclui um Conselho Independente de Especialistas Trabalhistas do México destinado a monitorar e avaliar as reformas trabalhistas do país. Juntas, essas medidas têm por objetivo defender os direitos trabalhistas básicos e aumentar os salários no México, corrigindo as assimetrias no poder da classe trabalhadora ao longo da cadeia de suprimentos automotiva norte-americana. O Departamento de Assuntos Trabalhistas Internacionais ligado ao Departamento do Trabalho dos EUA, quando anunciou a combinação do USMCA entre comércio internacional e emprego de alto nível, descreveu o acordo como instrumento que prevê “as disposições trabalhistas mais fortes e de maior alcance de qualquer acordo comercial”.
O modelo trabalhista mexicano
No México, antes do NAFTA, a política industrial doméstica moldava amplamente o investimento no setor automotivo. Durante a era da industrialização por substituição de importações (1940-1970), a produção de automóveis, considerada intensiva em capital e mão de obra, foi fundamental para industrializar o país e formar sua a força de trabalho manufatureira. A forte intervenção do governo no desenvolvimento econômico se apoiava e contribuia para reforçar um modelo trabalhista corporativista que focava em fomentar uma força de trabalho industrial sindicalizada por meio do principal sindicato do Estado, a Confederação de Trabalhadores do México [Confederación de Trabajadores de México—CTM].5 Com o passar dos anos, esse modelo foi transformado em um instrumento de gerenciamento autoritário e repressivo das relações trabalhistas pelo governo, em benefício do Estado e das empresas.
Os salários e as condições de trabalho eram determinados por “contratos de proteção ao empregador”, acordos trabalhistas moldados para proteger os investimentos em detrimento dos interesses da força de trabalho. Esses contratos, endossados pelo governo, são assinados por empregadores e sindicatos filiados principalmente à CTM, sem que as bases tenham conhecimento dos termos do acordo. Os contratos de proteção ao empregador impõem uma barreira significativa à liberdade de associação e à negociação coletiva, criando uma relação estreita entre empregadores, sindicatos não eleitos e autoridades estatais voltada a manter condições ideais de investimento. Durante décadas, os trabalhadores do setor automotivo—juntamente com os trabalhadores empregados em outros setores industriais—lutaram contra a CTM e os sindicatos filiados a essa confederação trabalhista. Nesse sentido, desafiaram o Estado e as empresas com o objetivo de melhorar as condições de trabalho, a democracia no local de trabalho e a representação dos trabalhadores.
Em 2018, sob o slogan “A Quarta Transformação”, o Presidente Andrés Manuel López Obrador (2018-2024) iniciou uma série de reformas estruturais no modelo econômico do México. Em 1º de maio de 2019—Dia Internacional do Trabalhador—, López Obrador sancionou uma lei cujo conteúdo pode ser considerado a mais significativa reforma na história das relações trabalhistas mexicanas, encerrando o modelo que criou e perpetuou os “contratos de proteção ao empregador”. Entre outras mudanças, as reformas no Código Trabalhista Federal do México estipulam aumentos salariais, liberdade para participar de negociações coletivas, liberdade de associação e respeito aos sindicatos. Entre 2018 e 2024, o salário-mínimo aumentou em 110%, garantindo à força de trabalho mexicana o sexto maior piso salarial da América Latina. As reformas trabalhistas de 2019 do México foram precedidas pela ratificação, no mesmo ano, da Convenção sobre Liberdade de Associação e Proteção do Direito de Sindicalização (Convenção 98) da Organização Internacional do Trabalho (OIT) pelo país. Os EUA ainda não ratificaram a Convenção 98 da OIT, o Canadá ratificou em 2017. Era esse o contexto doméstico do México quando o país entrou em negociações com o governo Donald Trump sobre a rebertura do NAFTA e os termos do novo USMCA.
As reformas de 2019 oferecem proteções maiores que o USMCA em relação à negociação coletiva—especialmente sobre a importantíssima questão do direito de greve. O artigo 387 do Código do Trabalho do México estipula que, caso o empregador se recuse a participar da negociação coletiva, os trabalhadores têm direito de greve. Na era do NAFTA, o direito de greve havia sido reduzido a “mera consulta”, e o acordo tinha “deixado de fora qualquer mecanismo de aplicação, [uma vez que] a política comercial prevaleceu sobre a política trabalhista.”6 Na redação do USMCA, o direito de greve aparece como uma nota de rodapé na seção 23.3, “Direitos Trabalhistas”, e não no corpo principal do texto legal vinculativo do Capítulo 23.
Desde 2020, a legislação trabalhista no México tem sido predominantemente determinada por dois instrumentos jurídicos: o Capítulo 23, Anexo 23-A do USMCA e a lei trabalhista de 2019. Mas, ainda que a elevação dos padrões trabalhistas e o aumento do comércio e dos investimentos internacionais possam parecer objetivos alinhados, as contradições ficam claras quando se analisa o conteúdo e os destinatários dos dispositivos de execução das provisões que o USMCA—como antes o NAFTA—estabelece.
Fuga de capital
No momento em que foram obrigadas a garantir direitos trabalhistas básicos previstos no USMCA e no Código Trabalhista do México, a VU Manufacturing, que tinha uma fábrica em Piedras Negras, Coahuila, e a Unique Fabricating, que mantinha uma planta em Santiago de Queretáro, encerraram suas operações no país. A VU Manufacturing, produtora de peças automotivas internas de plástico e vinil, é sediada em Troy, Michigan. Trabalhadores da planta da VU no México registraram duas reclamações por meio do RRLM. A primeira, referente à liberdade de associação, foi bem-sucedida e levou à eleição de um sindicato independente, o La Liga. A segunda reclamação denunciava a recusa da VU em participar de negociações contratuais. Tanto México quanto os EUA reconheceram a validade da reclamação, dando à VU seis meses para implementar um “plano de reparação”. Em vez disso, a VU fechou a fábrica e inseriu líderes trabalhistas em uma lista suja. A investigação do Departamento do Trabalho dos EUA, iniciada em janeiro de 2023, foi encerrada em outubro do mesmo ano. Thea Lee, subsecretária adjunta de Assuntos Internacionais dos EUA, reagiu ao fechamento da fábrica reforçando que “sabíamos que os empregadores não optariam por cumprir a regulação todos os casos”. Katherine Tai, representante de comércio dos EUA, pediu ao governo mexicano que “busque soluções para os trabalhadores afetados e estratégias para evitar retaliações contra ex-trabalhadores da VU em outras instalações”.
Uma situação parecida ocorreu com a Unique Fabricating, fabricante de plástico, espuma e borracha sediada em Michigan. O sindicato democraticamente eleito Transformación Sindical (TS), diante da ausência de resposta a duas queixas registradas no Tribunal do Trabalho em Queretaro, registrou uma reclamação por meio da RRLM. Investigações preliminares confirmaram as alegações do TS e o Tribunal do Trabalho de Queretaro, enfim, decidiu a favor do sindicato. Em abril de 2023, os governos mexicano e estadunidense anunciaram a conclusão bem-sucedida da demanda trabalhista registrada via RRLM. A Unique Fabricating concordou em respeitar a liberdade de associação dos trabalhadores e em cumprir as obrigações legais do Código Trabalhista de 2019. No entanto, em novembro de 2023, a empresa anunciou falência e fechou suas fábricas no México, nos EUA e no Canadá. O Escritório de Representação Comercial do governo dos EUA se recusou a investigar o caso. O resultado foi o mesmo: os trabalhadores perderam seus empregos, o Estado foi forçado a encontrar “soluções” e as sedes da empresa nos EUA enfrentaram pouca ou nenhuma consequência.
Esses casos demonstram os desafios de implementação das disposições trabalhistas do USMCA, que carece de ferramentas legais para impedir que as empresas descumpram obrigações com os trabalhadores ou com a coisa pública. Comparemos essa ausência com os dispositivos legalmente vinculantes que protegem os investimentos das empresas, como o Sistema de Solução de Controvérsias Investidor-Estado [Investor-State Dispute Settlement—ISDS], consagrado no Capítulo 14 e no Capítulo 31 do USMCA, ou no Capítulo 11 do NAFTA, e usado em processos movidos contra os governos do México, Canadá e EUA. O ISDS permite que as empresas recebam prêmios em dinheiro do Estado caso seus investimentos e até mesmo lucros futuros sejam colocados em risco por projetos que beneficiem o bem comum—inclusive aqueles referentes a benefícios de saúde pública, proteções ambientais ou barateamento de serviços como o fornecimento de eletricidade. De acordo com Scott Sinclair, o ISDS permite que as empresas usem um sistema de justiça privado “para desafiar medidas vitais e legítimas de políticas públicas”. O ISDS força os governos a escolher entre revogar leis e regulamentações destinadas à provisão de bens comuns e pagar “indenizações” às empresas com dinheiro público.7
Sob a vigência do NAFTA, enquanto México e Canadá pagaram milhões de dólares a empresas em indenizações e honorários advocatícios, os EUA jamais foram condenados. Na redação do USMCA, o ISDS foi modificado para limitar significativamente sua aplicabilidade para os EUA e o Canadá, mas não para o México. Já no âmbito do USMCA, os EUA e o Canadá iniciaram duas disputas comerciais contra o México: a primeira diz respeito à reforma energética mexicana, que dá preferência à estatal do país na distribuição de eletricidade; a segunda se refere à proibição imposta pelo país sobre o milho geneticamente modificado importado dos EUA. São casos indicativos de que o USMCA, assim como o NAFTA, tem como principal objetivo facilitar o investimento privado, independentemente das consequências sociais e ambientais.
A VU Manufacturing e a Unique Fabricating exemplificam como a resposta de multinacionais a ameaças ao investimento em território mexicano por disposições trabalhistas do USMCA e do Código Trabalhista do país é a da fuga de capitais. Não existem mecanismos como o Sistema de Solução de Controvérsias Investidor-Estado (ISDS), consolidado no Capítulo 14 e no Capítulo 31 do USMCA, ou no Capítulo 11 do NAFTA, capazes de responsabilizar essas empresas nos territórios em que estabelecem suas subsidiárias por violações à força de trabalho local. A facilidade com a qual multinacionais estadunidenses encerraram suas operações no México e a falta de vontade do governo estadunidense em intervir sobre a questão sugerem que o USMCA é um mecanismo bastante focado na proteção dos investimentos de empresas dos EUA.
Esses casos também demonstram como empresas estadunidenses—e, por extensão, o governo dos EUA—transferem os custos e as responsabilidades de suas subsidiárias para os governos do México e do Canadá. Além da compensação às empresas que os Estados mexicano e canadense são obrigados a fazer por meio do ISDS, recai sobre eles também o ônus de obrigações empregatícias como indenizações, benefícios vinculados ao desemprego e custos associados ao encerramento das operações.8 Os pilares desse fenômeno são erguidos sobre mais de cinco décadas de transferência dos custos de reprodução social dessas empresas para as famílias mexicanas e para o governo mexicano, resultado da flexibilização trabalhista, das isenções fiscais e de renúncias ao pagamento de indenizações. A VU Manufacturing, por exemplo, ainda deve salários e indenizações a trabalhadores mexicanos, mas, uma vez que encerrou as atividades da subsidiária no país, está isenta de qualquer penalidade.
Embora o governo dos EUA tenha se distanciado do caso da VU Manufacturing, sob a vigência do USMCA, continua agindo como cão de guarda dos direitos trabalhistas de mexicanos empregados no setor automotivo. Essa disjunção ilustra um aspecto fundamental do acordo. Apesar de celebrado como o primeiro acordo de livre comércio comprometido com o fortalecimento de direitos trabalhistas, o USMCA corrobora amplamente o poder corporativo ao passo que ignora a legislação trabalhista mexicana de 2019. Enquanto corporações estadunidenses sofrerem fracas consequências por retaliações à legislação trabalhista do México e pela fuga de capitais, a conquista de direitos e melhores condições de trabalho por parte dos mexicanos empregados na cadeia de suprimentos da indústria automobilística dificilmente os aproximará da força de trabalho do setor nos EUA. Uma vez que cabe aos EUA fazer cumprir as regras, uma reforma efetiva exige a incorporação de mecanismos de responsabilização à estrutura existente do USMCA.
Luta dos trabalhadores
Nos EUA, embora o IRA, para determinados setores, vincule benefícios ao cumprimento de padrões trabalhistas e a garantias de salários compatíveis com os níveis predominantes, a indústria automobilística ficou de fora dessas regulamentações. Apesar de o setor automotivo ter recebido generosos incentivos para a fabricação de veículos elétricos, o presidente do sindicato United Auto Workers (UAW), Shawn Fain, ressaltou que tais incentivos não garantem condições trabalhistas ou salariais melhores para os trabalhadores do país. Dilema semelhante é enfrentado pelos trabalhadores mexicanos, uma vez que o USMCA prioriza a proteção dos investimentos em detrimento de obrigações legais de caráter trabalhista.
Os incentivos do IRA podem mudar o cenário do México. Potencialmente, o crédito fiscal para veículos elétricos seria capaz de fortalecer a cadeia de suprimento mexicana na produção de automóveis, mas os incentivos aos fabricantes do setor nos EUA podem também resultar em processos de “reshoring” dessa cadeia. A ausência de mecanismos regulatórios no USMCA que evitem a fuga de capital tornam a segunda hipótese mais provável. Há possibilidade de que mais multinacionais estadunidenses encerrem suas operações no México se confrontadas com futuras reclamações trabalhistas. A VU Manufacturing e a Unique Fabricating criaram um precedente perigoso para os trabalhadores mexicanos: sob as normas do USMCA e a fiscalização trabalhista dos EUA, empresas estadunidenses ganharam a possibilidade de responder a proteções trabalhistas mexicanas fechando suas subsidiárias no país.
Para contemplar os trabalhadores de ambos os lados da fronteira, como o USMCA alega ser o objetivo, o acordo comercial deve penalizar empresas cujas subsidiárias descumpram padrões trabalhistas internacionais. Soluções como essa, no entanto, parcem implausíveis num contexto no qual os acordos de livre comércio se revelam como acordos de investimento resultantes de negociações entre Estados, voltadas a beneficiar empresas e seus acionistas, o que traz como consequência a restrição do espaço doméstico de cada signatário para a formulação de políticas públicas. Diante da eleição de Claudia Sheinbaum como próxima presidente do México, a revisão do USMCA prevista para 2026 pode ser um momento crucial para limitar a liberdade das multinacionais em desviar de normas trabalhistas. Mas, tendo em vista a ausência de instrumentos de responsabilização de empresas estadunidenses por violações trabalhistas, é provável que o resultado do IRA seja acelerar a corrida para o abismo.
Comentários desativados em Caminhando sobre gelo fino
No dia seguinte ao anúncio pelo governo da proposta do Novo Arcabouço Fiscal (NAF), escrevi numa rede social que a equipe do Ministério da Fazenda dera nó em pingo d’água, pois conseguira conciliar um desenho de política fiscal não totalmente avesso ao mercado (financeiro) com o necessário espaço para o cumprimento das promessas de campanha de Lula, principalmente aquelas associadas às políticas sociais. Ressalvei, no entanto, que a brilhante proposta fora desenhada dentro de uma camisa de força que não precisaríamos estar vestindo.
Poucos dias antes, em seminário sobre desenvolvimento promovido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a conhecida economista indiana Jayati Ghosh disse que o Brasil era um país masoquista, visto que, sem dívida líquida externa, com dívida interna baixa e sem ter exigências do FMI, praticava uma taxa de juros elevadíssima e se autoimpunha a tarefa de gerar superávits primários em meio a tantas demandas sociais e à necessidade de elevar o investimento público. O inusitado da situação, que, em sua perplexidade, a economista, sem encontrar outra explicação plausível, creditou a um suposto traço masoquista do caráter nacional, deriva justamente de, algumas décadas atrás, termos sido obrigados a vestir uma roupa apertada e de a continuarmos vestindo, apesar da chance que tivemos de rasgá-la e que não soubemos aproveitar.
É um pouco da história de como chegamos a essa situação que pretendemos trazer aqui. Essa história teve um capítulo decisivo a partir do impeachmentda presidenta Dilma e do período Temer-Bolsonaro que se seguiu. Tal capítulo passa, dentre outros elementos, pelas condições muito peculiares que permitiram a derrota de Bolsonaro, mas não do bolsonarismo (frente muito ampla, concessões ao mercado financeiro, ao fisiologismo parlamentar etc.), pela necessidade de se negociar com um Congresso ultraconservador e que exibe poder político crescente (avultado pelo próprio processo de impeachment), pela força exponencial que foi ganhando em nossa sociedade o projeto econômico liberal e o domínio da riqueza financeira, e pela premência de se revogar a bizarrice de uma regra fiscal abrigada no seio mesmo da Constituição Federal (CF).
Tão logo foi anunciado, o NAF recebeu uma saraivada de críticas. Dos liberais, grande mídia incluída, por supostamente confiar demais na recuperação das receitas do Estado e não se preocupar devidamente em “cortar gastos”. Da esquerda, por ter sido visto como um novo teto, mais frágil talvez, mas ainda assim um teto, restritivo à ampliação dos gastos públicos, sobretudo dos investimentos públicos. Independentemente de qual seja a análise que possamos fazer do NAF enquanto instrumento de política econômica per se, é só no contexto anteriormente sumariado, e com a posição de seus antecedentes, que faz sentido discuti-lo. Trata-se, portanto, de resgatar a história da austeridade no Brasil que é, simultaneamente, a história da dominância financeira, a qual vem acompanhada pelo enfraquecimento crônico do poder Executivo, em conjunto com uma sorte de rarefação da democracia que está em pleno curso, e à qual mais à frente retornaremos.
Vestindo uma camisa de força
Em 15 de dezembro de 2016, apenas quatro meses depois de consumado o golpe que retirou Dilma Rousseff do poder sem crime de responsabilidade,1 foi promulgada pelo Congresso Nacional a Emenda Constitucional 95 (EC 95). Seu objetivo era alterar as disposições transitórias da Constituição de 1988 para instituir um novo regime fiscal, popularmente conhecido como “teto de gastos”. Formatada de modo rígido, a emenda congelava, em termos reais, pelos 20 anos seguintes, as despesas correntes e os investimentos públicos federais.
A deposição da ex-presidenta como condição sine qua non para a aprovação da draconiana EC 95 foi indiretamente admitida pelo próprio Michel Temer, ex-vice-presidente que assumira o poder maior com o impedimento de Dilma. Apesar da narrativa oficial de que a destituição se devera a “pedaladas fiscais” (o suposto crime de responsabilidade), em reunião no Conselho das Américas (Council of the Americas) em Nova York no final de setembro de 2016, Temer reconheceu, com todas as letras, que Dilma fora afastada por não ter concordado com a aplicação ao país do programa “Ponte para o Futuro”, um libelo ultraliberal elaborado pelo PMDB,2 partido político de Temer.
Supostamente destinado a “preservar a economia brasileira e tornar viável seu desenvolvimento”,3 o documento arrolava uma série de iniciativas que, em conjunto, conformavam um programa liberal puro-sangue, ou seja, sem os arroubos sociais dos programas do Partido dos Trabalhadores (PT). Dentre elas encontravam-se todas as mudanças necessárias à instituição do teto de gastos (ainda que tal expediente não aparecesse ali com esse nome). A seu lado alinhavam-se, entre outros elementos: o fim das vinculações constitucionais de educação e saúde, a livre negociação trabalhista, a terceirização total, o endurecimento de regras e capitalização da previdência, a privatização sem peias e a liberdade comercial plena (fazendo tábula rasa de Mercosul, Brics, etc.).
A aprovação do teto de gastos ao final de 2016, como já adiantado, foi apenas um capítulo de uma história que começara muito tempo antes. O NAF, aprovado pelo Congresso e sancionado pelo presidente Lula em 30 de agosto de 2023, que veio em sua substituição, é também parte inequívoca dessa história. Um pouco mais folgada que a camisa de força anterior, essa roupa nova continua, contudo, muito apertada. Como chegamos a isso?
As circunstâncias que nos obrigaram a começar a usar esse traje desconfortável remetem aos anos 1980, quando o Brasil se tornou insolvente em dólar por conta dos seguidos choques do petróleo e, sobretudo, do golpe financeiro que os Estados Unidos aplicaram ao mundo, em 1979, com a quadruplicação de suas taxas de juros. O elevado nível do endividamento externo quando o país foi atingido pelos juros extorsivos da “política do dólar forte”4 decorreu da necessidade que tivera o governo militar de fazer frente ao desequilíbrio externo provocado pelo primeiro choque do petróleo, de 1973, sem prejudicar em demasia o crescimento, que vinha embalado no ritmo do “milagre”.
Ao mesmo tempo, o país prestava com isso um enorme serviço a uma riqueza financeira internacional crescente e ávida por aplicações, no contexto de um cenário de crise mundial. Como os contratos tinham sido estipulados, em sua maioria, a taxas flutuantes, o aumento superlativo dos juros quebrou o país (assim como vários outros países da América Latina). A partir de então, o Brasil enfrentou uma década e meia de altíssima inflação e teve que se submeter aos ditames do FMI. Depois de atender algumas exigências dos credores internacionais (securitizar a dívida externa, abrir o mercado de títulos privados e públicos e dar continuidade à abertura financeira da economia, com a retirada gradativa dos controles ao livre fluxo de capitais), o país conseguiu, nos primeiros anos da década de 1990, solucionar a questão da dívida externa, pendente desde a moratória de 1987, destravando assim o mercado internacional de crédito.
O retorno dos capitais ao Brasil possibilitou o sucesso do PlanoReal que, depois de muitos outros planos frustrados ao longo de 15 anos de pressão inflacionária ininterrupta, foi bem-sucedido em alcançar a estabilidade monetária de nossa economia.5 Lançado em 1994 e elaborado pela equipe econômica de Fernando Henrique Cardoso (FHC), então ministro da Fazenda, o Plano Real, no entanto, não foi apenas um plano de estabilização. Ele trouxe consigo também a intenção, explícita no governo de FHC (1995-2002), de abraçar os dogmas liberais (tal como então arrolados pelo chamado Consenso de Washington) e transformar o país numa potência financeira emergente.
Assim, ancoradas na estabilização monetária, outras providências foram tomadas, com FHC já presidente da República, visando transformar o país num porto seguro para a valorização da riqueza financeira internacional, cujo volume aumentava velozmente. Vieram desse modo a concessão de isenções tributárias a ganhos financeiros de não residentes, alterações legais para dar mais garantias aos direitos dos credores do Estado, uma reforma previdenciária para cortar gastos públicos e abrir o mercado previdenciário ao capital privado, uma política monetária de elevadíssimos juros reais6 e, como não poderia deixar de ser, a busca incansável por polpudos superávits primários.7 Começava aí, digamos assim, oficialmente, a história do país dentro dessa roupa apertada demais.
No entanto, mostrou-se quimérica a crença de que o crescimento doméstico poderia se apoiar integralmente na poupança externa, livrando definitivamente o país das recorrentes crises externas que marcavam sua história. Em janeiro de 1999, como desdobramento da crise que atingira primeiro os países asiáticos (Tailândia, Indonésia, Coreia do Sul e Taiwan) e depois a economia russa, o Brasil enfrentou forte crise cambial, enorme perda de divisas, e recorreu mais uma vez ao FMI.
Em consequência, não só o país viveu um período de crescimento medíocre, quando não recessivo, como houve uma mudança substantiva na política econômica. Em vez do câmbio fixo, um dos responsáveis pela crise, dado o populismo cambial operado por FHC no ano anterior visando sua reeleição, foi adotado o regime de câmbio flutuante, e, junto com ele, o sistema de metas de inflação. Foi só aí, na realidade, que o traje do país como pretendente a potência financeira emergente foi concluído, pois o controle da política monetária deixou de ser feito via taxa câmbio, para ser feito através do regime de metas.
Dentre os preceitos caros ao chamado Consenso de Washington, que balizava nossa política macroeconômica pós-Plano Real, estava a adoção de um regime cambial de taxa única e definida pelo mercado, ou seja, um regime de câmbio flutuante. Contudo, o câmbio fixo era o fiador do sucesso da nova moeda, que foi mantida sobrevalorizada e se constituiu como trunfo político maior de FHC. Somente depois de já reeleito,8 movido pela grande crise de dezembro de 1998/janeiro de 1999, FHC alterou a política cambial. Os dois novos elementos (câmbio flutuante e regime de metas de inflação) combinaram-se com a imposição de resultados primários sempre positivos para constituir o famoso tripé macroeconômico, o qual conforma até hoje o ambiente em que as decisões econômicas são tomadas no Brasil.
Assim, se a adesão incondicional às recomendações do Consenso de Washington foi uma espécie de batismo da economia brasileira nas águas pesadas da política fiscal contracionista, a substituição da antiga “âncora cambial” pela “âncora monetária” (regime de metas e superávits primários) submergiu de vez o país nessa atmosfera turva, tornando o novo traje ainda mais apertado. Tão apertado que, mesmo a ascensão ao poder federal de um presidente e um partido forjados na luta cotidiana pela melhoria das condições de vida dos trabalhadores não mudou quase nada nessa história.
No início da primeira gestão de Lula, os parâmetros macroeconômicos vigentes foram inclusive aprofundados: elevação ainda maior da taxa de juros, chegando aos 26,5% ao ano em março de 2003, enorme arrocho monetário, com corte de cerca de 10% nos meios de pagamento da economia e, sobretudo, adoção de uma meta de superávit primário maior do que a exigida pelo próprio FMI. No último acordo, assinado em junho de 2002, a meta de superávit primário acordada fora de 3,75% do PIB e Lula, tendo que beijar a cruz com mais fervor para que acreditassem nele,9 elevou voluntariamente a meta para 4,25%.
Ao longo do tempo, os governos do PT foram se diferenciando de seus antecessores porque, combinadas com a continuidade dessa agenda liberal10 e com os superávits primários, que continuaram a ser produzidos, foram sendo adotadas políticas sociais de alto impacto, capazes de reduzir a desigualdade e praticamente extinguir a miséria absoluta, além de permitir, entre outras coisas, o acesso ao ensino superior de milhões de jovens oriundos das famílias de mais baixa renda (principalmente negros). O ciclo de commodities dos anos 2000, que beneficiou enormemente o Brasil, foi o elemento decisivo na possibilidade então existente de conciliação entre a roupa apertada que o país continuava a vestir e as políticas públicas que se implementavam.
Mas o boom de commodities produziu ainda um outro resultado alvissareiro: a elevação substantiva das reservas em divisas do país, que cresceram mais de cinco vezes, saltando de US$ 35,9 bilhões em dezembro de 2001 para US$ 180,3 bilhões em dezembro de 2007. Nessa nova situação, não só o país resolvera definitivamente os problemas com seus credores externos, como recuperara preciosos graus de liberdade na condução da política econômica, não dependendo mais do FMI e podendo deitar fora de vez aquela vestimenta tão incômoda. Mas, para tanto, era mister a existência de um projeto para o país capaz de redesenhar os parâmetros de sua inserção na divisão internacional do trabalho, de elevar a produtividade e de gerar empregos de melhor qualidade.
O projeto, porém, não existia. O governo de Lula, reeleito em 2006, buscava extinguir a miséria e reduzir a desigualdade, mas sem mexer nos marcos legais, institucionais e socioeconômicos que davam protagonismo à riqueza e aos interesses financeiros. Ademais, quase duas décadas de juros reais elevadíssimos (quase sempre os maiores do mundo) e câmbio sobrevalorizado — medidas afinadas com o projeto de transformar o Brasil numa potência financeira — desindustrializaram precocemente o país, provocando um retrocesso em nossa matriz produtiva, que passara a se apoiar cada vez mais em atividades de baixo valor agregado (agropecuárias e extrativas).
Mesmo o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado por Lula nos primeiros dias de sua segunda gestão (janeiro de 2007), foi, nesse sentido, iniciativa tímida, mero reconhecimento do poderoso efeito multiplicador de produto, renda e emprego acionado por investimentos públicos. O processo de resgate da autonomia do Estado brasileiro na condução econômica poderia ter evoluído e se consolidado desde então? Sem dúvida, mas já estourava no plano internacional a grande crise financeira, embaralhando mais uma vez as cartas e, ao fim e ao cabo, transformando nossa roupa fiscal apertada em verdadeira camisa de força.
De início driblada pelos expedientes de subsídios aos setores de maior efeito multiplicador (automóveis e eletrodomésticos) e por uma agressiva expansão do crédito ao consumidor, a crise veio a se agravar no início da primeira gestão da presidenta Dilma. O período coincidiu com a agudização da crise financeira nos países da periferia da Europa, o que teve consequências graves para todo o comércio mundial, afetando negativamente o componente externo de nossa demanda agregada. Para enfrentar a nova conjuntura e, ao mesmo tempo, tentar reverter o processo de desindustrialização, o governo lançou o plano “Brasil Maior”, visando fortalecer as exportações e elevar a competitividade da indústria nacional também no mercado interno.
Além do fortalecimento do crédito subsidiado do BNDES para investimentos e para empresas exportadoras, previa-se reintegração de tributos em contrapartida a vendas externas, isenção de impostos na aquisição de máquinas e equipamentos, e desoneração da folha de pagamentos para os setores que fossem grandes empregadores de mão de obra. Políticas de conteúdo local para determinados setores, como veículos, máquinas e medicamentos também foram acionadas. Ao lado desses expedientes, tiveram início, em conjunto com medidas de controle do fluxo internacional de capitais, um processo de relaxamento monetário visando reverter o movimento de apreciação do real e uma política de intervenção nos preços administrados (combustíveis, energia) para conter os impactos inflacionários da desvalorização do câmbio. Por fim, para enfrentar o ruidoso discurso “anti-gastança” que alegava ser necessário compensar o gasto tributário decorrente das isenções e desonerações do plano “Brasil Maior”, efetivou-se um aperto substantivo na política fiscal, afetando sobretudo os investimentos públicos, que vinham acelerados desde o lançamento do PAC. A taxa média real de crescimento dos investimentos do governo central cai de 26% ao ano no período 2006-2010 para 1,8% na primeira gestão de Dilma.11
Mas a aposta não vingou. A ausência de resposta do investimento privado (a folga fiscal concedida às empresas transformara-se em margens de lucro majoradas), o corte efetuado nos investimentos públicos para acomodar as isenções e desonerações, o esgotamento dos impulsos derivados do consumo e a continuidade da crise externa, com enorme redução do preço das commodities exportadas pelo país, começaram a produzir resultados desastrosos do ponto de vista do crescimento, culminando com a taxa de 0,52% em 2014, último ano da primeira gestão Dilma. Além disso, o advento das taper tantrum nos EUA a partir de 2013, com especulações em torno do estancamento da política de quantitative easing, trouxe ainda mais incerteza, o que levou a uma piora das contas externas. Isso fez o país, pela primeira vez desde 2002, perder reservas (foram menos US$ 14,4 bilhões), interrompendo-se assim um período de altas impressionantes, que levara os estoques de divisas dos US$ 35,9 bilhões de 2001 para mais de US$ 370 bilhões em 2012.
O agravamento do cenário econômico levou à conturbação do cenário político, fazendo com que o país, depois das manifestações de maio/junho de 2013, se encaminhasse dividido às eleições presidenciais de 2014. Dois modelos estavam em disputa: de um lado, a tentativa de, mesmo em meio à crise, dar prosseguimento à estratégia conciliatória; de outro, a busca por resgatar in totum a agenda liberal e romper com esse arranjo. A vitória apertada de Dilma e o terrorismo econômico praticado pela grande mídia corporativa levaram a presidenta a uma equivocada tentativa de agradar ao mercado, trazendo, em 2015, para o comando da política econômica, um prócer do setor financeiro: Joaquim Levy.
A guinada ortodoxa de Levy, tendo como meta única e exclusiva melhorar o resultado primário (um corte brutal no PAC – R$ 58 bilhões, correspondentes a 1,1% do PIB –, um reajuste brusco dos preços administrados, elevação contínua da taxa de juros básica), levou a um imediato agravamento do cenário. A retomada da ortodoxia combinou-se, para um desfecho ainda pior, com os efeitos deletérios da “Operação Lava Jato” sobre setores chave para a formação bruta de capital fixo, como petróleo e construção civil, e com as pautas-bomba12 que um Congresso cada vez mais poderoso lançava sobre o Executivo, elevando a instabilidade político-econômica do país. Os resultados de 2015 foram péssimos: o PIB caiu 3,6%, a inflação ultrapassou a barreira dos 10% anuais e o resultado primário ficou negativo em 2,1% do PIB – muito pior dos que os 0,56% negativos de 2014 e que tanto barulho havia causado na mídia.
O ambiente economicamente sombrio transformou a inquietação política, mantida há dois anos em fogo brando, num verdadeiro fogaréu, levando às cinzas não só o mandato da presidenta, mas a fugaz possibilidade de recuperarmos nossa autonomia e nos livrarmos finalmente da aflitiva indumentária que fôramos obrigados a trajar por um quarto de século. Veio, junto com o golpe de 2016, o mandato tampão de Michel Temer e o famigerado teto de gastos, o capítulo mais característico da história brasileira nas águas venenosas da austeridade e do domínio dos interesses financeiros, com o qual abrimos estas reflexões. Terminado o mandato de Temer e com Lula preso, veio Jair Bolsonaro, a nuvem fascista e o ultraliberalismo de Paulo Guedes, um defensor de primeira hora do garrote fiscal.
Ressalte-se que a adoção do teto de gastos não veio ocupar um lugar vazio, como se não existisse até então nenhum mecanismo doméstico capaz de exercer qualquer tipo de controle sobre as contas públicas, para além dos mecanismos de pressão do FMI nos períodos em que a economia andava submetida a seu comando. Ao contrário, a CF já previa, por exemplo, a chamada “regra de ouro”, que proíbe ao Executivo contrair dívidas para financiar despesas correntes, incorrendo o ente público em crime de responsabilidade em caso de desobediência. Além disso, desde a adoção do tripé, em janeiro de 1999, a necessidade de produzir resultados primários positivos tornou-se cláusula pétrea do regime macroeconômico vigente. Esse princípio foi reforçado, no ano seguinte, com a aprovação da Lei Complementar101/2000, que criminaliza o gestor que a contraria. Conhecida como Lei da Responsabilidade Fiscal (LRF), ela institui limites e condições para despesas com pessoal e renúncia de receitas, a par de obrigar o estabelecimento de metas anuais relativas às receitas, despesas, resultados primário e nominal, e montante da dívida de cada ente federativo.
Isto posto, e dada a situação bastante confortável tanto do ponto de vista externo (ao final de 2016 o país não tinha nenhuma pendência e acumulava US$ 365 bilhões em reservas) quanto da relação dívida/PIB (que não chegava a 70%,13 quando a de países desenvolvidos como EUA, Reino Unido e Japão era da ordem de 100% ou mais), o teto de gastos foi uma imposição adicional desnecessária, pra não dizer criminosa, de enorme severidade, que encontra evidente explicação no plano ideológico, mas que indica também a clara afinidade eletiva entre, de um lado, as forças políticas que se combinaram para destituir Dilma e, de outro, o peso cada vez maior dos interesses ligados à riqueza financeira e ao rentismo, em permanente luta em prol das políticas de austeridade.
O terrorismo econômico que nos acompanha desde a estabilização monetária, mobilizando fantasmas vários (retorno da inflação, crise externa, explosão da dívida interna etc.), sempre no sentido de forçar o poder Executivo a adotar as medidas do agrado do mercado financeiro, subiu o nível dos ataques a Dilma, quando, ao final de 2014, o resultado primário ficou negativo em 0,56% do PIB. Sendo produto muito mais da desaceleração do PIB do que de explosão descontrolada dos gastos públicos, o déficit foi um dos principais argumentos a enfraquecer Dilma, já bastante fragilizada politicamente pela apertada vitória nas urnas. Também não é mera coincidência o fato de o crime de responsabilidade (não provado) atribuído a Dilma ter sido o das “pedaladas fiscais”;14 era evidente aí a ascensão agora vertiginosa da ideologia fiscalista que culminaria no teto de gastos de Temer.
Mas o impeachment de Dilma revelou também um outro fator de fundamental importância na constituição da camada de gelo, finíssima, sobre a qual caminham hoje as autoridades econômicas: o progressivo poder do Legislativo — levando alguns especialistas a falar na existência de um semipresidencialismo ou de um parlamentarismo à moda da casa, sem primeiro-ministro nem a prerrogativa de dissolução do Congresso — e, junto com ele e associado ao domínio dos interesses financeiros e dos preceitos liberais (como a obsessão por resultados fiscais positivos), uma sorte de rarefação da própria democracia. A ascensão de Temer jogaria muita água nesse moinho, pois o novo presidente se submeteu integralmente ao Congresso, fazendo a balança de poder entre Executivo e Legislativo pender cada vez mais para o segundo.
Caminhando sobre gelo fino
A vitória do presidente Lula nas eleições de 2022, ainda que por margem mínima e inferior à inicialmente prevista, tirou de cena, ao menos por ora, o horizonte lúgubre de ultraliberalismo e terror fascista. Dado o teto de gastos e a anarquia instaurada por Bolsonaro nas contas públicas no último ano de seu mandato, tentando a reeleição, havia uma tarefa urgente para o governo que assumiria em 1.o de janeiro de 2023: negociar com o Congresso um respiro fiscal para esse ano, capaz de permitir que as promessas mais notórias de Lula, sobretudo as referentes ao Bolsa Família (R$ 600 mensais por família, mais R$ 150 por criança até 6 anos), pudessem ser cumpridas logo de início.
Sob os auspícios da frente ampla que se formara para derrotar Bolsonaro, mas também por conta da competência e tenacidade da equipe de transição constituída pelo novo governo, as negociações foram extremamente bem-sucedidas. A discussão em torno da chamada Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Transição (que a grande mídia logo batizou de “PEC da gastança”) resultou na Emenda Constitucional 126. Aprovada e promulgada pelo Congresso em 21 de dezembro de 2022, a Emenda autorizava um gasto extra-teto de R$ 145 bilhões em despesas correntes em 2023 (cerca de 1,5% do PIB). Excluíram-se também desse limite despesas com investimentos relacionados a excesso de arrecadação no ano anterior, desde que limitadas a R$ 23 bilhões. Além disso, logrou-se um acordo entre os parlamentares e a equipe de transição no sentido de retirar a política fiscal da Constituição.
O preço a pagar por tudo isso, além da elevação do montante de recursos a destinar às emendas impositivas dos parlamentares, foi a promessa de substituir o grilhão fiscal constitucional por um novo expediente, em forma de projeto de Lei Complementar (LC),15 a ser enviado ao Congresso pelo novo governo até 31 de agosto de 2023. Eis a costura que viabilizou o NAF, roupa, como veremos, ainda apertadíssima e que, repetimos, não precisaríamos estar vestindo. Ela é, de todo modo, muito mais inteligente e — importante dizer, mais flexível do que o pernicioso teto, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista jurídico (dado que está fora da Constituição).
Vejamos os elementos fundamentais do NAF, tal como aprovado (LC 200/23, de 31 de agosto de 2023), para especular depois acerca da existência (ou não) de espaço político para algo muito diferente. Voltaremos assim à questão da relação entre política econômica e rarefação da democracia a que aludimos ao final da seção anterior.
O primeiro expediente importante e diferenciador no desenho proposto e aprovado é a existência de bandas para o resultado primário. Em lugar de uma cifra certeira para ele, como proporção do PIB, tem-se um intervalo em torno de uma meta (que vai de menos 0,25% a mais 0,25%), dentro do qual os valores obtidos são considerados satisfatórios. Como o Executivo não tem o controle total das cifras envolvidas (a arrecadação, por exemplo, depende da performance da economia como um todo), a flexibilidade é bem-vinda.
O segundo elemento a destacar é um dispositivo anticíclico que limita, nos dois sentidos, o crescimento real das despesas primárias. Assim, de acordo com a LC 200/23, tais despesas deverão crescer anualmente, em termos reais, pelo menos 0,6%, o que garante um mínimo de recursos para fazer face aos gastos inescapáveis com a manutenção da máquina pública, mesmo que, num período de crise, a arrecadação esteja em queda. De outro lado, num período de bonança, em que a receita esteja se expandindo a taxas elevadas, o crescimento real da despesa fica limitado a 2,5%, sendo que, no caso de resultado primário acima da banda, o excedente poderá ser parcialmente utilizado para investimentos no período seguinte. Uma crítica comum aos expedientes que buscam instituir controles sobre os gastos públicos é seu caráter naturalmente pró-cíclico. O NAF procura contornar esse problema.
Por fim, dado que toda essa engenharia contábil-fiscal-orçamentária se destina supostamente a manter a dívida pública em níveis sustentáveis, existe uma cláusula (o inciso I do caput do artigo 5o da LC 200/23) que limita o crescimento real das despesas primárias, num determinado ano, a 70% da variação real das receitas primárias nos 12 meses encerrados em junho do ano anterior, sendo que o não cumprimento das metas de resultado primário rebaixa este limite para 50%. Fazendo a despesa crescer sempre a taxas inferiores às da receita, fica garantido que, pelo menos do ponto de vista fiscal, não haverá pressão para o crescimento da relação dívida/PIB.16
Combinada com o mecanismo anticíclico já apresentado, a última regra, considerado o limitador de 70%, significa que, mesmo que a receita cresça, em termos reais, abaixo de 0,86%, as despesas deverão crescer no mínimo 0,6% nos mesmos termos. De outro lado, mesmo que a receita cresça, em termos reais, mais do que 3,57%, as despesas não poderão crescer mais do que 2,5% nos mesmos termos. Respeitadas essas balizas, o limitador de gastos do NAF não é determinado em termos absolutos, como no antigo teto, mas estabelecido a partir do comportamento das receitas, o que parece muito mais lógico.
No seu conjunto, o NAF é um instrumento muito mais versátil e razoável do que o desacreditado teto de gastos, mas, ainda assim, uma roupa muito apertada, que, vale repetir, não precisaríamos estar trajando se não tivesse ocorrido o golpe de 2016, a “ponte para o abismo” de Temer e, na sequência, a ameaça fascista de Bolsonaro, casada com o ultraliberalismo de Paulo Guedes. Sendo assim, evidentemente, o que se exigia do expediente a substituir o teto era alguma coisa da mesma família, ou seja, um mecanismo que contasse com travas, limitadores e sistemas de ajuste dos gastos públicos. Em termos de desenho, portanto, não parece razoável supor que houvesse espaço para algo mais progressista (voltaremos mais adiante à questão do espaço).
De toda forma, as críticas mais elaboradas ao NAF17 tocam mesmo é no valor dos parâmetros: a meta de resultado primário zero para 2024, o limitador de gastos de 70% da variação da receita; e as barras inferior e superior (0,6% e 2,5%) do mecanismo anticíclico. São críticas que fazem sentido. De fato, a meta de resultado primário zero para 2024 parece bastante ambiciosa, assim como parece um tanto restritivo demais o limitador de gastos, além de muito baixas tanto a barra inferior quanto a barra superior do mecanismo anticíclico.
Todavia, convém lembrar que, diferentemente do antigo teto, incluído na Constituição e requerendo PECs para sua alteração (Bolsonaro, por exemplo, teve de propor várias PECs visando furar o teto — para o auxílio emergencial na pandemia, para não pagar precatórios etc.), os parâmetros em discussão são todos estabelecidos em instrumentos jurídicos infraconstitucionais, ou seja, em lei ordinária, como as metas de resultado primário, ou, no máximo, em lei complementar, como as barras inferior e superior do mecanismo anticíclico, a dimensão das bandas do resultado primário e o limitador de gastos. No caso destes dois últimos (bandas e limitador), cumpre observar que, no projeto originalmente enviado pelo executivo ao Congresso, seus valores seriam estabelecidos a cada ano pela Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), uma Lei Ordinária, mas o poder Legislativo não aceitou a proposta e colocou os parâmetros na lei complementar que instituiu o NAF.
Essa alteração, bem como tantas outras mudanças destinadas a produzir, a partir da proposta do Executivo, um desenho de regime fiscal o mais cerceador possível para a atuação do governo, evidenciam a força e o peso crescentes que o poder Legislativo vem adquirindo no país. Em entrevista que concedeu ao site A Terra é Redonda, publicada em 8 de janeiro de 2024, o cientista político e professor da Universidade de São Paulo (USP) André Singer afirmou que, pelo menos desde 2015, “parece que o Congresso, mais especificamente a Câmara dos Deputados, veio se encaminhando na direção de governar o Brasil”. Segundo Singer, desde Eduardo Cunha (2015-2016), as presidências da Câmara vêm se sucedendo sempre sob essa marca. Por exemplo, na época de Rodrigo Maia (2016-2021), o traço era tão evidente que se falava até em “parlamentarismo branco”. Em artigo escrito a quatro mãos ao final de 2023, o mesmo Singer e Fernando Rugitsky asseveram que a elevação do valor das emendas parlamentares individuais de 1,2% para 2% da Receita Corrente Líquida (uma das moedas de troca para a aprovação do NAF) reforça as tendências semipresidencialistas que crescem no país desde pelo menos Eduardo Cunha.18
Ora, dado o quadro e considerando ser este, por força do crescimento do próprio bolsonarismo, um dos congressos mais conservadores da história,19 parece evidente que ficou muito estreita a margem de manobra do executivo na negociação dos parâmetros, sobretudo na definição das metas de resultado primário para o período 2024-2026.20 Apesar de julgar que a meta de resultado zero em 2024 “definitivamente não faz sentido”, o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira, ex-ministro da Fazenda e da Administração, ressalvou, no entanto, que o compromisso de Fernando Haddad, atual ministro da Fazenda, com esse resultado, serviu para aprovar o NAF no Congresso.
Mas o quadro dos elementos que convertem o andamento das negociações em torno do regime fiscal numa verdadeira caminhada sobre gelo fino não ficaria completo se não mencionássemos outra importante alteração institucional que resultou do levante conservador-liberal que tomou conta do país depois do golpe de 2016. Além da adoção do teto de gastos, o governo Temer foi responsável por outras contrarreformas de peso, que implicaram transformações significativas do ponto de vista social, com enormes perdas para os direitos dos trabalhadores, como a reforma trabalhista e a generalização da terceirização. Todavia, do ponto de vista que aqui nos concerne, ou seja, dos graus de liberdade que detém o poder Executivo para implementar uma dada política econômica, a mudança mais profunda veio mesmo com o governo posterior. Em fevereiro de 2021, Bolsonaro sancionou a Lei Complementar 179/21, que concedeu autonomia ao Banco Central do Brasil (BCB). A principal alteração introduzida pela lei foi o mandato de quatro anos do presidente e de seus diretores, não coincidente com o mandato do presidente da República.
A autonomia retira da alçada de cada novo governo eleito uma das pernas mais importantes da política econômica, a política monetária, pois terá que conviver, por dois anos, com um BC não escolhido por ele. No caso brasileiro, Lula foi o primeiro governante a ter que passar por essa experiência danosa, haja vista, quando a lei entrou em vigor, no início de 2021, que coube a Bolsonaro indicar o presidente do BCB, cujo mandato encerrar-se-á apenas em dezembro de 2024. Ora, se a necessária coordenação fiscal-monetária já fica dificultada pela mera existência de uma autonomia conferida à autoridade monetária, imagine-se o grau de dificuldade que vai envolver a relação entre, de um lado, um recém-eleito governo de centro-esquerda, com objetivos sociais substantivos, e, de outro, um BCB indicado pelo governo anterior, marcado pelo ultraliberalismo. O embate que se estabeleceu, desde o início desta terceira gestão de Lula, entre as autoridades econômicas do novo governo e o presidente do BCB, que manteve uma taxa de juros absurdamente elevada, a despeito das melhoras crescentes em todos os indicadores macroeconômicos (preços, resultados externos, câmbio etc.), é forte evidência dessa imensa dificuldade.
Essa substantiva alteração no panorama regulatório-institucional do país ratifica a margem mínima de manobra da equipe do atual governo na negociação sobre os termos do novo regime fiscal. Não é difícil perceber como isso se relaciona também com uma sorte de rarefação da democracia em muitos dos expedientes celebrados pelo pensamento liberal, tais como as privatizações e o teto de gastos. Em todos esses casos trata-se de reduzir o espaço de atuação da política, seja porque se confere ao mercado a gestão e produção daquilo que passava, antes, de algum modo, pela atuação do Estado, seja porque o gasto público passa a ser pautado, e constrangido, não por escolhas políticas, mas por “questões técnicas”.
No caso da autonomia do BCB, essa redução na capacidade de operação da política parece ser ainda mais verdadeira. Refletindo sobre a história intelectual e factual da ideia de austeridade, Mark Blyth, professor da Brown University, lembra, em livro de 2013,21 que foram os “achados” do monetarismo de Milton Friedman e da teoria da escolha pública de James Buchanan que conferiram ao corte indiscriminado de gastos públicos um estatuto teórico que havia sido perdido desde a avalanche keynesiana. Mas o que é mais interessante na reflexão é a conexão que efetua entre o predomínio dessas ideias desde os anos 1980/1990 e a defesa de uma autoridade monetária independente.22 Para ele, esse conjunto de teorias chega a um resultado inescapável: o único jeito de salvar a economia das forças destrutivas que derivam da própria organização democrática seria banir a democracia. Como isso parece um tanto impopular, a alternativa é tornar a autoridade monetária independente, pois, segundo esse ideário, essas autoridades podem comprometer-se de forma crível com a estabilidade dos preços, coisa que os políticos não podem.
Tomados esses elementos em conjunto, parece haver certa lógica e estratégia no comportamento das autoridades econômicas do governo Lula 3 na condução das negociações que lograram aprovar, seja o desenho do NAF, seja a dimensão de seus parâmetros. A própria meta zero para o resultado primário em 2024 parece fazer algum sentido, pois cumpria retirar de uma autoridade monetária ultraliberal, e com autonomia total para comandar a política monetária, qualquer argumento que reforçasse a prática de manter os juros reais em níveis estratosféricos. Não por acaso, mesmo tendo prazo, até 31 de agosto de 2023, para apresentar a proposta do novo regime fiscal, o Ministério da Fazenda antecipou em cinco meses o anúncio, dando a público a proposta do NAF em 31 de março.
Um bom indicador dos fortes constrangimentos a que está submetido hoje o poder Executivo no Brasil é considerar o Inflation Reduction Act (IRA), aprovado pelo governo dos EUA em agosto de 2022. Visando apoiar a transição energética para fontes renováveis e de energia limpa, são previstos polpudos investimentos, inclusive sob a forma de incentivos fiscais. Para financiá-los, o governo americano criou um novo imposto de 15% sobre qualquer empresa que apresente receita anual acima de US$ 1 bilhão por três anos consecutivos, além de uma alíquota de 1% sobre a recompra de ações. Segundo o presidente Joe Biden, o IRA restaura a justiça tributária, fazendo com que as grandes corporações paguem sua parte.23 Bem, qualquer coisa parecida com isso que se tentasse por aqui geraria um barulho ensurdecedor e poderia acabar em impeachment.
Por conta disso, a tão discutida proposta de reforma tributária está sendo conduzida pelo atual governo de forma fatiada. Em 20 de dezembro de 2023 foi promulgada a Emenda Constitucional 132, que trata de uma parte da reforma tributária. Apesar de conter tributos sobre o patrimônio—Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) para jatinhos, iates e lanchas, e tributação progressiva sobre heranças—, o foco maior da EC 132 são os impostos indiretos, com a criação de dois tipos de imposto sobre valor adicionado, que substituirão outros cinco tributos. Essa parte da reforma, porém, não mexe com a carga tributária, nem com sua distribuição; visa primordialmente a modernização do sistema, tornando-o mais moderno e eficiente e com menor custo de fiscalização para o Estado. A parte mais difícil, e que certamente gerará enorme pressão no sentido contrário visto que os interesses das grandes corporações e do grande capital estão encastelados no Congresso, é aquela a ser discutida neste ano de 2024, que tocará nos impostos diretos, e por meio da qual se buscará fazer os mais ricos pagarem a sua parte (por exemplo, tributando dividendos; fora o Brasil, apenas Estônia e Letônia não cobram tal tributo).
Sabendo da dificuldade que será efetuar esse rearranjo no sistema tributário, o Ministério da Fazenda vem buscando, por enquanto, combater os chamados “jabutis”, espertezas inseridas no arcabouço jurídico, principalmente a partir de 2014,24 que promovem privilégios tributários injustificados, dos quais se beneficiam sobretudo as maiores empresas. Os dados do Tesouro Nacional indicam que a razão receita federal/PIB passou de uma média de 19,7% no período 2004-2013 para uma média de 17,7% no período 2014-2023. Mesmo desconsiderando o ano de 2020, completamente atípico por conta da pandemia, essa última razão fica em 18%.25 Como explicar esse sumiço de quase 2% do PIB em termos de receita? Os “jabutis” são parte importante da resposta e o Ministério da Fazenda resolveu trabalhar por aí para resgatar a capacidade de gasto do Estado, enquanto a reforma tributária não se completa.
Coerente com esse esforço, várias medidas já foram tomadas: a) a mudança das regras no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), garantindo o voto de qualidade para o fisco, em caso de empate; b) a reversão parcial da isenção de imposto de renda sobre juros do capital próprio; c) a tributação de fundos exclusivos e offshore; d) a reoneração da folha de pagamentos de 17 grandes setores; e) a reinserção na base de cálculo do imposto de renda da pessoa jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) dos valores decorrentes das receitas de doação ou subvenção efetuadas pelo poder público;26 f) a regularização de importações via e-commerce; g) a taxação das bets (apostas esportivas on-line); h) a revogação do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (PERSE), criado durante a pandemia, mas prorrogado pelo Congresso até 2026; i) a trava colocada nas regras de emissão de títulos com isenção de imposto de renda, como as Letras de Crédito Imobiliário (LCI) e as Letras de Crédito do Agronegócio (LCA);27 j) a limitação em valor de fundos exclusivos previdenciários (que contam com isenção tributária). Algumas dessas medidas já se tornaram lei, outras ainda vigoram como medidas provisórias e outras demandaram tão somente alterações administrativas para que pudessem ser implementadas. Considerado todo esse conjunto de iniciativas, é razoável pensar que a meta de déficit zero pode funcionar também como elemento de pressão sobre o Legislativo no sentido de transformar em lei as medidas provisórias que instituíram muitas dessas alterações.
Em livro recente, o atual ministro da Fazenda defende a tese de que, com a Proclamação da República ao final do século XIX, o Estado brasileiro, caracteristicamente patrimonial, mudou de mãos sem se republicanizar.28 A substantiva coleção de “jabutis” encontrados pelo governo no arcabouço regulatório-tributário do país, propiciando todos eles a evasão fiscal daqueles que mais podem pagar, é evidência clara de que essa situação, produtora de anomia social, lamentavelmente não se alterou. Se associamos a esse quadro o momento histórico em curso, com um quarto poder representado pelo Banco Central, o Congresso mais conservador da história querendo (e em parte conseguindo) governar e o fascismo à espreita, é fácil perceber quão fina é a camada de gelo sobre a qual teve de caminhar o Executivo federal na árdua tarefa de engendrar para o sinistro teto de gastos um substituto que não incomodasse tanto.
No entanto, como tentamos demonstrar, não se tratou aqui meramente de encontrar um expediente técnico adequado para resolver um problema macroeconômico de ordem fiscal. Há toda uma trajetória ideológico-político-econômica, construída ao longo de décadas, que obriga hoje o governo Lula 3, como nunca antes, a adotar um figurino fiscalista. As forças materiais (riqueza financeira, rentismo) que continuam a se beneficiar da impossibilidade de desvestirmos essa camisa de força possui atualmente no binômio “Executivo enfraquecido & Legislativo com poder inflado”, um forte aliado no sentido de perpetuar essa situação. Evidente que não são largos os limites dessa estratégia de conciliar postura pró-austeridade com justiça tributária. Só a história poderá dizer até que ponto ela foi bem-sucedida, se conseguiu minimamente começar a reverter o jogo e, sobretudo, se conseguiu livrar o país da volta do ultraliberalismo abraçado ao horror fascista.
Comentários desativados em A encruzilhada fiscal de Lula
A luta por justiça social no capitalismo passa necessariamente por aquilo que o Presidente Luís Inácio Lula da Silva diz ser o lema da política econômica e social de seu terceiro mandato: “colocar o rico no imposto de renda e o pobre no orçamento público”. Quando governou o Brasil por dois mandatos sucessivos entre 2003 e 2010, Lula procurou conciliar os pobres e os muito ricos, ampliando o gasto social sem elevar a carga tributária sobre altas rendas, lucros e dividendos. O crescimento econômico no período gerou grande elevação da arrecadação tributária sem qualquer reforma institucional, facilitando a conciliação pretendida.
Desde então, ampliar o gasto social sem enfrentar a regressividade do sistema tributário e o contra-ataque neoliberal da última década se tornou impossível. A ofensiva neoliberal teve êxito em instituir uma Emenda Constitucional que congelou o gasto público em 2016. Embora o governo Lula tenha aprovado, em 2023, um novo regime fiscal que substitui o congelamento anterior, ainda é uma regra que determina, ano a ano, a redução do peso do gasto público no Produto Interno Bruto (PIB). Ademais, o compromisso com a obtenção de superávits fiscais primários crescentes (excluídos os juros da dívida pública) reforça a austeridade e exige grande aumento da arrecadação tributária. Como evoluirá o embate entre os campos políticos que defendem o gasto social ou a austeridade? Será possível “colocar o rico pagando imposto e o pobre no orçamento público”?
O novo lema de Lula está em linha com a fórmula que presidiu a construção de Estados de bem-estar social no mundo desenvolvido. Como demonstrado por Thomas Piketty (2013; 2019) e seus coautores em diversas oportunidades, foram a progressividade tributária e a ampliação dos serviços públicos e do gasto social, contra a resistência feroz dos capitalistas, que reduziram a desigualdade social nos países desenvolvidos entre 1950 e 1980 – antes que a onda neoliberal procurasse “matar a besta de fome” cortando impostos para os ricos e elevando o déficit fiscal que, por sua vez, foi a justificativa para a austeridade.
“Matar a besta” foi exatamente o programa proposto no Brasil em 2015 por ninguém menos do que Michel Temer, o Vice-Presidente de Dilma Rousseff, reeleita no ano anterior com uma plataforma muito diferente. Rousseff foi apoiada por Lula para sucedê-lo em 2011 e, em linhas gerais, continuou seu programa social. Entre 2003 e 2015, o gasto social e o programa Bolsa Família ampliaram a participação no PIB em quase três pontos percentuais, contribuindo para afastar cerca de 20 milhões de brasileiros da pobreza e aumentar o acesso à educação e à saúde pública. Com base nisso, apesar da perda de popularidade no rescaldo dos protestos de junho de 2013, Rousseff conseguiu se reeleger no final de 2014 com um discurso crítico da austeridade proposta por seu principal rival e pelos meios empresariais. Contudo, inaugurou o segundo mandato com um programa de cortes de gastos públicos destinado a aplacar a insatisfação daqueles próprios meios. Seu cálculo foi desastroso: diante de uma economia em desaceleração nítida, a austeridade jogou o país em recessão profunda e aumentou as insatisfações políticas à direita e à esquerda do governo.
Como efeito da crise, a arrecadação tributária caiu 5,6% em 2015 e levou o déficit fiscal primário (sem contar juros da dívida pública) para cerca de 2% do PIB. Enquanto sindicatos e movimentos sociais exigiam de Rousseff o fim da austeridade, a reação dos ricos e seus representantes políticos foi afirmar que “não pagariam a conta” (com mais impostos), como anunciou a propaganda política onipresente da poderosa Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP). A solução dos ricos para a crise era mais austeridade.
Em outubro de 2015, quando o movimento conservador que levaria ao impeachment de Rousseff se iniciava, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) de Temer, principal partido conservador da coalizão governamental liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), apresentou o programa Ponte para o Futuro. Propunha-se, de um lado, radicalizar a austeridade contra o gasto social para permitir desoneração tributária de empresas e dos ricos, e de outro, atrair investimento externo com privatizações, reforma trabalhista e tratados internacionais que rebaixassem tarifas alfandegárias, salários, custos de demissão, e protegessem investidores.
Em visita a investidores estadunidenses em 2016, Temer afirmou que o Ponte para o Futuro foi proposto a Rousseff como condição para evitar o impeachment. Como ela não aceitou, tornou-se ele o Presidente desde maio de 2016. Diante da confissão, podemos abstrair razões secundárias para o impeachment. No governo Temer, a ofensiva neoliberal emplacou em novembro de 2016 a desnacionalização do Pré-Sal, principal fonte de petróleo descoberta pela Petrobras no governo Lula; em dezembro do mesmo ano, a Emenda Constitucional do Teto de Gasto (ECTG); e, em julho de 2017, a reforma trabalhista.
A ECTG foi central para o projeto neoliberal – mesmo com a sua revogação em 2023, a austeridade segue limitando o terceiro governo Lula. Em essência, a ECTG congelava, a partir de 2017, o gasto público federal em termos reais, ou seja, corrigia o valor apenas pela inflação, independentemente do ritmo de crescimento da economia e da população. As melhores estimativas indicavam que, durante os vinte anos em que deveria vigorar, até 2036, a ECTG faria o peso do estado no PIB regredir para o nível de 1996.
O efeito prático da ECTG nos seis anos em que vigorou foi determinar cortes devastadores sobre o gasto social, encampando um experimento radical de austeridade. Os gastos federais com educação sofreram corte de 44% entre 2016 e 2021. O gasto com ciência e tecnologia, que estava na média de 0,9% do PIB entre 2013-2016, caiu para 0,78% em 2020. O investimento público (incluindo empresas estatais), que havia partido de 2,6% do PIB em 2003-2005 para uma média de 4,13% entre 2009 e 2014, caiu desde 2015 e chegou a 2,53% em 2022, afogando consigo o investimento privado em nova capacidade de produção.
O objetivo era evitar qualquer pressão tributária sobre indivíduos de alta renda e sobre empresas, que viram isenções e privilégios tributários aumentarem a partir de 2017. Ademais, a falta de financiamento para a oferta de bens e serviços públicos legitimou privatizações totais ou parciais no período: em 2019, nos ramos de pensões e aposentadorias, em 2021, nos de oferta de água e saneamento e, em 2022, no de energia elétrica. Mesmo nas áreas em que o esforço de privatização não teve sucesso, a carência de oferta pública criou uma demanda reprimida por escolas, saúde, segurança, transporte e afins, que abriu espaços de acumulação para investidores internos e externos.
Às portas do neofascismo
Se não serviu como caminho para o crescimento econômico, a Ponte para o Futuro levou o país à porta do neofascismo. A crise econômica, o desemprego, a pobreza crescente, a piora dos serviços públicos, os escândalos de corrupção e o grande aumento da criminalidade urbana criaram o contexto para a eleição de Jair Bolsonaro. Político de carreira que se reelegia deputado federal conservador desde 1991, Bolsonaro conseguiu se apresentar em 2018 como outsider e ganhou a eleição presidencial prometendo acabar com o “sistema”, ou seja, o já limitado Estado de bem-estar social e, até mesmo, a própria a democracia no Brasil.
Bolsonaro deu continuidade à execução do programa Ponte para o Futuro, terceirizando a tarefa para seu comandante da pasta econômica, o anarcocapitalista Paulo Guedes, e para a maioria à direita no Congresso Nacional. Em novembro de 2019 aprovaram a reforma da Previdência; em julho de 2020, o novo Marco Legal do Saneamento; em fevereiro de 2021, a autonomia do Banco Central; e, em junho de 2022, a privatização da Eletrobrás. O governo ainda entregou o que lhe foi solicitado pela União Europeia num acordo comercial com o Mercosul muito favorável aos concorrentes e investidores europeus.
Contudo, ao contrário da propaganda neoliberal, a Ponte para o Futuro seguiu não conduzindo o país ao espetáculo do crescimento. Como documentado pela experiência internacional, a contração neoliberal da regulação ou oferta pública aumenta a inflação ao permitir a cartelização na determinação dos preços. Já a desaceleração do gasto público e do consumo dos trabalhadores desestimula o investimento privado total. No Brasil, vários estudos demonstram um alto efeito multiplicador do gasto público sobre a renda agregada, o chamado multiplicador fiscal.1
O baixo crescimento, a redução da renda do trabalho e a reação política à austeridade levariam, mais cedo ou mais tarde, à reforma da ECTG, exceto que uma ditadura neoliberal vingasse antes. A pandemia da Covid-19, contudo, acelerou a crise. A contragosto de Bolsonaro e Guedes, o combate à pandemia mostrou a falácia do lema “o dinheiro acabou” face à urgência de transferências monetárias para desempregados e empresas, recolocando a proteção econômica e social acima da austeridade fiscal em vários países.2 Até mesmo Donald Trump foi forçado a ampliar transferências monetárias para cidadãos impedidos de trabalhar, contra o discurso neoliberal de autorresponsabilidade individualista que ele e sua coalizão sempre defenderam. Isso acentuou a ruptura em relação ao neoliberalismo tradicional representado no Partido Democrata por Hillary Clinton e levou Joe Biden ainda mais à esquerda para assegurar o apoio da ala de Bernie Sanders e derrotar Trump.
No Brasil, apesar da promessa de acabar com o programa Bolsa Família, o governo Bolsonaro apenas mudou seu nome e ampliou a arbitrariedade na concessão de benefícios. Entretanto, sob pressão no Congresso Nacional, o valor das transferências aumentou em 2020 para permitir que as famílias cumprissem o mandato de distanciamento social e evitar o aprofundamento da pandemia, para a insatisfação de um Presidente que incitava sua base a não se distanciar, a não usar máscaras e nem tomar vacinas. Com o argumento de calamidade pública, a ECTG foi suspensa em 2020, e o entitulado Auxílio Emergencial às famílias se tornou um enorme programa de transferência de renda com alto efeito multiplicador. Como a demanda do consumo popular foi sustentada, tanto o PIB quanto a relação dívida pública/PIB tiveram desempenho melhor em 2020 e 2021 do que previa o alarmismo do “mercado”, contrário ao gasto social.
Em 2022, a lógica da competição eleitoral contra Lula forçou Bolsonaro à promessa vazia de auxílio mensal para famílias pobres no valor de R$ 600, um aumento substancial em relação aos valores anteriores do Bolsa Família. Contudo, a promessa não era acompanhada de qualquer destinação de recursos na proposta de orçamento federal para 2023, que previa uma contração fiscal de R$ 150 bilhões, de 1,5% do PIB brasileiro.
Tamanha contradição abriu espaço para uma forte crítica de Lula e do PT ao teto de gastos: era simplesmente impossível cumprir promessas de gasto social e de recuperação do investimento público e, ao mesmo tempo, preservar a ECTG. Assim, após a vitória nas eleições presidenciais de outubro de 2022, Lula imediatamente pressionou por uma alteração do orçamento de 2023 que criasse espaço fiscal para a retomada do programa Bolsa Família com aumento dos estipêndios, para a reconstrução de vários programas sociais de seus primeiros mandatos e para a elevação do investimento público.
Lula na ofensiva
Não é exagero dizer que, com a ofensiva política em novembro e dezembro de 2022, antes ainda sua posse, Lula passou a dominar a agenda legislativa do país. A investida exigia a autorização de programas de gasto deficitário que, em menor escala, também tinham sido prometidos por Bolsonaro. De certo modo, isso também tem um paralelo com os Estados Unidos, em que um candidato convertido ao progressivismo como Joe Biden derrotou um presidente neofascista e propôs uma agenda legislativa que autorizava uma forte ampliação do gasto público. Embora não haja espaço aqui para uma comparação profunda, leitores que não conhecem o Brasil a fundo podem perceber que a contradição entre democracia e neoliberalismo é universal no capitalismo contemporâneo, embora se manifeste diferentemente no Brasil e nos Estados Unidos.
Com a expansão fiscal, os objetivos tanto de Lula quanto de Biden3 eram assegurar uma recuperação econômica robusta depois da pandemia e defender a democracia, atendendo às demandas por direitos e por recursos públicos de uma coalizão social heterogênea que incorporava tanto sindicatos industriais quanto movimentos sociais que lutavam pelo reconhecimento de discriminações históricas de base étnico-racial e de gênero. Nos EUA, especialmente depois do assassinato de George Floyd e da indicação de Amy Coney Barrett à Suprema Corte; no Brasil, em resposta aos ataques de Bolsonaro às minorias sociais e aos direitos trabalhistas.
O paralelismo entre as coalizões de Biden e Lula não vai longe, pois a resistência neoliberal não se limitou, no Brasil, a alguns senadores como Kyrsten Sinema e Joe Manchin, mas teve lugar no próprio coração do PT. De fato, as contradições internas ao PT e à coalizão partidária do governo Lula ficaram claras já em novembro de 2022, quando o futuro Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, propôs uma mudança no orçamento de 2023 que não eliminava a ECTG, apenas autorizava o pagamento do novo Bolsa Família acima do limite do teto de gastos. O cálculo de Haddad provavelmente se relacionava com os pisos mínimos para o gasto público em educação e saúde, que, por determinação constitucional, devem acompanhar o ritmo de arrecadação tributária. Como o teto de gastos era uma Emenda à Constituição, suspendia a vigência desses pisos. Em verdade, como veremos, os pisos são incompatíveis com qualquer regra de gasto público que determine seu crescimento abaixo do crescimento do PIB, como a que Haddad proporia mais tarde.
Contra Haddad, uma coalizão liderada pela Presidenta do PT, Gleisi Hoffmann, e pelo Presidente do Senado, o conservador Rodrigo Pacheco (aparentemente apoiados por Lula), pressionou e conquistou a abolição da ECTG com a condição de que um novo regime fiscal fosse aprovado pelo Congresso Nacional até agosto de 2023. O orçamento anual, por sua vez, foi emendado de maneira a permitir um crescimento real do gasto de 9% em 2023, possibilitando a retomada de vários programas sociais e de investimento público interrompidos desde 2017.
Virada neoliberal
Enquanto a expansão fiscal de 2023 acomodou interesses sem a soma-zero que caracterizava o congelamento do gasto federal desde 2017, o embate se transferiu para o contorno do regime fiscal que substituiria a ECTG. Saiu vitorioso Fernando Haddad, com uma proposta nitidamente neoliberal: o chamado Regime Fiscal Sustentável (RFS). O RFS limita o crescimento anual das despesas primárias federais (excluindo despesas financeiras) a um novo teto móvel equivalente a 70% do crescimento anual prévio das receitas tributárias, até um aumento máximo de 2,5% ao ano. Também determina um patamar mínimo para crescimento das despesas de 0,6%, na hipótese de que as receitas cresçam menos do que 0,86% ao ano – um crescimento tão pequeno que não chega a se qualificar como política anticíclica. Ademais, estabelece metas de superávit fiscal primário (gastos menos receitas), de modo que a frustração na tributação pode reduzir ainda mais os tetos anuais de gasto.
A prioridade do RFS é a mesma da ECTG: de início estabilizar, depois reduzir, a relação dívida pública bruta/PIB através do controle do gasto público. A redução da relação dívida pública/PIB resulta em outra finalidade neoliberal mais geral: a redução do gasto público na economia. Conforme reconhecido em publicação do corpo técnico do FMI,4 regras de gasto semelhantes no resto do mundo provocam necessariamente a redução do peso da despesa pública no PIB.
Na vigência do RFS, uma eventual elevação da carga tributária não levará a um aumento proporcional do gasto público, mas sim do superávit primário (o excedente de receitas sobre gastos primários federais). Ao longo do tempo, isso tende a reduzir, como proporção do PIB, tanto o fluxo anual de gasto público quanto, a depender da taxa de juros real e do crescimento do PIB, o estoque de dívida pública, ou seja, a relação dívida pública/PIB. Isso atende às exigências dos credores da dívida e, ao mesmo tempo, cria oportunidades para investimento privado, dados os limites para expansão da oferta pública de bens e serviços. É um regime fiscal que atende aos interesses dos credores da dívida pública e dos empresários interessados em privatizar ou competir com a provisão de serviços públicos, e o faz às custas de cidadãos, sindicatos e movimentos sociais que pressionam por uma esfera pública mais robusta.
A proposta de um regime fiscal austero como substituto para o teto de gasto pode parecer um enigma, considerando que o debate ideológico do Partido dos Trabalhadores se voltou contra a austeridade pelo menos a partir do experimento fracassado de nomeação, em 2015, do neoliberal Joaquim Levy para a condução do Ministério da Fazenda no segundo mandato de Dilma Rousseff. Desde então, o PT sistematicamente criticou o impacto econômico recessivo e concentrador da austeridade fiscal. Isso é manifestado nos programas do partido e de seus candidatos à presidência, inclusive naquele de 2022. Na avaliação acadêmica, a crítica é correta, pois o combate às desigualdades depende historicamente do gasto público. Ademais, vários estudos mostram que a austeridade fiscal reduz a taxa de crescimento do PIB em qualquer prazo, e que países mais “austeros” têm menor crescimento econômico.5
Na prática e na retórica, contra a crítica keynesiana à austeridade, há indícios de que o Ministro Fernando Haddad acredita no argumento neoliberal de que o crescimento econômico pode ser liderado pelo gasto privado apesar da austeridade fiscal, que seria a condição para redução de juros pelo Banco Central e para a retomada da confiança empresarial no futuro da economia, supostamente abalada por uma trajetória presumidamente explosiva da dívida pública. O Ministro e membros de sua equipe também afirmaram que o gasto fiscal deficitário motivaria uma percepção de descontrole da dívida pública na ótica do mercado financeiro, levando à fuga de capitais, à depreciação cambial e ao choque inflacionário resultante. A restrição fiscal é apresentada como condição para a mudança da política monetária e para a garantia da credibilidade da política fiscal perante o mercado financeiro internacionalizado (ao mesmo tempo local e global). Estas últimas, por sua vez, são tomadas como condições para que o crescimento econômico seja liderado pelo gasto privado apesar da austeridade fiscal, por meio de estímulos a investidores locais e atração de investimentos estrangeiros.
Haddad também alude explicitamente ao poder estrutural do mercado financeiro internacionalizado para vetar uma decisão alternativa. Além disso, o Ministro e sua equipe ressaltam o poder de uma instituição do Estado brasileiro – o Banco Central (BC) independente – que partilha da visão de mundo desse mercado e que organiza suas convenções por meio de pesquisas de opinião com os operadores financeiros e de sinalizações a respeito do comportamento futuro das políticas monetária e cambial.
Tais alusões permitem duas conclusões. Primeiro, conceitualmente, a justificativa oficial do RFS exprime uma não-decisão, no sentido de Peter Bachrach e Morton S. Baratz (1962; 1963): as relações de poder se expressam (de modo paradoxalmente implícito) em uma não-decisão se a possibilidade de veto estiver inscrita previamente nas estruturas, nas instituições ou nos cálculos que condicionam a decisão a ponto de impedi-la de antemão.6 Segundo, como o BC faz parte da institucionalidade que supostamente veta uma política keynesiana de expansão fiscal, a política do governo é, indiretamente, definida por uma tecnocracia independente que não passou pelo filtro das urnas, mas pela porta giratória do mercado financeiro. É claro que essa tecnocracia representa, em última instância, interesses dos credores da dívida pública e de empresários interessados em privatizar serviços públicos ou competir com eles.
Lula arbitrou o conflito a favor de Haddad em 2023, mas adota um discurso bastante diferente. Quando investiu contra a ECTG em novembro de 2022 e pleiteou um orçamento com forte expansão fiscal em 2023, o Presidente eleito defendeu veementemente que o gasto social fosse encarado como um investimento, em sentido contrário ao tratamento como desperdício que tipicamente recebe do discurso político neoliberal hegemônico na mídia tradicional. Publicamente, Lula dizia não se importar com a pressão do mercado financeiro e seus efeitos de curto prazo – como elevação de juros de títulos públicos de longo prazo e desvalorização cambial – pois tais efeitos seriam revertidos rapidamente à medida que os especuladores aproveitassem os preços baixos para voltar a comprar Reais e títulos públicos e, de modo mais sustentável, à medida que a economia se recuperasse. Ao contrário, deslocou a pressão contra o Presidente do BC independente, Roberto Campos Neto, acusando-o de determinar a taxa de juros em atenção aos interesses rentistas, sem base em pressões de demanda sobre a inflação e com efeitos recessivos desnecessários para controlá-la em uma economia que já desacelerava.
No entanto, uma vez empossado, a partir de janeiro de 2023 Lula transferiu a iniciativa política e ideológica no terreno fiscal para o Ministro da Fazenda Fernando Haddad, limitando-se a atacar a política de juros do BC independente. Nesse momento, a disputa pelo sentido da política fiscal praticamente acabou diante da adesão do Ministro ao discurso neoliberal hegemônico que culpa o excesso do gasto público pela inflação e pelo risco de inadimplência da dívida pública. Em vista do recuo, a representação do mercado financeiro no Congresso Nacional fez uma ofensiva para tornar o RFS ainda mais restritivo do que a proposta inicial de Haddad.7
Não se sabe o motivo da decisão de Lula de transferir a iniciativa política e ideológica no terreno fiscal para o Ministro da Fazenda. Teria o Presidente sido convencido pelo discurso de Haddad de que o novo arcabouço fiscal não prejudicaria o crescimento econômico e permitiria conciliar, à direita, a retomada da credibilidade da dívida pública perante o mercado financeiro e, à esquerda, o pagamento da dívida social que foi prometida na campanha presidencial, combinando as ditas responsabilidade fiscal e social? Caso contrário, supõe-se que Lula reconheça o impacto recessivo da austeridade. Teria acreditado que era preciso recuperar a credibilidade perante o mercado financeiro, como em 2003 e em 2015, antes mesmo de poder planejar o estímulo à aceleração do crescimento com novos investimentos públicos e privados? Ou teria simplesmente feito um cálculo político pessimista, talvez realista, quanto à correlação de forças?
Teria o Presidente calculado que a tática adotada em novembro e dezembro de 2022 não preservaria a mesma força após a posse do novo Congresso Nacional em 2023 – talvez o mais conservador da Nova República –, e que seria preciso recuar e ceder à pressão empresarial pela austeridade e contra o investimento público e o gasto social, a despeito do risco colocado à implementação de sua agenda de campanha? Teria reconhecido em Fernando Haddad, diante da necessidade de preparar um sucessor para a Presidência da República, uma figura capaz de aglutinar a centro-direita e centro-esquerda em uma nova coalizão política de longo prazo, estendendo no tempo a frente ampla que isola a extrema direita? Ou teria, ao contrário, acreditado não haver alternativa à austeridade no curto prazo e se blindado da impopularidade da medida ao transferir a responsabilidade para Haddad, substituível na hipótese de fracasso da política a médio prazo em uma eventual virada desenvolvimentista, como em 2005?
A escolha da hipótese ou de uma combinação delas fica a gosto do leitor. O que se pode adiantar é que o RFS gera contradições capazes de marcar o destino do governo Lula. A austeridade fiscal como medida necessária para que o investimento privado lidere o crescimento do PIB é uma exigência lógica do RSF. Afinal, supondo-se que, a médio prazo, a carga tributária (arrecadação/PIB) seja estável, o fato de que o gasto público é condicionado a crescer menos que a receita tributária significa que cresce também a uma taxa menor que o PIB. Isso tende, normalmente, a desacelerar o crescimento do próprio PIB, da arrecadação e, dado o RFS, mais ainda do gasto público. A exceção seria o gasto privado (incluindo exportações líquidas) crescer a uma taxa 64% superior à despesa pública, fenômeno que, após 1930, jamais foi registrado por um prazo longo.
Contradições da política fiscal
Uma notável contradição do RFS é que o aumento considerável do gasto privado ser necessário para a sustentação da política não significa que seja viável. Dada a importância do multiplicador fiscal no Brasil, o limite de 2,5% do crescimento do gasto público pode restringir, no futuro, o crescimento do gasto privado e da economia brasileira a algo próximo ou inferior a essa taxa. Como mostrou Guilherme Haluska,8 entre 2004 e 2019 os gastos autônomos públicos contribuíram cerca de duas vezes mais para o crescimento do PIB do que o gasto autônomo privado e do que o setor externo. Sem a fonte do gasto público, o crescimento da renda e do emprego pode ficar muito aquém das expectativas que levaram uma apertada maioria dos brasileiros a preferir a democracia de Lula ao neofascismo de Bolsonaro e, eventualmente, motivar uma punição ao campo democrático nas eleições de 2026.
Outra contradição é que o RFS limita o crescimento das despesas públicas a 70% do crescimento das receitas, mas a Constituição determina que o gasto em educação, saúde e emendas parlamentares cresçam a um ritmo de 100% das receitas. Ainda, a política de valorização real do salário mínimo o vincula ao crescimento do PIB, o que eleva o gasto previdenciário, fortemente indexado ao salário mínimo, também acima de 70% do crescimento das receitas. Como educação, saúde e previdência são as principais rubricas do orçamento federal, seu crescimento a uma taxa 30 pontos percentuais maior do que aquele do conjunto das despesas tende necessariamente a esmagar todas as outras, como aquelas destinadas a projetos de infraestrutura, habitação popular, ao Bolsa Família, à transição ecológica e à ciência e tecnologia, por exemplo.
Isso ocorrerá em já 2024, primeiro ano de vigência do RFS. De acordo com o RFS, o orçamento de 2024 permitiria crescimento de 1,7% do gasto primário. No entanto, uma vez que a meta de resultado fiscal primário é zero, o crescimento de 1,7% depende de um crescimento irrealista da tributação capaz de zerar o déficit fiscal. O problema é que, mesmo que a arrecadação aumente muito e o gasto total possa crescer 1,7%, as despesas não protegidas por pisos legais – educação, saúde, previdência e emendas parlamentares – deverão ser cortadas em termos reais. O cenário é insustentável a médio prazo: ou alargam-se os limites do novo regime fiscal, ou reformam-se os pisos constitucionais referentes a direitos sociais como educação, saúde e previdência públicas. Não é difícil imaginar qual é a opção preferida pela maioria dos eleitores e pela base social do PT. Ainda que a hipótese mais extrema não se dê ainda este ano, a redução brusca diante do crescimento do gasto público de 9% em 2023 pode ter um impacto negativo sobre a taxa de crescimento do PIB a partir de 2024 – jogando gasolina no fogo da desaceleração em um ano de eleições municipais –, o que traria consequências econômicas e políticas até o final do governo.
O risco assumido por Haddad com a meta de déficit zero para 2024 é alto, mas o Ministro argumenta que, sem esse compromisso, a pressão política sobre o Congresso Nacional para a aprovação das medidas de elevação da arrecadação tributária seria reduzida. Há três problemas nessa aposta.
O primeiro é que pode existir um outro cálculo, mais maquiavélico, feito alguns parlamentares. O descumprimento de metas fiscais é negativo para o governo, mas eleva o poder de barganha do Congresso perante o Executivo, uma vez que a política fiscal é matéria criminal – Rousseff, por exemplo, sofreu impeachment sob a premissa de ter cometido um pequeno delito fiscal. Haddad planejava enviar em abril deste ano sua proposta de reforma tributária progressiva, medida necessária para o alcance de suas metas fiscais ambiciosas, mas a resistência política parece ter levado ao adiamento. Como a arrecadação não vem mostrando o desempenho espetacular esperado, o que o Ministro anunciou em abril foi um recuo no grau de ambição das metas de superávit fiscal primário até 2026. O novo projeto ainda se compromete com a obtenção de superávits primários, mas em escala menor. Isso indica que o governo reage também à pressão de sua base, e não apenas à pressão do mercado.
O segundo problema é que o PT parece desconfiar que Haddad, seja por convicção ideológica, seja porque quer pilotar em 2030 uma frente ampla majoritariamente de centro-direita, não adere a contragosto ao austericídio de um Congresso neoliberal. A confiança mútua será testada caso se insista na revogação dos pisos constitucionais para gastos com saúde e educação (uma ideia já levantada pelo Secretário do Tesouro do Ministério da Fazenda), o que levaria a uma maior resistência do PT à ideia de Haddad como futura liderança partidária.
O terceiro problema é que, caso a aposta de Haddad no crescimento puxado pelo mercado fracasse, é pouco plausível que Lula aceite morrer, junto com seu Ministro, abraçando os dogmas do neoliberalismo. Não é improvável que Lula exija uma reforma do RFS para poder gastar o suficiente para assegurar o crescimento da renda e do emprego e atender às demandas por gasto social de seus eleitores. Haddad acompanharia Lula na meia-volta ou continuaria preso ao neoliberalismo e às pressões do mercado financeiro? Não há como prever. O que se pode sugerir é que a luta por justiça social contra a austeridade é o principal fator determinante do destino do governo Lula e, talvez, da própria democracia brasileira.
Inovando em seu terceiro mandato, o Presidente Luís Inácio Lula da Silva lança um ambicioso programa de renegociação de dívidas com foco na população inadimplente, que cresceu de forma exponencial nos anos recentes, no lastro de uma expansão sem precedentes do mercado de crédito no Brasil. O Programa Desenrola Brasil, promessa de campanha, surge como uma boia de salvação para dezenas de milhões de brasileiros que acumularam atrasos de pagamentos, alimentando níveis crescentes de inadimplência. Negativados, perderam acesso ao consumo financiado via endividamento junto ao setor financeiro bem como através do crediário, forma popular de parcelamento de compras no grande varejo. Se o crédito no Brasil é caro—muito caro—em particular o crédito de consumo, a exclusão do mercado de crédito onde se podem financiar necessidades básicas a que os salários não alcançam é uma ameaça à própria reprodução social das classes trabalhadoras.
Esse quadro insólito, em que o endividamento garante a sobrevivência numa economia de mercado, é recente no Brasil. A bancarização em massa das classes populares e sua “inclusão financeira” sinalizam a generalização da expropriação financeira que arrasta os setores populares para dentro do sistema financeiro, tornando-os peça-chave na criação de riqueza financeira, a contrapartida da dívida de que se apropriam as elites.
Não surpreende, portanto, o aumento acelerado e contínuo do número de pessoas endividadas e do grau de comprometimento da renda domiciliar disponível com o pagamento de dívidas. Segundo o Banco Central do Brasil,1 ao final de 2020, havia cerca de 85 milhões de pessoas endividadas junto ao setor financeiro, algo como 46% da população adulta, sendo pouco mais de 8 milhões designadas como “endividados de risco”.2 A inadimplência alcançava 8,9 milhões de pessoas.
Em pouco mais de dois anos, contudo, essa fotografia se deteriorou sensivelmente no embalo da crise da Covid-19. Enquanto o número de tomadores de crédito continuou em expansão em ritmo esperado, ultrapassando a cifra dos 105 milhões de pessoas, o número de endividados de risco praticamente dobrou e atingiu 15,1 milhões em março de 2023,3 em razão da explosão da inadimplência, que atinge algumas dezenas de milhões de pessoas, carregando uma dívida no valor de R$ 350 bilhões (US$ 70 bilhões).4 Os pobres por dívida,5 aqueles que caem abaixo da linha de pobreza oficial por comprometerem parcela elevada de sua renda com pagamento de empréstimos, já fazem parte do cenário a cada dia mais complexo de enfrentamento das desigualdades sociais.
Quaisquer que sejam as cifras e os montantes estimados, claro está que se tornou urgente não apenas medir e auscultar o universo dos endividados, e os débitos inadimplidos ou em atraso, mas formular alternativas para dirimir o bloqueio que tal realidade traz ao reaquecimento do mercado doméstico, ao inibir o consumo das famílias trabalhadoras. Daí o lançamento, em julho de 2023, de um programa inédito por parte do governo federal, o Desenrola Brasil, cuja finalidade consiste em oferecer condições para que as pessoas negativadas possam renegociar suas dívidas e, assim, reduzir seu grau de vulnerabilidade financeira, restabelecendo a capacidade de endividamento, necessária à retomada de um novo ciclo de expansão financeira. Isso porque o próprio Banco Central6 reconheceu que a elevada alavancagem das famílias e as perdas crescentes que tal alavancagem impôs ao setor financeiro acabaram provocando não apenas retração da oferta de crédito às famílias, mas colocaram em xeque a rentabilidade dos bancos. Isso se explica pelo fato de 65% do estoque de crédito estar nas mãos das famílias e por serem elas responsáveis pela maior geração de juros de crédito para o setor bancário (73%), juros esses que incidem majoritariamente sobre crédito de consumo.
O objetivo deste artigo é triplo. Primeiramente, contextualizar como tem lugar o processo de endividamento crônico das famílias brasileiras. Em segundo lugar, situar e mapear o perfil de iniciativas pretéritas que elegeram a dívida como objeto de tratamento por parte do poder público, o que ocorreu em grande escala durante a pandemia do novo coronavírus. Finalmente, refletir sobre o que muda com a gestão da dívida das famílias se tornando dimensão explícita e institucionalizada da política pública, com a criação do Programa Desenrola Brasil.
Uma análise dos ciclos financeiros: da financeirização de massa (1995–2015) à crise de rentabilidade (2016–2021)
O processo de financeirização no Brasil se inicia após o fim do “milagre econômico” (1967–1973) e pode ser dividido em duas fases. A primeira, conhecida como “financeirização elitizada”, ocorreu de 1981 a 1994 e foi marcada pelo contexto da crise da dívida externa e inflação crescente. Nessa fase, o sistema bancário implementou mecanismos de indexação que garantiram a obtenção de ganhos financeiros para uma pequena clientela privilegiada. Nesses anos, em contraste com o crescimento das rendas provindas de títulos financeiros, observa-se uma estagnação dos investimentos produtivos.
A segunda fase, denominada “financeirização de massa”, vai de 1995 a 2015.7 Nesse período, observa-se a redução da inflação e das taxas de juros reais, acompanhadas por um notável aumento nas operações de crédito. No âmbito institucional, essa etapa é marcada por um regime que concilia a ampliação das políticas sociais—em particular transferências monetárias—como vetor de expansão da acumulação financeirizada.8 Durante estes anos, o país transita de uma fase de estagnação dos investimentos produtivos, característica da primeira fase, para a consolidação de um processo de desindustrialização e baixo crescimento econômico.
Gráfico 1
A forte expansão do mercado de crédito na segunda fase é visualizada no Gráfico 1, que coleta dados de uma cesta representativa do setor financeiro-bancário para o período de 2000 e 2023.9 O gráfico exibe as variáveis: lucro líquido (linha lilás), receita de crédito (destacadas pela linha vermelha), e receita de Títulos de Valores Mobiliário (TVM, linha azul),10 que são as receitas associadas aos títulos da dívida pública. As receitas de crédito e de títulos de valores mobiliários são as duas principais receitas do setor. Como ilustrado, o lucro líquido do setor continua a crescer de forma quase ininterrupta; e, diferentemente da primeira fase, na qual o mercado de títulos da dívida era central, destaca-se a cada vez maior importância das receitas provenientes das operações no mercado de crédito.
Em relação à tendência das duas receitas, os dados sustentam a periodização que delimita a “financeirização de massa” de 1995 a 2015. O ano de 2015 marcou o esgotamento dos impulsionadores do crescimento da rentabilidade do setor. A partir do ano seguinte, em meio a uma profunda recessão, as receitas começaram a cair. Com base nesse cenário, esta seção propõe uma análise a partir da ótica dos ciclos financeiros. Para isso, discutiremos dois pontos. O primeiro deles destaca que a queda nas duas principais receitas bancárias já aparecia como tendência antes mesmo da crise da Covid-19 e, por essa razão, podemos considerá-la como tendo uma dimensão mais estrutural. O segundo ponto chama atenção para o papel do Estado na recomposição da rentabilidade do setor.
Analisar o período da crise de rentabilidade revela, outrossim, aspectos interessantes. Segundo Mader,11 diante do recuo das duas fontes de receita de 2016 até meados de 2021, a estratégia do setor bancário para puxar o crescimento do lucro líquido e o estabilizar (linha lilás) se apoia no aumento da margem aplicada nas operações de crédito, ou seja, do spread. O spread é importante, pois representa o montante efetivamente retido pelo setor bancário nas operações de crédito (calculado pela diferença entre a receita de crédito e os custos de captação). A receita do spread opera como um canal rentista. Os bancos reagiram à queda da rentabilidade utilizando o seu poder de monopólio no mercado de crédito, aumentando a margem cobrada e transferindo o ônus da crise para os tomadores de crédito.
Lavinas et al. (2022)12 constatam que esse ônus recaiu, principalmente, sobre as famílias. Ao analisar o saldo de crédito a empresas não financeiras e famílias, os autores identificam que, a partir de final de 2016, pela primeira vez na série histórica o saldo de crédito às famílias superou o das empresas não financeiras, prevalecendo de forma contínua e ininterrupta até o presente.13 E são elas, portanto, e, em particular as de menor renda, que arcam com juros proibitivos.
Gráfico 2
O gráfico 2 mostra a evolução recente das taxas de juros médias cobradas pelo setor financeiro, cotejando a taxa Selic e o IPCA. Destaca a centralidade da Selic para compreender como se dá a recuperação das receitas do setor bancário e o aumento do endividamento. Fica claro que, a partir de 2021, acompanhando a alta acelerada da Selic, as taxas de juros praticadas nas modalidades de crédito às famílias registram um pulo expressivo. O crédito consignado, com desconto automático em folha, de menor risco, sobe na média de 19,98% ao ano em maio de 2020 para mais de 25,81% em maio de 2023, enquanto o crédito recursos livres agrupando todas as modalidades de empréstimos às famílias passa de 25% para 38,22% ao ano em média no mesmo período. No mês anterior ao lançamento do Programa Desenrola (maio de 2023), com a inflação em torno de 4% a.a., a taxa de juros do saldo de crédito às famílias situa-se quase 7 pontos percentuais acima daquela praticada no saldo total de crédito.
Pelo lado da oferta de crédito, a partir de 2012, 90% das novas concessões de crédito dizem respeito a crédito não-imobiliário (Banco Central, 2022),14 logo, crédito de consumo, que não serve à acumulação de ativos numa estratégia de prevenção de riscos.
A taxa Selic também é uma variável crucial para compreender a expansão do mercado de crédito brasileiro. Essa relação é evidenciada no Gráfico 3, em que a razão entre a receita de Títulos de Valores Mobiliários (TVM) e a de crédito (representada pela linha vermelha) apresenta uma correlação negativa com a taxa Selic nominal (linha pontilhada). Essa correlação indica que o setor bancário expandiu suas operações de crédito de acordo com as mudanças da política monetária: quanto mais a Selic diminuía, mais o setor passou a depender das receitas de crédito.
Segundo o eixo plotado à direita no Gráfico 3, o valor mais baixo dessa relação foi de mais de 0.9 em 2002, quando a taxa Selic nominal estava, em média, acima de 20% ao ano. O valor de 1 indica que as duas rendas têm o mesmo peso para o setor bancário brasileiro. Já o valor mais alto registrado foi 3.1 em dezembro de 2021, quando a Selic atingiu o seu mínimo histórico (2% ao ano), estando negativa em termos reais. Vale notar que, com a elevação da taxa Selic em 2022, a relação voltou ao patamar de 2004, atingindo o valor de 1.3.
Tal como demonstra o Gráfico 1, o ano de 2021 se destaca por reverter as tendências de declínio das duas receitas. Uma explicação bastante plausível, a partir da leitura combinada dos dois gráficos, é a de que a taxa Selic desempenhou papel crucial nessa reversão. Como amplamente conhecido, a política monetária brasileira se diferenciou de outros Bancos Centrais quando, a partir de 2021, na saída da crise da Covid-19, o BCB adotou prematuramente uma abordagem contracionista, que elevou a taxa Selic para 13,75% em agosto em 2022, recolocando o país no topo da lista das taxas de juros reais mais elevadas do mundo.15 Portanto, um segundo aspecto importante a ser sublinhado é que, em 2022, o Estado, por meio da taxa Selic, foi crucial para recompor a rentabilidade do setor financeiro-bancário.
Gráfico 3
Mais especificamente, ancorados no framework da coalizão de classe financeiro-rentista,16 é possível inferir que a tendência declinante das receitas faz com que a hegemonia financeira, na iminência de uma crise de rentabilidade, intensifique a predominância dos canais rentistas que operam no mercado de títulos da dívida, em prol da elevação da Selic. Isso ocorre porque se torna não apenas preferível, mas imperativo para o setor financeiro ter o Estado como devedor (mercado de títulos da dívida), ao invés de famílias e empresas (mercado de crédito). Essa necessidade surge devido ao fato de o Estado ser o único agente econômico sem restrições orçamentárias, ao contrário de famílias e empresas, que são agentes não emissores. Comparativamente, portanto, estes últimos não têm a capacidade de expandir e honrar o endividamento da mesma forma que o Estado.17
É nesse contexto de ciclo financeiro em fase contracionista, e com um Estado em seu formato “garantidor de receitas de última instância”, que nasce o Programa Desenrola, interpretado aqui como um dos pilares para inauguração de um novo ciclo expansionista financeiro.
Porém, antes de explicitar o contexto que leva à criação e implementação do Programa Desenrola Brasil, cabe examinar as mudanças provocadas pela crise da Covid-19 e como já então impactaram a relação dos devedores junto ao sistema financeiro.
Covid-19 e a crise social: quando a renegociação de dívidas em grande escala entra no radar
Durante a pandemia do novo coronavírus que levou à adoção de lockdowns e outras modalidades de isolamento social, foram adotadas medidas emergenciais voltadas para minorar o sofrimento das famílias e evitar que empresas viessem a encerrar definitivamente suas atividades, fechando as portas e demitindo massivamente a mão de obra. Desta feita, e ao contrário da grande crise financeira de 2008, prevaleceu o bailout às famílias no âmbito das iniciativas de enfrentamento da crise econômica, social e sanitária provocada pela Covid-19 em escala global. Assistiu-se, assim, em todas as latitudes, à implementação de diversos programas de garantia de renda e emprego, cuja característica comum foi assegurar transferências monetárias a parcelas significativas da população impossibilitada de trabalhar, em patamares superiores ao que era vigente no âmbito dos sistemas de proteção social de cada país.
O Brasil não escapou à regra e adotou programas ad hoc de grande impacto em meio à Covid-19, entre os quais: o auxílio emergencial a pessoas em situação de vulnerabilidade; o benefício emergencial; o benefício emergencial de manutenção de emprego e renda; e a concessão de financiamento para pagamento da folha salarial. Tais programas de garantia de renda consumiram 63,5% do “orçamento de guerra” efetivamente gasto em 2020.1819
Os generosos pacotes de alívio fiscal durante a pandemia desnudaram a insensatez da ortodoxia fiscal e monetária que anteriormente restringia o gasto público, reduzindo grandemente o poder redistributivo e de minoração de riscos das políticas sociais. Após quatro décadas de neoliberalismo, tornou-se claro que as políticas de austeridade desmontaram a provisão de serviços públicos, fomentando a privatização e a financeirização. Uma das evidências da dominância financeira na esfera da reprodução social, expressa no endividamento crônico, surge justamente com a adoção de outro conjunto de medidas por ocasião da crise da Covid-19: a suspensão temporária do pagamento de distintas modalidades de dívidas assumidas pelas famílias, notadamente na década anterior à explosão da pandemia. Isso porque a dívida privada das famílias havia alcançado níveis alarmantes, comprometendo parcela considerável da renda disponível do domicílio. Com a violenta queda dos rendimentos em virtude da interrupção da atividade econômica, as taxas de inadimplência já em alta constante corriam o risco de se alastrar e agravar ainda mais as condições de sobrevivência dos grupos fortemente endividados, além de provocar instabilidade no sistema financeiro.
Estados Unidos, Reino Unido, Argentina, Espanha, Itália e muitos outros países adotaram temporariamente medidas semelhantes, combinando generosas transferências monetárias com suspensão temporária do reembolso de dívidas e das sanções até então aplicadas aos inadimplentes ou com contas em atraso. Mais uma vez o Brasil não foi exceção. Em paralelo à implementação do Auxílio Emergencial, que contemplou 67 milhões de pessoas por oito meses, algumas dívidas foram suspensas, caso da dívida dos estudantes com o FIES,20 por exemplo. Porém, a lei aprovada pelo Congresso Nacional em julho de 2020 restringia tal favorecimento apenas a quem estava em dia com seus pagamentos ou com atraso inferior a 180 dias.21 Ademais, também oferecia descontos expressivos para quem aceitasse renegociar sua dívida em meio à vigência da lei. Entretanto, nenhum dispositivo federal foi aprovado de modo a suspender o pagamento de dívidas com hipotecas, aluguel ou pagamento de contas correntes.
Ora, o que se viu em meio à Covid-19, tanto nos Estados Unidos,22 quanto no Brasil, foi uma surpreendente e acentuada redução dos níveis de default e pagamentos em atraso como efeito dos pacotes de estímulo fiscal adotados, que garantiram alta liquidez às famílias, ao mesmo tempo em que, através de medidas de suspensão de dívidas e outros instrumentos administrativos afins, estimularam uma onda de renegociação de dívidas com manifesta liderança dos bancos privados.23
No Brasil, “as famílias reduziram valores em inadimplência e atrasados, ao mesmo tempo que o saldo de crédito aumentou, juntamente com o prazo médio das carteiras. Houve, desta forma, um adensamento da dependência em relação ao mercado financeiro: por um lado, novos empréstimos foram concedidos, renovando os laços que unem estes dois agentes; por outro, estes serão quitados em um tempo maior, tornando esta relação de dependência ainda mais duradoura e estável”.24
Contudo, na comparação entre os Estados Unidos e o Brasil, observa-se um padrão diferenciado de intervenção do Estado no estabelecimento de um marco regulatório dos processos de suspensão e renegociação de dívidas. No Brasil, esse processo de recomposição da capacidade de endividamento das famílias se deu à margem de uma ação coordenada do Estado, ou seja, teve lugar de forma espontânea, como iniciativa do próprio setor bancário. Assim, famílias e trabalhadores mais vulneráveis,25 contemplados pelo programa de transferência de renda emergencial, passam a buscar os bancos para renegociar suas dívidas. Os bancos e outras instituições financeiras movimentaram cerca de 60 bilhões de Reais (US$ 12 bilhões) com programas de prorrogação de dívidas entre março e 31 de dezembro de 2020, sem renegociação das taxas de juros que, à época, como se sabe, estavam em queda livre.26
No que tange o reembolso de empréstimos hipotecários, o Conselho Monetário Nacional recomendou à época que as instituições financeiras suspendessem as prestações de financiamento imobiliário até 120 dias, estendidos posteriormente a 180 dias. Isso ocorreu entre aqueles devedores adimplentes ou com no máximo duas parcelas de pagamento em atraso (no caso de mutuários da Caixa Econômica Federal). Não houve perdão de juros, que seguiram incidindo sobre as demais parcelas. Já para os mutuários do programa Minha Casa Minha Vida,27 cuja faixa 1 é financiada em 90% por recursos públicos,28 fez-se necessário aprovar uma lei específica para suspender tais prestações, até porque em dezembro de 2020 a inadimplência acima de 360 dias já alcançava 33,2% dos contratos.29 Tal projeto de lei (795/2020) passou na Câmara dos Deputados, porém encontra-se até hoje em tramitação no Senado, sendo que sua urgência em virtude da crise provocada pela pandemia já perdeu sentido. Essa matéria jamais foi apreciada no Senado, mas o aumento do percentual de inadimplentes com atrasos acima de um ano subiu regularmente desde então, alcançando um patamar recorde em dezembro de 2022: 45% dos mutuários da faixa 1 do programa.30
O reenquadramento das dívidas individuais se deu, portanto, no caso a caso, o que supõe que possa não ter sido plenamente favorável ao devedor levando a uma redução do principal e da taxa de juros. Estima-se que, em contexto de elevadíssimo desemprego e patamares crescentes de insegurança alimentar grave prevalecentes na crise da Covid-19, a opção da população detentora de “dívidas de sobrevivência”3132 tenha sido assegurar prioritariamente meios de seguir endividada para fazer frente às necessidades mais imediatas e não tombar na exclusão. Isso indica ter-se tornado a “inclusão financeira”, para um grande número de pessoas, a base material incontornável de sua inclusão social, ainda que mediante elevada vulnerabilidade financeira.
Ora, em 2023, a renegociação de dívidas reaparece, desta vez elevada à condição de política pública federal, com desenho formulado pelo Ministério da Fazenda e lançada com pompa e circunstância, como um dos marcos fundadores da administração Lula 3.
Trata-se da repescagem de uma iniciativa pontual bem-sucedida, implementada pelos bancos durante a Covid-19, e agora novamente acionada, desta feita com participação do Estado? Ou trata-se de uma estratégia nova e reestruturante no âmbito do espectro de mecanismos de regulação do mercado de crédito para lastrear novo ciclo expansionista financeiro e que pode ganhar status de política pública?
O Programa Desenrola Brasil: foco na inadimplência, não no endividamento
Reeleito para governar o país a partir de 2023, o PT apresentou o projeto de lei Desenrola Brasil, que foi aprovado em setembro daquele ano na Câmara dos Deputados com ampla maioria. Seu objetivo principal consiste em abrir um canal de renegociação de dívidas entre devedores inadimplentes e credores institucionais (bancos, financeiras, provedores de serviços públicos), sob tutela do Estado, através da oferta de garantias.
De início, o governo estimava atender até 32 milhões de pessoas,33 restringindo-se àquelas com dívidas inadimplidas efetuadas entre janeiro de 2019 e 31 de dezembro de 2022 e cadastradas nos birôs de crédito. Dado o perfil bastante heterogêneo dos devedores inadimplentes, o programa foi estruturado em duas faixas. A Faixa 1 concentra 21 milhões de inadimplentes, aqueles com renda de até dois salários-mínimos mensais—que predominam entre os tomadores de crédito (66%)—rendimento equivalente a R$ 2.824 (US$ 656). Já a Faixa 2 engloba aqueles com ganhos mensais entre 2 salários-mínimos e R$ 20.000 (até US$ 4,036,00), o que corresponde a um universo potencial de 11 milhões de inadimplentes.
Em relação ao arcabouço legal, na Faixa 1, o Estado assume uma parcela significativa do risco: no caso de reincidência da inadimplência, garante aos bancos o pagamento do principal (estipulado após a renegociação da dívida), corrigido pela taxa Selic. No âmbito da Faixa 2, o risco é inteiramente suportado pelas instituições financeiras. Ou seja, em contraste com a Faixa 1, o incentivo à renegociação da Faixa 2 é de natureza meramente regulatória: dívidas renegociadas geram “crédito presumido”, reduzindo o capital mínimo requerido nas exposições dos bancos em seus ativos, proporcionando maior liquidez. A renegociação da Faixa 2 teve início em julho de 2023. Já a faixa 1 começou a ser atendida em setembro de 2023.
Na Faixa 1, a renegociação ocorre por meio da Plataforma Digital Desenrola Brasil, acessada pelo portal do governo: gov.br. Essa plataforma foi desenvolvida pela empresa PdTec, ligada à B3, com o intuito de consolidar dívidas e estreitar o relacionamento entre credores e devedores. Essa empresa tem know how na área de cobranças digitais, atuando na recuperação de créditos inadimplentes por meio de intimações e protesto eletrônicos. Na plataforma, cujo acesso é viabilizado em site do governo, as empresas credoras participam de um leilão, oferecendo descontos sobre o valor das dívidas. Os parâmetros que determinam o montante dos descontos são definidos pelos credores no caso a caso, sem regra geral. O passivo de dívidas inadimplidas foi estimado inicialmente em R$ 150 bilhões (US$ 30 bilhões). Segundo o Ministério da Fazenda, os leilões organizados pelos credores acabaram promovendo um desconto expressivo, da ordem de R$ 126 bilhões (US$ 25,2 bilhões), reduzindo a dívida inadimplida a ser renegociada a apenas R$ 24 bilhões (aproximadamente US$ 5 bilhões). O desconto médio, previsto para ser de 60%, acabou chegando a 83%.
Em relação às dívidas que podem ser renegociadas, o programa abrange débitos provenientes de empréstimos consignados e não-consignados, englobando também dívidas não bancárias. As dívidas que não estão aptas para renegociação são aquelas que se colocam com garantia real ou que estão vinculadas a crédito rural, financiamento de imóveis e operações envolvendo funding ou risco de terceiros. Em suma, o programa prioriza empréstimos “pessoa física recursos livres” (crédito de consumo).
Na Faixa 1, o Estado concede uma garantia exclusivamente às dívidas com valores de negativação que não ultrapassem a marca de R$ 5.000 (US$ 1,000), totalizando cerca de R$ 13 bilhões (US$ 2,6 bilhões). Assim, estima-se que as principais dívidas renegociadas sejam as relacionadas a contas de consumo, como água, luz, telefone, varejo e obrigações bancárias. As regras proporcionam a opção de pagamento à vista ou por financiamento bancário, sem a necessidade de entrada. Os juros na Faixa 1 correspondem a, no máximo, 1,99% ao mês, o equivalente a uma taxa anual de 26,68% ao ano, com a primeira parcela devida após, no máximo, 60 dias. A parcela mínima de pagamento será de R$ 50,00 (US$ 10) e o prazo de pagamento é de 2 a 60 meses, com parcelas decrescentes. Em termos reais, o teto para cobrança de juros é significativamente alto, o que encarece a nova dívida, já que o IPCA ficou em 4,68% em 2023. Em 2024, a previsão é de que a inflação seja ainda menor, de 3,25%.
A garantia oferecida pelo Tesouro Nacional é feita a partir do Fundo de Garantia de Operações (FGO), um programa lançado originalmente em 2009, no contexto da grande crise financeira internacional. Em termos de estrutura legal, portanto, o FGO do Desenrola Brasil não é novidade, mas renova ao ampliar o arcabouço existente de pessoas jurídicas para pessoas físicas. O governo disponibilizou de início R$ 87,5 bilhões (US$ 17,50 bilhões) ao Tesouro Nacional para compor o FGO da Faixa 1.
Já na Faixa 2, cada instituição financeira detém a autonomia para renegociar dívidas através de seus próprios canais ou em conjunto com seus parceiros, em uma abordagem similar àquela adotada durante a crise da Covid-19, entre 2020 e 2021. Para fazer parte desse processo, indivíduos com dívidas passíveis de renegociação na Faixa 2 deveriam procurar diretamente a instituição financeira com a qual possuem débitos pendentes.
Ao contrário da Faixa 1, na Faixa 2 não existe Fundo de Garantia de Operações (FGO) nem plataforma digital, e o pagamento da dívida deveria ser feito à vista, obtendo descontos. Porém, com a lentidão do crescimento da demanda, o governo resolveu rever as regras da Faixa 2 e permitiu o parcelamento da dívida inadimplida. São oferecidos estímulos regulatórios para incentivar o aumento da oferta de crédito por parte das instituições financeiras. Esse incentivo se materializa na geração de crédito presumido. O estímulo para o banco é ter o valor da renegociação como crédito presumido com o governo. “Se o desconto para a pessoa for de R$ 7.000 (US$ 1,400), o crédito [presumido] para o banco será de R$ 7.000 (US$ 1,400)”, disse o Ministro Fernando Haddad.34 Portanto, ao renegociarem dívidas, os bancos têm um “crédito presumido”, o que significa que precisam ter menos dinheiro imobilizado no caixa, dispondo de mais recursos para investimento.
Em suma, sintetizando as principais diferenças entre a Faixa 1 e 2 temos: na Faixa 1, existe um apoio fiscal, qual seja o Fundo de Garantia de Operações (FGO), que recebe aporte do Tesouro Nacional para cobrir integralmente o principal, corrigido pela Selic, em caso de inadimplência por ocasião da dívida inicial renegociada. A Faixa 2, por sua vez, estimula as renegociações via incentivo contábil, permitindo que os bancos alterem o montante de capital mínimo requerido nas exposições de risco: as dívidas renegociadas geram crédito presumido, reduzindo o montante total de imobilização do capital.
Com o programa em marcha, o governo federal resolveu estender o escopo de atuação do Desenrola. Passa a incluir como público-alvo tanto os Microempreendedores Individuais (MEI) como os estudantes financiados pelo FIES em situação de default. No caso do Desenrola FIES, contratos celebrados até 2017 e inadimplentes na data de 30 de junho de 2023 serão beneficiados, devendo favorecer cerca de 1,2 milhão de estudantes. O prazo nesse caso vai até maio de 2024. E os canais para renegociação são o Banco do Brasil, a Caixa Econômica e o Ministério da Educação (FNDE), indicando que cabe exclusivamente ao governo, credor do empréstimo estudantil, definir as regras de renegociação, sem participação do sistema financeiro privado. Foram criados três perfis distintos de refinanciamento da dívida, que poderá ser parcelada (de 15 a 150 meses), sendo contemplada com distintos percentuais de desconto do principal (variando entre 77% e 99%) ou dos encargos (100%), a depender da condição do devedor, se cadastrado no CadÚnico e/ou ex-beneficiário do Auxílio Emergencial, bem como do tempo de atraso acumulado.35
Destando nós
O Ministério da Fazenda reconheceu em fins de 2023 que as metas alcançadas pelo Programa Desenrola ficaram aquém do planejado, embora cerca de 11 milhões de pessoas (Faixas 1 e 2) tenham sido beneficiadas (contra estimativas de mais de 32 milhões de negativados potenciais). Somente 1 milhão de pessoas (5% do público-alvo) da Faixa 1 foram capazes de renegociar e parcelar dívidas num montante de R$ 5 bilhões (US$ 1 bilhão), dívidas essas majoritariamente contraídas junto a bancos e financiadoras. Já em se tratando da Faixa 2, 2,7 milhões de pessoas saldaram dívidas de R$ 24 bilhões (US$ 4,8 bilhões) mediante negociações diretas com as instituições financeiras. Foram renegociados até fins de 2023 R$ 29 bilhões (quase US$ 6 bilhões). O mesmo ocorreu com o Desenrola FIES, em que apenas 14% dos estudantes em default haviam renegociado suas dívidas até 31 de dezembro de 2023.36
Porém, o maior número de desnegativados via Desenrola—7 milhões—estavam no cadastro de inadimplentes com dívidas irrisórias, inferiores a R$ 100 (US$ 20), que poderiam, inclusive, ter sido objeto de perdão. E não o foram porque seria incompatível com a moral da dívida: dívida é para ser paga qualquer que seja seu montante e as condições – abusivas ou não – que a materializaram. A título de ilustração, vale indicar que a renegociação da dívida individual de R$ 100 (US$ 20) de 7 milhões de inadimplentes, se mantida integralmente sem desconto, corresponderia a, no máximo, R$ 700 milhões (US$140 milhões), o que representa 0,2% da receita total de crédito obtida pelos bancos em 2022, graças a empréstimos, segundo dados contabilizados pelo Banco Central.
Embora seja prematuro traçar uma leitura definitiva de um programa ainda em desenvolvimento e sujeito a ajustes, e que teve sua vigência estendida por duas vezes, algumas considerações parecem dignas de nota. A começar pelas razões que parecem justificar de fato o lançamento de uma política pública pelo governo federal para enxugar a inadimplência.
O crédito às famílias aparece como variável sensível e estratégica na retomada do crescimento sob a gestão Lula 3, em especial após aprovação pelo Congresso em 2023 do Novo Arcabouço Fiscal (NAF), que consiste em novas regras no que tange a progressão do gasto público. Resumidamente, a despesa pública primária (excluído o pagamento dos juros) só pode crescer até o limite de 70% da arrecadação tributária do ano anterior. Caso esta cresça acima de 3,57% a.a., um garrote suplementar é imposto ao gasto público, que ficará limitado a um aumento real de no máximo 2.5% a.a. Embora saúde, educação e despesas previdenciárias tenham ficado por ora fora do NAF, em respeito à Constituição, outras despesas sociais serão fortemente reprimidas, caso contrário o NAF será inviabilizado.37 Como aponta Bastos, se tal regra for descumprida, “a punição prevista é o crescimento das despesas no ano seguinte a uma taxa 50% inferior à taxa de crescimento das receitas”.38 Nesse quadro de austeridade fiscal em que se joga nos braços do capital privado a alavanca do crescimento, o consumo das famílias passa a depender ainda mais fortemente do seu financiamento via acesso ao crédito.
Além do NAF que impõe freios à expansão do gasto público, a Nova Indústria Brasil (NIB), política lançada em janeiro de 2024 para reverter o processo de reprimarização da economia, fomentando um ciclo de reindustrialização que eleve os salários com base em ganhos de produtividade, demanda tempo para surtir efeitos positivos. Enquanto isso, o endividamento em massa das famílias permanece uma alavanca indispensável capaz de compensar a retração do Estado e preencher a transição esperada para um ciclo virtuoso de crescimento com salários reais em alta. Não sendo o investimento público que vai puxar o consumo das famílias, elas serão tributárias mais uma vez do acesso ao mercado de crédito, que deve ser franqueado, sedimentando, espera-se, o otimismo dos investidores privados.
Logo, limpar um quadro de altíssima inadimplência é tarefa para ontem. Inclusive porque, se como afirma o Ministro da Fazenda, a retomada do crescimento se fará privilegiando parcerias público-privadas (PPPs), cujo escopo só faz engrossar, é preciso reduzir o risco de que a inadimplência das famílias coloque em xeque o modelo de financiamento ao desenvolvimento que o governo vem desenhando.
Enxugar a inadimplência sem enfrentar o endividamento reflete de alguma maneira uma estratégia de de-risking, na medida em que garante que, via empréstimos, as famílias sejam capazes de quitar o pagamento de serviços cobrados pelos investidores privados, caso a renda familiar não cubra todas as necessidades. Eles são, na sua maioria, investidores institucionais, atuando na área de infraestrutura social e urbana, notadamente saúde, energia e saneamento. Nesses setores, o preço das tarifas ao consumidor tende a aumentar em termos reais para assegurar um “bom” retorno ao investimento privado. Isso, sem falar no novo marco regulatório à disposição do sistema financeiro para lastrear sem maiores incertezas um novo ciclo de expansão do mercado de crédito.
Constata-se que as causas da inadimplência não estão sendo enfrentadas. O Desenrola não veio oferecer mecanismos de proteção contra o endividamento crônico das famílias, que hoje soma, vis a vis o setor financeiro, aproximadamente R$ 3,5 trilhões (US$ 670 bilhões ou 32% do PIB). Parece baixo em termos comparativos, mas é bom lembrar que se trata de uma dívida contraída fundamentalmente com crédito de consumo de curto prazo, para financiar a reprodução social.
Vale recordar que, em 2021, diante de um quadro de deterioração do grau de endividamento das famílias, com taxas de inadimplência e atrasos batendo recordes sucessivos, foi aprovada a Lei do Superendividamento, instituindo um arcabouço legal extrajudicial para repactuação de dívidas. A Lei, fruto de forte mobilização das entidades de defesa do consumidor por vários anos, contempla o mesmo perfil de dívida coberto pelo Desenrola, isto é, débitos relacionados a consumo ou vinculados a instituições financeiras. Porém, tem como público-alvo a figura do superendividado, inadimplente ou não: toda pessoa de boa fé que acumulou dívidas para atender a suas necessidades básicas e que não dispõe de renda suficiente para quitá-las, sem comprometer seu mínimo existencial. A ressalva do mínimo existencial é uma inovação de peso pois se constitui em salvaguarda para o devedor ao definir que o pagamento mensal de dívidas não pode comprometer mais de 35% da renda do superendividado. A Lei ainda estipula critérios que as instituições financeiras devem observar, tal como prevenir práticas abusivas na concessão de crédito e cobrança de débitos que podem ameaçar grupos sociais vulneráveis.
Pelo visto, a Lei do Superendividamento não trouxe os resultados esperados, pois não foi suficiente para reverter, em dois anos, uma tendência que se alastra—viver altamente endividado—e que sugere ter sido necessário formular uma política pública mais ambiciosa, com foco distinto, desta vez para tratar da inadimplência.
É bem verdade que o governo federal marcou um gol ao inserir na Lei do Desenrola um teto ao reembolso das dívidas roladas no rotativo do cartão de crédito. Pela lei, o juro acumulado não pode exceder o valor do principal, pondo fim a percentuais delirantes que alcançavam taxas de juros acima de 430% a.a., como ao final de 2023. Este é um passo importante, que se inscreve na mesma lógica de estímulo ao endividamento das famílias como drive do rentismo, afastando, contudo, a ameaça da inadimplência essencial à estabilidade do sistema financeiro.
A ideia de tornar o Programa Desenrola permanente foi anunciada, oferecendo um quadro legal e recorrente de repactuação de dívidas inadimplidas para famílias de baixa renda. Isso sugeriria que também o FIES Desenrola deve ter vindo para ficar, considerando que nova expansão do FIES para financiar acesso ao ensino universitário privado e pago já está na mesa do Ministro da Educação. Sem falar na reivindicação do Ministro do Empreendedorismo, da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, que quer um Desenrola para chamar de seu. Ou seja, o Desenrola, nos formatos que vier a tomar, traduz a adoção de um arcabouço institucional e legal de gestão da dívida inédito, via política pública, articulado entre governo e instituições financeiras, para redefinir o papel da dívida das famílias na atual fase de reestruturação da economia brasileira, sob dominância financeira.
Sem decisão definitiva, o que se vê é o governo renovando seguidamente o prazo de vigência do programa, de 31 de dezembro de 2023 para 31 de março de 2024, e agora até 20 de maio deste ano, exclusivamente para o público da Faixa 1. Da mesma maneira, com o intuito de tornar mais efetiva a adesão ao Programa por parte dos negativados—que não corresponderam ao esperado—o governo flexibilizou o acesso à plataforma digital para renegociação de dívidas inadimplidas através de parcerias com os Correios, instituições financeiras e empresas como a Serasa. A Serasa Expedia é um conglomerado privado de recuperação de dívidas, consulta e concessão de crédito que se consolidou no mercado nacional emprestando a negativados excluídos do circuito financeiro a taxas de juros proibitivas, várias vezes superiores às já elevadas taxas praticadas pelos bancos. O balanço em termos de cobertura melhorou, mas mal atingiu 50% do público-alvo. Segundo os números mais recentes do Ministério da Fazenda, pelo Desenrola Brasil, cerca de 14 milhões de pessoas renegociaram R$ 50 bilhões em dívidas nas Faixas 1 e 2 até meados de março de 2024.
Resta explicar por que um programa ambicioso e tão propagandeado pelo governo não logrou atrair as parcelas mais pobres e inadimplentes da população—para quem o programa foi desenhado prioritariamente—e que se mostram algo indiferentes a permanecerem negativadas.
Dessa forma, perde força a retórica adotada pelo governo de que o Desenrola estaria reconfigurando os marcos da política social ao aliviar o fardo da dívida para inadimplentes. Qual o montante previamente pago por eles como serviço da dívida antes do default e quais os critérios adotados pelo setor financeiro para descontos e leilões? De que forma o governo atuou nessa regulação para que, mais além daquelas inadimplentes, as famílias brasileiras altamente endividadas, fora do cartão de crédito, pudessem escapar da espiral do refinanciamento persistente de dívidas para sobreviver? Essa parece ser uma estratégia funcional que dá sustentação ao consumo de massa via endividamento para fins de acumulação rentista. A novidade reside no fato de o Estado assumir a gestão da dívida como forma de enfrentamento das contradições que a própria acumulação rentista engendra, tornando-a doravante dimensão da política social.
A financeirização no Brasil avança articulando rentabilidade no mercado de títulos da dívida (quando necessário) e no de crédito. Uma realidade que tem um novo sócio, o Programa Desenrola Brasil. De uma sociedade sem crédito, o Brasil se tornou em 20 anos uma nação onde rolar dívidas faz parte da luta pela sobrevivência, traço que, pelo andar da carruagem, veio mesmo para ficar.
Comentários desativados em BYD e o neo-fordismo chinês
No fim dos anos 1970, os mercados ocidentais foram inundados por carros japoneses de marcas até então pouco familiares, como Toyota, Mazda, Datsun e Honda. A combinação de produto de alta qualidade, eficiência no consumo de combustível e baixo preço final, na esteira do choque do petróleo daquela década, popularizou bastante as marcas nos Estados Unidos e na Europa, o que resultou em um declínio da participação de mercado dos fabricantes nacionais e em reclamações de empresários e sindicatos quanto a uma concorrência desleal.
O “choque japonês” logo gerou uma resposta política protecionista. Os Estados Unidos e o Reino Unido negociaram cotas de importação voluntárias com o Japão para limitar a pressão competitiva sobre suas indústrias automotivas, e outros países europeus adotaram medidas semelhantes. Mas esse foi apenas o primeiro passo de uma transformação mais profunda na indústria ocidental.
Em busca desesperada por caminhos para reconquistar a competitividade internacional e debelar a crescente agitação trabalhista, companhias do setor automotivo e para além dele começaram a emular seus rivais japoneses. O “Sistema Toyota”, desenvolvido pelo principal engenheiro industrial da empresa, Taiichi Ohno, tornou-se leitura obrigatória para qualquer gerente industrial de respeito, enquanto as escolas de administração do Atlântico Norte começaram a ensinar os métodos Kaizen e Kanban de produção “just-in-time”. Essa mudança cultural, às vezes descrita como parte de um processo mais amplo de “japonização”, serviu para catalisar a adoção daquilo que sociólogos passaram a denominar estratégias de gestão pós-fordistas, focadas na flexibilidade e no corte de custos, em paralelo à rejeição dos modelos de produção verticalmente integrada adotados pelas principais indústrias automobilísticas estadunidenses e europeias nos anos 1950.
Figura 1: Vendas quadrimestrais de veículos elétricos (2018-2013)
Como os governos ocidentais responderão à competição chinesa na indústria que há muito é tida como prova de fogo da capacidade econômica é algo que está no centro das preocupações para o século XXI. Tanto nos Estados Unidos como na União Europeia, a ascensão dos veículos elétricos chineses tem sido criticada como resultado de práticas desleais. Em setembro de 2023, ao anunciar uma sindicância sobre veículos elétricos e auxílio estatal na China, Ursula Von der Leyen afirmou que sua competitividade era resultado de “manipulação de mercado”. Na mesma linha, Joe Biden prometeu evitar que os veículos elétricos chineses “invadissem nosso mercado”, e Donald Trump descreveu seu impacto como um “banho de sangue” econômico.
O que subjaz essas afirmações incendiárias, porém, é uma transformação industrial não menos significativa que aquela promovida pelas montadoras japonesas de veículos nos anos 1980. A ascensão da indústria chinesa de veículos elétricos foi viabilizada não apenas por generosos subsídios governamentais como também por mudanças profundas de estratégia e organização, em especial por um retorno peculiar da integração vertical, tanto no nível de cada empresa quanto no país. Exemplo perfeito dessa abordagem é a BYD, que buscou ter sob seu controle praticamente todos os aspectos da cadeia de valor: desde a tecnologia de bateria, que no início era seu negócio principal, passando pelos microchips, até chegar à propriedade de minas de lítio e navios cargueiros para carros. Além disso, por explorar na China custos de trabalho significativamente menores que os de países como Japão, Alemanha e Estados Unidos, a empresa se valeu de um exército massivo de operários em um processo de produção mais intensivo em trabalho que o de seus competidores. Essa abordagem neofordista possibilitou que a BYD reduzisse custos ao mesmo tempo em que coordenava e acelerava a inovação em diferentes componentes-chave, o que fez durante uma fase crucial da evolução dessa indústria. E permitiu também que a empresa mitigasse incertezas operacionais e enfrentasse a escassez de vários fatores de produção e serviços, como a de chips, que se arrasta desde 2020.
Em paralelo, o governo chinês tem impulsionado a integração vertical em nível nacional, de modo a garantir que 80% da cadeia de valor dos veículos elétricos fique dentro do país. Isso faz parte do plano “Made in China 2025”, que tem por objetivo minimizar os efeitos de instabilidades e dar condições para reforçar e manter a supremacia tecnológica. Ainda que o modelo tenda a mudar conforme as relações de trabalho evoluam, essa virada rumo à “reintegração” e “reinternalização” traz consigo lições importantes sobre o futuro da organização econômica e da política industrial.
A revolução dos veículos elétricos
É famosa a expressão de Peter Drucker, teórico estadunidense da administração que define a indústria automotiva como “a indústria das indústrias”. Por mais de um século, a produção de carros representou o teste definitivo para o desenvolvimento industrial, dadas a complexidade dos fatores de produção, a amplitude de indústrias suplementares e as altas exigências de capital e conhecimento. Os automóveis dependem dos setores minerador, químico, siderúrgico e eletrônico, além de exércitos de técnicos e operários e de instalações e maquinário custosos. A produção tem enormes barreiras de entrada e envolve riscos empresariais de grande monta. Por isso, relativamente poucos países podem se declarar membros do exclusivo clube da produção automotiva. Esses desafios são ainda mais acentuados para os veículos elétricos.
Do mesmo modo que outras tecnologias verdes, como os painéis solares, os veículos elétricos não são exatamente novos. Na virada do século XX, alguns dos primeiros automóveis eram movidos a primitivas baterias de chumbo-ácido; em 1900, um terço dos carros em Nova York eram elétricos. À época, porém, os veículos movidos a gasolina superaram os elétricos em desempenho, por terem maior autonomia e alcançarem maiores velocidades, e em custos operacionais, graças ao petróleo barato e abundante. Essa equação mudou drasticamente nos anos recentes. Além de terem passado a esbanjar um desempenho mais esportivo (contrariamente à percepção comum), os veículos elétricos oferecerem menores custos operacionais, de manutenção e conserto, maior conveniência no uso cotidiano e menos barulho. A economia nos custos operacionais é particularmente impressionante, com uma projeção de que a recarga dos veículos elétricos “reduza os custos de energia de um veículo em 50-80% até 2030, na comparação com um veículo similar movido a gasolina”. É claro que, enquanto a tecnologia e a infraestrutura ainda estão em desenvolvimento, persistem como desvantagens significativas o alto custo inicial, a autonomia limitada, o longo tempo de carga e, em muitos países, a escassez de pontos de recarga.
As baterias elétricas são aquilo que economistas especializados em inovação descreveriam como a “tecnologia facilitadora” dos veículos elétricos, mas são também seu gargalo estrutural. A bateria de lítio-íon, inventada em 1991, representou um substituto menor e mais capaz de sua predecessora de níquel-cádmio, abastecendo produtos a bateria de todo tipo, inimagináveis até então: de smartphones a tablets, robôs-aspiradores e a dita “micromobilidade” de bicicletas e scooters elétricas. No entanto, é sua aplicação aos veículos automotores que promete as consequências mais revolucionárias. Desde a invenção da bateria de lítio-íon, sua densidade de energia triplicou, enquanto o custo por quilowatt-hora despencou mais de 90%. Com isso, a mesma tecnologia que nos anos 1990 equipou os telefones da Nokia e da Motorola agora pode mover carros e até ônibus. Ademais, as melhorias introduzidas pela variante de fosfato de ferro-lítio, já empregada nas baterias de lâmina da BYD, e a passagem das baterias de lítio-íon de eletrólitos líquidos para sólidos podem aumentar significativamente a capacidade e garantir uma recarga mais veloz.
A centralidade da tecnologia de baterias para o setor de veículos elétricos explica, ainda, a importância dada à construção das chamadas “gigafábricas”, enormes plantas capazes de produzir baterias que, somadas, acumulam bilhões de watts-horas, bem como o fato de o acesso ao lítio ter se tornado tão estratégico. Esse metal alcalino não é escasso na crosta terrestre. No entanto, poucos lugares ao redor do mundo desfrutam de um grau de concentração suficiente para tornar a extração do lítio economicamente viável, sendo Chile, Argentina e Austrália as nações mais privilegiadas. Para garantir a própria segurança no fornecimento, algumas companhias de veículos elétricos estão entrando diretamente no ramo da mineração de lítio, seja como acionistas, seja como únicas proprietárias.
O novo Henry Ford
A ascensão da indústria automotiva chinesa gerou algo em torno de 140 marcas diferentes de veículos elétricos, mas apenas algumas delas estão na mesma ordem de grandeza da BYD, que em 2023 ultrapassou a Tesla como maior fabricante de veículos elétricos no mundo. A empresa foi fundada em Shenzhen em 1995 por Wang Chuanfu, órfão oriundo da pobre área rural de Anhui que estudou química e ciência de materiais. Em diversos aspectos, as operações da companhia parecem muito um revival elétrico da lógica fordista da produção em massa, com um processo produtivo francamente intensivo em trabalho, um vasto exército de operários e métodos tayloristas de organização científica da produção.
Acima de tudo, a BYD ecoa a ênfase fordista na integração vertical. Assim como a Ford adquiriu minas de ferro e carvão para produzir aço, seringais no Brasil para produzir pneus, minas de areia de sílica branca para fabricar para-brisas, janelas e espelhos em massa, e até florestas para construir as partes de madeira dos carros, a BYD seguiu na direção de controlar a produção e montagem de células de bateria, a manufatura do trem de força elétrico, os semicondutores e módulos eletrônicos, e agora até mesmo a mineração do lítio. Ela também fabrica os eixos, a transmissão, a cabine, os freios e as suspensões dos carros. E assim como os gigantescos complexos da Ford de Highland Park e River Rouge, a BYD construiu enormes plantas industriais para produzir baterias e outros componentes essenciais, bem como para montar os carros. Quatro delas estão localizadas na cidade natal da BYD, Shenzen, e vinte outras espalhadas pela China, enquanto novas fábricas vêm sendo implementadas no exterior, da Hungria ao Brasil.
Na primeira metade do século XX, a integração vertical permitiu à Ford e a outras empresas reduzir custos de intermediação, controlar a produção e coordenar a inovação ao longo de diferentes etapas da fabricação, desde a aquisição de borracha e aço até a padronização de peças e fornecedores. A alta produtividade e os altos salários em um mercado oligopolista garantiram lucros estáveis em um ambiente macroeconômico expansionista, qual seja, a era dourada do fordismo, entre o final da Segunda Guerra Mundial e o fim dos anos 1960. A crise do petróleo na década de 1970 revelou a rigidez desse modelo industrial, conforme a inflação dos salários e a demanda por veículos mais eficientes tornaram as montadoras estadunidenses pouco competitivas. Os industriais ocidentais buscaram, então, inspiração na produção flexível just-in-time inventada por empresas japonesas como a Toyota, que se assentava em uma rede de fornecedores externos e de trabalho contingente para absorver os choques de mercado, desmembrando a produção de componentes. Os fabricantes japoneses de carros repartiram as linhas de montagem em ilhas de produção conduzidas por equipes de qualidade, cooptando sindicatos para objetivos corporativos. Essa lógica de organização do negócio era propícia a um disciplinamento mais eficiente da força de trabalho e à desorganização dos sindicatos, cujo poder de barganha entrou em colapso diante da perda da capacidade de ameaçar paralisações do trabalho em todas as etapas de produção.
A terceirização andou lado a lado com a internacionalização de boa parte da cadeia de valor para países com custos salariais mais baixos. O economista Raphaël Chiappini defende que “desde o fim dos anos 1980, fabricantes de carros na Europa, no Japão e nos Estados Unidos, como General Motors, Ford, Toyota, Honda, Volkswagen, Audi e Daimler Chrysler, transferiram uma parcela cada vez maior da produção automotiva para países emergentes, a fim de aproveitar os custos de produção menores”. Isso levou a uma “divisão internacional do trabalho” ou, em termos mais negativos, à “fragmentação internacional”, a saber, uma situação em que diferentes países se especializam naquelas etapas da cadeia de suprimento em que acumulam uma vantagem competitiva. Ainda que seu objetivo tenha sido o de melhorar a qualidade e reduzir os custos, essa mudança também tornou os fabricantes de carros vulneráveis a abalos na cadeia de suprimentos, o que vem se tornando um risco crescente nestes tempos de instabilidade.
O retorno da integração vertical
A fragilidade das cadeias globais de suprimento tornou-se mais e mais visível no rescaldo da pandemia e no contexto de crescente competição por segurança. Como resultado, a linguagem do “onshoring”1 e do “doméstico” se infiltrou nos debates sobre políticas públicas. Nesse sentido, a BYD representa um exemplo fascinante da “reinternalização” contemporânea da produção nacional e sua relação com o movimento mais amplo das novas políticas industriais. A empresa segue a estrutura típica do conglomerado integrado verticalmente, com uma companhia central (BYD Company) controlando várias subsidiárias: BYD Auto, BYD Electronics, BYD Semiconductors, BYD Transit Solutions e BYD FinDreams (o braço responsável por produzir baterias e componentes variados para carros). Ainda que a integração vertical seja comum a outros competidores do mercado de veículos elétricos, como a Tesla, a BYD alcançou um grau de integração muito maior que o da empresa conduzida por Musk, que compra por volta de 90% de suas baterias de companhias como Panasonic e CATL.
A produção de baterias era a atividade central original da BYD, o que lhe garantiu alta competência na produção do componente mais importante e com maior potencial de inovação dos veículos elétricos. Por meio da subsidiária BYD Semiconductors, a companhia controla, ainda, a produção de microchips, o que se mostrou uma vantagem importante durante a crise de escassez de microchips iniciada em 2020 como resultado da guerra comercial entre China e Estados Unidos. A companhia de Chuanfu também produz peças próprias de metal e plástico, comprou ações da líder chinesa na mineração de lítio, a Shengxin Lithium Group, e está em vias de adquirir minas no Brasil. Com isso, a BYD alcançou um controle sem paralelos sobre seu ciclo de produção: de acordo com a empresa, apenas os pneus e as janelas são inteiramente terceirizados. Uma reportagem do New York Times destacou que, na produção do modelo BYD Seal, a empresa fabrica internamente impressionantes três quartos de todos os componentes, comparados a apenas um terço de um carro elétrico similar da Volkswagen, o que garante à chinesa uma vantagem de 35% nos custos.
A BYD também está cada vez mais ativa nas etapas finais da cadeia de valor, em especial nas vendas e nos serviços. Recentemente, ingressou no setor de embarcações com o BYD Explorer 1, um navio Ro-Ro [Roll on–Roll off] capaz de transportar 5 mil carros e provavelmente o primeiro de uma frota em expansão, o que garantirá à BYD maior controle sobre a entrega de seus produtos. Como no modelo fordista, a estratégia de integração vertical da BYD é de trabalho intensivo. O número de empregados da companhia dobrou em apenas dois anos, alcançando 570 mil trabalhadores em 2023 (pouco menos que os 670 mil da Volkswagen e significativamente mais que os 370 mil da Toyota). Ao contrário do modelo japonês de produção altamente automatizada envolvendo um maquinário caro, a BYD há tempos optou por trabalhadores manuais de custo comparativamente baixo, que executam uma miríade de pequenas tarefas. Esse modelo de baixíssima “intensidade de capital” até aqui se mostrou uma receita excelente para expandir receitas e lucros; isso, porém, pode mudar conforme os custos do trabalho aumentarem, em razão da competição entre as indústrias automotivas.
O retorno da integração vertical
A fragilidade das cadeias globais de suprimento tornou-se mais e mais visível no rescaldo da pandemia e no contexto de crescente competição por segurança. Como resultado, a linguagem do “onshoring”2 e do “doméstico” se infiltrou nos debates sobre políticas públicas. Nesse sentido, a BYD representa um exemplo fascinante da “reinternalização” contemporânea da produção nacional e sua relação com o movimento mais amplo das novas políticas industriais. A empresa segue a estrutura típica do conglomerado integrado verticalmente, com uma companhia central (BYD Company) controlando várias subsidiárias: BYD Auto, BYD Electronics, BYD Semiconductors, BYD Transit Solutions e BYD FinDreams (o braço responsável por produzir baterias e componentes variados para carros). Ainda que a integração vertical seja comum a outros competidores do mercado de veículos elétricos, como a Tesla, a BYD alcançou um grau de integração muito maior que o da empresa conduzida por Musk, que compra por volta de 90% de suas baterias de companhias como Panasonic e CATL.
A produção de baterias era a atividade central original da BYD, o que lhe garantiu alta competência na produção do componente mais importante e com maior potencial de inovação dos veículos elétricos. Por meio da subsidiária BYD Semiconductors, a companhia controla, ainda, a produção de microchips, o que se mostrou uma vantagem importante durante a crise de escassez de microchips iniciada em 2020 como resultado da guerra comercial entre China e Estados Unidos. A companhia de Chuanfu também produz peças próprias de metal e plástico, comprou ações da líder chinesa na mineração de lítio, a Shengxin Lithium Group, e está em vias de adquirir minas no Brasil. Com isso, a BYD alcançou um controle sem paralelos sobre seu ciclo de produção: de acordo com a empresa, apenas os pneus e as janelas são inteiramente terceirizados. Uma reportagem do New York Times destacou que, na produção do modelo BYD Seal, a empresa fabrica internamente impressionantes três quartos de todos os componentes, comparados a apenas um terço de um carro elétrico similar da Volkswagen, o que garante à chinesa uma vantagem de 35% nos custos.
A BYD também está cada vez mais ativa nas etapas finais da cadeia de valor, em especial nas vendas e nos serviços. Recentemente, ingressou no setor de embarcações com o BYD Explorer 1, um navio Ro-Ro [Roll on–Roll off] capaz de transportar 5 mil carros e provavelmente o primeiro de uma frota em expansão, o que garantirá à BYD maior controle sobre a entrega de seus produtos. Como no modelo fordista, a estratégia de integração vertical da BYD é de trabalho intensivo. O número de empregados da companhia dobrou em apenas dois anos, alcançando 570 mil trabalhadores em 2023 (pouco menos que os 670 mil da Volkswagen e significativamente mais que os 370 mil da Toyota). Ao contrário do modelo japonês de produção altamente automatizada envolvendo um maquinário caro, a BYD há tempos optou por trabalhadores manuais de custo comparativamente baixo, que executam uma miríade de pequenas tarefas. Esse modelo de baixíssima “intensidade de capital” até aqui se mostrou uma receita excelente para expandir receitas e lucros; isso, porém, pode mudar conforme os custos do trabalho aumentarem, em razão da competição entre as indústrias automotivas.
Figura 2: Total de ativos e número de funcionários das principais fabricantes de automóveis (2023)
Legenda da figura 2 em português
Eixo Y: Total de ativos (em US$ bi)
Eixo X: Número de funcionários
Aprendendo com a política industrial chinesa
O sucesso da BYD, no entanto, é produto de uma política industrial sustentável. Apesar de seu empenho constante em atingir “desenvolvimento intensivo” na indústria automotiva ter repetidamente resultado em frustrações, a China enfim pôde explorar aquilo que Alexander Gerschenkron chamou de “vantagem do atraso”. A partir da lição deixada por outros países do Leste Asiático, como Japão e Coreia do Sul, a China buscou políticas desenvolvimentistas de Estado para passar da produção básica à produção de ponta, com particular importância para as “tecnologias verdes”.
Veículos de novas energias foram mencionados pela primeira vez como política no décimo Plano Quinquenal (2001-2005). No entanto, somente após a crise financeira de 2007-2008 eles “foram considerados uma indústria emergente estratégica, ao lado da energia solar e eólica”. Um importante ponto de virada na política industrial para veículos elétricos foi o lançamento, em 2015, do plano “Made in China 2025”, anunciado por Xi Jinping e pelo primeiro-ministro Li Keqiang. O plano declarava que “a produção industrial é o cerne da economia nacional, a raiz em que o país está fincado, a ferramenta para o fortalecimento nacional e a fundação de um país forte”. Os veículos elétricos figuravam entre os dez setores-chave considerados essenciais para o sucesso futuro da China, lado a lado com circuitos integrados, equipamentos aeroespaciais e novos materiais. Notadamente, o plano recomendava que 80% de todos os fatores de produção para a indústria de veículos elétricos tivessem origem na China, a fim de garantir um alto grau de “independência” na produção de veículos elétricos. Essa pressão por componentes nacionais teve enorme papel em dar forma às estratégias de produção conduzidas pelas empresas nacionais.
A China agora se encontra em uma posição de supremacia aparentemente inabalável nesta indústria: 60% de todos os veículos elétricos produzidos em 2023 foram fabricados no país. Ademais, as empresas chinesas têm uma vantagem de custos formidável em relação aos competidores tradicionais, estimada em cerca de 25% para a BYD, segundo o banco suíço UBS. Como todos os países, a China precisa importar algumas matérias-primas, especialmente carbonato de lítio do Chile e da Argentina e cobalto da República Democrática do Congo. No entanto, ela também controla elementos-chave do suprimento de matérias-primas essenciais: mais da metade da produção mundial de lítio, mais de 60% da produção de cobalto e 70% de materiais de terras raras. Além disso, a indústria chinesa é responsável por mais de 70% dos componentes de células de baterias e da produção de baterias celulares. Dois terços da produção mundial de baterias estão na China, com a CATL e a BYD respondendo por 50% do total global. O impulso para desenvolver uma cadeia de valor independente e em grande medida autossuficiente se mostrou perspicaz em antecipar as turbulências enfrentadas pelas cadeias de suprimentos globais em consequência de eventos climáticos extremos, guerras e crescente rivalidade entre potências. A grande fatia da cadeia de valor dos veículos elétricos dá à China uma vantagem comparativa significativa em relação a competidores, ao mesmo tempo que garante as condições para defender a supremacia na inovação e na propriedade intelectual que o país deve atingir nos próximos anos.
O governo chinês promoveu esses desenvolvimentos por meio de um generoso financiamento à ciência e à tecnologia, tal como feito no famoso Programa 863. Sob a liderança do engenheiro automotivo Wan Gang (2007-2018), o Ministério da Ciência e da Tecnologia tem dado grande apoio ao setor de veículos elétricos. Por meio de joint ventures como a SAIC-Volkswagen e da aquisição de fornecedores ocidentais, o governo chinês buscou transferir tecnologia das companhias estrangeiras. Ele também ofereceu subvenções ou empréstimos a empresas de carros tendo em vista, entre outras coisas, a criação de fábricas e a prevenção de falências. O principal instrumento de política, no entanto, veio na forma de subsídios.
Estima-se que o governo chinês gastou US$ 60 bilhões em subsídios a veículos elétricos entre 2009 e 2017. Subsídios ao consumidor foram muito mais generosos que o crédito tributário de US$ 7,5 mil dado pela Lei de Redução da Inflação de Biden [Inflation Reduction Act- IRA], sendo que os créditos nacionais são compostos por créditos tributários dos governos locais. As 23 autoridades locais (19 províncias e 4 regiões metropolitanas) são responsáveis por cerca de 70% do gasto público. Esses governos locais conduzem sua política industrial por meio da oferta de subvenções, crédito barato, garantias de liquidez e cessão de terras, e da priorização de aquisições de insumos de empresas locais (por exemplo, equipando a frota local de táxis com carros da companhia automotiva local).
Há ainda o fato de que as empresas estatais chinesas incluem muitas firmas automotivas. As estatais de propriedade central são coordenadas por meio da Comissão de Supervisão e Administração de Ativos do Conselho de Estado (SASAC, na sigla em inglês), e delas se espera a implementação dos objetivos do governo. Algumas estatais automotivas, tais como a SAIC, a BAIC e a Chery, são de propriedade de autoridades provinciais, conhecidas por apoiar indústrias deficitárias a fim de proteger os empregos e a capacidade de produção.
O apoio político das autoridades provinciais a “campeões locais”, combinado a intervenções de estímulo por parte do governo central, é sabidamente responsável por levar à capacidade ociosa, como ocorreu com o setor siderúrgico em meados dos anos 2010, quando o governo central acabou sendo forçado a impor fechamentos e fusões. Ainda que a capacidade ociosa possa ser vista como um desperdício em termos econômicos, ela promove uma luta darwiniana por sobrevivência empresarial e inovação tecnológica, que alimenta campeões de exportações competitivos no plano internacional. É exatamente isso que está ocorrendo agora no setor de veículos elétricos, que é afetado por grave fragmentação. A incipiente guerra de preços deverá se tornar mais acirrada conforme os subsídios forem progressivamente reduzidos e a demanda doméstica na China seguir fraca. No entanto, ao oferecer aos eventuais vencedores maiores economias de escala, esse momento de ajuste de contas provavelmente tornará os veículos elétricos chineses ainda mais competitivos internacionalmente.
O fato de a BYD e o governo chinês encamparem uma política industrial guiada pelo Estado e uma produção verticalmente integrada reflete, de maneira mais ampla, uma tendência notável da economia global, ainda que nascente. Se essa tendência já ecoa na virada industrial movida a subsídios que Biden promove, a União Europeia ainda se prende a uma visão pós-fordista e a uma esperança nostálgica de reviver a globalização e suas longas cadeias de suprimentos. A investigação corrente que a União Europeia faz sobre os veículos elétricos chineses provavelmente deve resultar na recomendação de uma elevação nas tarifas de importação, que hoje correspondem a um terço das aplicadas pelos Estados Unidos: modestos 9%. Em março de 2024, a União Europeia começou a registrar os veículos elétricos chineses nos postos alfandegários, o que significa que essas tarifas podem ser aplicadas retroativamente. No entanto, as tarifas de importação oferecerão pouco alívio se não houver uma reflexão mais profunda sobre a transformação na estrutura da produção global. Os países ocidentais deveriam perceber que estão, em muitos setores, como no de veículos elétricos, pela primeira vez na história moderna buscando alcançar um competidor mais avançado em termos tecnológicos, o qual é visto também como um importante rival geopolítico. Em vez de focar em aumentar despesas militares e suscitar temores de uma guerra global, os países do Ocidente deveriam levar a sério o desafio tecnológico e industrial apresentado pela China.
A crise financeira de 2008 foi uma demonstração sem precedentes dos efeitos da financeirização no capitalismo contemporâneo. Em particular, o rompimento da bolha imobiliária estadunidense evidenciou a penetração do endividamento nas famílias de baixa renda, antes excluídas dos mecanismos formais de crédito. Se o caso dos Estados Unidos explicitou a centralidade dos mecanismos financeiros para o acesso à habitação, a tendência da intermediação financeira ao acesso a bens e serviços inerentes à reprodução social e a consequente ampliação do endividamento familiar são fenômenos globais.
A financeirização é sintoma de uma transformação estrutural na sociedade e no próprio sistema capitalista. Essa transformação enseja a necessidade de adaptação dos índices econômicos e sociais, para que sejam capazes de retratar apropriadamente as condições de vida da população, sob pena de inviabilizar o desenho de políticas públicas adequadas a essas condições.
O caso brasileiro é exemplificativo dos efeitos sociais da financeirização. A composição do gasto social do Estado Brasileiro revela a preponderância das transferências monetárias em relação ao gasto com a oferta de serviços em espécie. Essa monetarização da política social tem como efeito o deslocamento, às famílias, da responsabilidade pelo gasto em bens e serviços essenciais à garantia de bem-estar. Nesse cenário, a “democratização financeira”, ou seja, a expansão do acesso ao crédito a camadas da população socialmente vulneráveis, tanto afeta o acesso a bens e serviços inerentes ao bem-estar, quanto representa um importante vetor de aumento da pobreza.
A análise dos índices de pobreza no Brasil, quando inclui o endividamento familiar como critério, revela os efeitos da financeirização sobre o bem-estar da população. A contração de crédito tem como contrapartida, no orçamento das famílias, a inclusão de um gasto recorrente com o serviço das dívidas. Esse gasto efetivamente diminui os recursos disponíveis para a compra de bens e serviços, o que traz duas consequências. A primeira é o ingresso de pessoas na pobreza em razão das dívidas – isto é, famílias cuja renda total ou disponível não as qualifica como pobres, mas cuja renda disponível líquida do serviço das dívidas cai abaixo do patamar mínimo de pobreza. Esses são os pobres por dívida, ou debt poor, na nomenclatura de Pressman e Scott.1 A segunda consequência é o aprofundamento da pobreza das famílias já incluídas nesses índices, que sofrem uma redução da sua renda. Isso indica que a pobreza real seria maior do que as medidas convencionais sugerem.
A análise temporal do caso brasileiro revela que, entre 2009 e 2018, período de considerável expansão do endividamento, os índices de pobreza congregam dois movimentos distintos. Por um lado, a pobreza caiu para virtualmente todas as linhas e definições de renda consideradas. Por outro, os efeitos do endividamento sobre a pobreza aumentaram consideravelmente. O endividamento, nesse cenário, pode ser encarado como um importante vetor de aumento da pobreza.
O crédito como elemento estrutural da economia brasileira contemporânea
A importância das dívidas no capitalismo contemporâneo se dá não apenas por seu crescimento quantitativo, mas também por um conjunto de transformações qualitativas características da financeirização. A primeira dessas transformações é sua extensão à população de renda média e baixa, a chamada “democratização financeira.” No Brasil, esse processo foi impulsionado por condições macroeconômicas favoráveis no início dos anos 2000 e por inovações financeiras, das quais a criação do crédito consignado foi a de maior destaque.
O crédito consignado condiciona o pagamento do serviço da dívida ao desconto direto na folha de pagamentos, reduzindo os riscos de atraso e inadimplência e permitindo taxas de juros mais baixas. No entanto, sua verdadeira face se revela a partir do fato de que, de acordo com os dados disponíveis no Banco Central, a principal clientela desta modalidade está nos servidores públicos e aposentados e pensionistas no sistema público, cuja renda mensal é de responsabilidade do Estado. Uma vez que os benefícios previdenciários do sistema público são concentrados no piso de um salário-mínimo, essa garantia estatal de um fluxo financeiro regular elimina uma importante barreira para a expansão de crédito para a população de baixa renda: a falta de colateral. O Estado passa a ser o avalista do endividamento, especialmente para aposentados e pensionistas.
Essa conexão entre Estado, por meio de benefícios previdenciários, e o endividamento, é parte de um processo que Lena Lavinas denomina “colateralização da política social.”2 Esse processo também caracteriza outra transformação qualitativa: a expansão do endividamento para novas esferas socioeconômicas (ou em que estava apenas marginalmente). Em linhas gerais, isso se verifica em espaços antes delegados à política social e a formas de provisão desmercantilizadas, de modo que o endividamento torna-se um fator determinante para o acesso a esses bens e serviços: o desenho da política social passa a promover a dívida, na medida em que o pagamento se torna necessário para a reprodução social.
Por fim, há a integração do endividamento das famílias nos mercados financeiros globais. Isso ocorre por meio de inovações financeiras como as securities e títulos sintéticos, que transformam fluxos regulares de pagamento em ativos financeiros transacionados nos mercados secundários. Essas dívidas, portanto, tornam-se alvo de especulação financeira e fonte de lucro de alta magnitude.3
A expansão do endividamento das famílias no Brasil (Gráfico 1) teve início em um momento de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), do emprego e da renda (e, consequentemente, de queda na pobreza), e o crédito foi instrumental na manutenção desse crescimento. O período entre 2003-2014 apresentou crescimento superior ao das décadas anteriores. Do lado da demanda, o consumo foi o principal fator na expansão do PIB. O aumento do consumo se deveu à alta na renda, mas também ao crédito.4 Borça Jr e Guimarães indicam que o crédito livre Pessoa Física foi responsável por 45 por cento do crescimento do consumo e 1/3 do crescimento da economia entre 2004 e 2013.5
A partir de 2014, no entanto, a situação se inverte, com o Brasil entrando em recessão em 2015–2016, tendência seguida de uma lenta e virtualmente estagnada recuperação, o que afetou negativamente a renda, o emprego e a pobreza. Nesse quadro, o endividamento apresentou queda momentânea, retomando crescimento a partir de 2017–2018. Assim, mesmo em um contexto econômico extremamente desfavorável, o crédito mantém seu vigor, demonstrando ter se tornado um elemento estrutural na economia brasileira. Desta vez, no entanto, sem o mesmo impacto no PIB.
Gráfico 1 – Endividamento (% da renda acumulada em 12 meses) e Comprometimento de renda com serviço das dívidas (% da média móvel trimestral da renda)6
Fonte: Banco Central do Brasil
A relação entre endividamento e pobreza no Brasil
Uma vez que a expansão do endividamento é uma transformação estrutural da economia e da sociedade, torna-se essencial a discussão sobre a adaptação de índices econômicos e sociais, para que sejam capazes de retratar adequadamente as condições de vida da população. No caso da pobreza monetária, tanto consumo quanto renda estão profundamente afetadas pelo endividamento. Por um lado, o consumo realizado pode variar significativamente, a depender das condições de crédito. É verdade que isso sempre esteve em questão, por conta de renda incerta, possibilidade de desemprego etc., mas as variações nas condições de crédito podem ser mais voláteis, influenciando significativamente as análises. Por outro, a utilização da renda não leva em consideração que uma parcela cada vez mais significativa não está disponível para gastos que aumentem o bem-estar corrente, pois é destinada ao pagamento do serviço de dívidas passadas.
Pressman e Scott defendem uma definição alternativa de renda para a formulação dos índices de pobreza: a renda disponível não comprometida. Essa medida é definida pela renda disponível (isto é, líquida de impostos), deduzida dos gastos de serviço das dívidas.7 A justificativa é que os gastos com endividamento não são, necessariamente, convertidos em bem-estar corrente, mas costumam refletir bens e serviços usufruídos no passado, e podem reduzir a capacidade de usufruto de novos bens e serviços no presente.
Uma vez que o estabelecimento da linha de pobreza guarda relação com um patamar mínimo socialmente aceitável de nível de vida, essa nova definição da renda deve implicar no estabelecimento de um novo valor monetário como critério para pobreza.
Portanto, a análise da pobreza por meio da renda disponível não comprometida é mais abrangente, pois adiciona o endividamento como uma causa de entrada ou agravamento da situação de pobreza. Adicionalmente, permite discernir um grupo social específico: aqueles que estão na pobreza unicamente por conta das dívidas, os pobres por dívida.
Analisamos, então, a pobreza do Brasil de acordo com o critério da renda disponível não comprometida. A POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares), realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) permite a construção da renda disponível e da renda disponível não comprometida, possibilitando o estudo da evolução da pobreza monetária e do efeito do endividamento sobre a pobreza. Por simplificação, foram considerados apenas os rendimentos monetários reportados pelas famílias.
A fim de evitar arbitrariedade na escolha da linha de pobreza, a análise realizada considerou 1.001 linhas, variando de R$0,00 a R$1.000,00 em incrementos de R$1,00. A comparação intertemporal foi realizada a partir de dois pontos distintos, que representam as duas últimas realizações da POF: 2008–2009 e 2017–2018.8 Como os resultados se mantêm para todas as linhas de pobreza (exceto para valores extremamente baixos – e por esse motivo pouco significativos), optou-se, para fins de exposição, apresentar os resultados para duas linhas que contam com respaldo social. A primeira é a linha de elegibilidade do Bolsa Família em valores de 2021, aproximadamente R$ 200,00; a segunda é a linha internacional do Banco Mundial, US$ 6,85 por dia em PPP 2017, que representa cerca de R$ 596,00 em valores de 2021. Ambos os valores estão em termos reais.
Inicialmente, é necessário ressaltar que a mudança na definição da renda não altera a tendência de queda nos indicadores de pobreza no período considerado. Assim, o endividamento, apesar de crescente, não foi capaz de reverter a tendência de mitigação da pobreza no Brasil. O Gráfico 2 mostra a evolução da taxa de pobreza nas duas linhas consideradas e nas duas definições de renda (disponível e disponível não comprometida).
Gráfico 2 – Taxa de pobreza monetária a partir da renda disponível e da renda disponível não comprometida
Fonte: Elaboração própria baseado em POF – IBGE
No entanto, há um nítido aumento do impacto do endividamento na pobreza. Isso pode ser observado por dois resultados distintos, porém interligados: o impacto no número de pessoas pobres e nos recursos monetários adicionais que seriam necessários para erradicar a pobreza. Primeiro, há um aumento no número de pobres por dívida entre 2008–2009 e 2017–2018 para ambos os critérios de pobreza (Gráfico 3). Em outras palavras, aumenta o número de pessoas que estão em situação de pobreza por conta dos vazamentos de renda diretamente causados pelo serviço das dívidas. O crescimento populacional explica apenas uma pequena parcela desse aumento: a ampliação do estresse financeiro ocasionado pelo endividamento figura como a principal explicação. Em termos absolutos, são 475 mil pobres por dívida a mais na linha de pobreza de R$200,00 e 1,5 milhão pobres por dívida a mais na linha de pobreza de R$596,00.
Gráfico 3 – Diferença entre as taxas de pobreza a partir da renda disponível e renda disponível não comprometida
Fonte: Elaboração própria baseado em POF – IBGE
Segundo, podemos analisar qual o impacto do endividamento em termos dos recursos monetários adicionais que seriam necessários para erradicar a pobreza. Isto é, para além das transferências monetárias em vigor (notadamente, Bolsa Família, benefícios previdenciários e assistenciais, seguro-desemprego etc.). Essa medida inclui tanto os pobres por dívida quanto aqueles que já estariam em situação de pobreza mesmo sem o endividamento, mas que têm sua renda diminuída pelo pagamento dos serviços da dívida. Como pode ser visto no Gráfico 4, novamente, o impacto aumenta com a passagem do tempo. Olhando inicialmente para a linha de pobreza de R$200,00, em 2008-2009, a inclusão do endividamento representa uma necessidade adicional de R$10,5 bilhões; em 2017-2018, de R$18,2 bilhões (73 por cento a mais). Já na linha de pobreza de R$596,00 os valores eram: em 2008-2009, R$67,7 bilhões e, em 2017-2018, R$115,6 bilhões (71 por cento a mais).
Gráfico 4 – Diferença entre o montante de recursos monetários adicionais para erradicar a pobreza quando o endividamento é considerado (em R$ milhões de 2021)
Fonte: Elaboração própria baseado em POF – IBGE. Valores deflacionados pelo IPCA.
Em resumo, a evolução da pobreza no Brasil entre 2008–2009 e 2017–2018 contempla dois movimentos distintos: queda na pobreza, mas aumento dos efeitos do endividamento na pobreza. Isso significa que, apesar da redução ser mantida, há mais pessoas em situação de pobreza do que as medidas convencionais sugerem, e as pessoas consideradas pobres estão mais pobres do que as medidas convencionais sugerem.
A inobservância do endividamento como critério de avaliação faz com que essas pessoas estejam invisíveis aos olhos das políticas de combate e mitigação da pobreza, pois os critérios de seleção e definição dos benefícios ignoram que os recursos que as famílias possuem para o consumo de bens e serviços são inferiores à renda bruta ou à renda disponível.
Ao considerar a dedução da renda causada pelo serviço das dívidas, o que está sendo proposto, na verdade, é uma conexão direta entre endividamento e pobreza, com um sentido específico de encadeamento lógico: o aumento do endividamento leva ao aumento da pobreza.
A forma específica dessa conexão deve ser, ainda, tema de discussão de pesquisadores, políticos e da sociedade como um todo. No entanto, a existência de um contingente significativo de pessoas cuja entrada na pobreza é ocasionada por suas dívidas deve ser suficiente para entender que crédito para suprir necessidades não é uma bala de prata. Ainda mais quando esse crédito vem a reboque da redução da oferta desmercantilizada de bens e serviços necessários à reprodução social, como saúde, educação e moradia. A negligência dos efeitos diretos do endividamento sobre a renda gera uma profecia que se autorrealiza: na inadequação da cobertura e do valor dos benefícios monetários e da oferta pública e universal de bens e serviços, os empréstimos tornam-se, de fato, a última tábua de salvação.
Desde a descoberta, em 2015, de reservas de petróleo que estão entre as maiores do mundo, a Guiana ingressou em um período de reconfiguração econômica e geoestratégica. De acordo com a Administração de Informação de Energia estadunidense (Energy Information Administration -EIA), a Guiana detém o sexto maior conjunto de reservas de petróleo das Américas e a 19ª do mundo. Com um produto de alta qualidade, custos de produção abaixo da média e baixo consumo local, as reservas têm enorme potencial para exportação—em termos per capita, a Guiana rapidamente se tornou o maior produtor mundial de petróleo.
Apenas o futuro dirá se a Guiana conseguirá capitalizar em cima desta oportunidade histórica. O acordo em vigor assinado entre o governo guianense e a ExxonMobil favorece a multinacional estadunidense, ao destinar apenas 54% das receitas à Guiana e pôr nas costas do governo os custos de desenvolvimento e os impostos. Em julho de 2017, o Departamento de Assuntos Fiscais do Fundo Monetário Internacional registrou, em um relatório de circulação restrita, que o contrato foi “excessivamente generoso com o investidor” e continha “uma série de brechas”, declarando que “os acordos de produção vigentes parecem ter taxas de royalties muito abaixo do que é praticado internacionalmente”.
Para tirar vantagem de sua abundância nesse recurso, o governo guianense deve navegar uma rede complexa de pressões domésticas e internacionais. A descoberta do petróleo reacendeu tensões imperiais de longa data e introduziu outras. Disputas territoriais com a Venezuela, além de rivalidades regionais com envolvimento dos Estados Unidos, da China e da Rússia, agravaram as instabilidades domésticas. Conforme a produção cresce, a Guiana se torna novamente um campo de batalha para ambições geopolíticas.1
Grande disputa de poder
A Guiana se localiza próximo ao Oceano Atlântico e ao Grande Caribe, não muito distante do Canal do Panamá. Ela faz divisa com o Brasil, a Venezuela e o Suriname – os dois últimos, envolvidos em persistentes disputas territoriais. Antes da descoberta das jazidas, a Guiana funcionava como uma economia agrária e extrativista de menor grandeza, altamente dependente das receitas obtidas com a exportação de açúcar, arroz, ouro, madeira e bauxita. Apesar de sua localização e reservas minerais, continua sendo o segundo país mais pobre da América do Sul, com um terço da população vivendo abaixo da linha da pobreza.2
Os interesses estadunidenses na Guiana datam do século XIX, quando pensadores da geopolítica como Alfred Mahan caracterizavam o Mar do Caribe e o Golfo do México como o “Mediterrâneo Americano”. Mahan defendia que o controle sobre a região, em particular mediante a construção do Canal do Panamá, garantiria à Marinha dos Estados Unidos fácil mobilidade entre o Atlântico e o Pacífico, ao possibilitar uma rápida reunião de suas frotas sem que acabassem divididas entre dois oceanos, além de oferecer uma rota comercial segura para exportações e viabilizar o bloqueio da entrada de rivais militares e econômicos.
No período do pós-guerra, essa perspectiva ganhou nova vida com Nicholas Spykman, que argumentou que a América do Sul é separada do “Mediterrâneo Americano” pela Floresta Amazônica e pela Cordilheira dos Andes. Essa concepção do território americano incluía uma vasta porção do México, cadeias insulares de toda a América Central e países setentrionais da América do Sul, como Venezuela e Colômbia. Por sua proximidade com o gargalo bioceânico, a Guiana estava no centro desse território. Era do interesse imperial dos Estados Unidos garantir que esse Estado permanecesse totalmente dependente em termos econômicos e militares. Não por acaso, assim como Honduras, Aruba e Curaçao, El Salvador, Colômbia e Suriname, a Guiana há muito esteja sendo forçada a operar como base militar e defensora dos interesses regionais estadunidenses.3 A descoberta de petróleo apenas exacerbou essas aspirações imperiais.
Os Estados Unidos não são a única potência empenhada no futuro da Guiana, que divide com o Brasil 1.605 quilômetros de fronteira terrestre permeável na Amazônia. Entre o fim do século XIX e o início do XX, comandantes das Forças Armadas brasileiras, como Mário Travassos e Carlos Meira Mattos, viam a Guiana como plataforma para alcançar portos ao norte do continente, no Caribe e no Atlântico Sul. A Guiana era vista como ponto ideal a partir do qual seria possível organizar uma defesa contra as intromissões estadunidenses na América do Sul. A riqueza de recursos estratégicos da Amazônia, dizia-se, atrairia a “ganância externa”, tornando necessária uma integração estreita entre os países amazônicos. Em décadas mais recentes, o Brasil atuou no sentido desses objetivos por meio da promoção de um polo de desenvolvimento transnacional entre Brasil, Guiana e Venezuela. Esta meta foi igualmente amplificada pela descoberta do petróleo.
A relação de intensa concorrência da Venezuela com a Guiana gira em torno de uma disputa territorial por zonas marítimas e pela região de Essequibo que remonta a 1841, quando as forças coloniais britânicas invadiram esse rico território. Embora oficialmente essa disputa tenha sido resolvida em 1899 por meio da arbitragem internacional, a questão nunca ficou totalmente assentada. Pensadores venezuelanos como Rubén Castillo apresentaram a perda territorial venezuelana como um desastre para a segurança e a economia do país. Nos anos 1960, uma nova interpretação venezuelana do caso de 1899 levou à abertura de queixas na Organização das Nações Unidas (ONU) em 1963 e 1965, as quais sustentavam que a arbitragem anterior foi enviesada por falsificações cartográficas britânicas e uma composição tendenciosa da arbitragem. O resultado, segundo juristas venezuelanos, foi um “acordo obtido mediante extorsão”.
Após uma comissão de inquérito em 1966, a Guiana e a Venezuela assinaram o Protocolo de Port of Spain, que suspendeu qualquer reivindicação sobre o território pelos doze anos seguintes. Sob o governo de Hugo Chávez, persistiu esse espírito de cooperação e integração – incluindo o perdão da dívida guianense com a Venezuela e, em governos posteriores, a troca de arroz por petróleo nos termos dos acordos PetroCaribe, assinados em 2009.4
A entrada da Exxon
Em razão da limitada capacidade estatal de extração, processamento ou regulação, a pesquisa e a exploração dos recursos petrolíferos da Guiana têm sido em grande medida realizadas por companhias estrangeiras – notadamente as estadunidenses. O interesse da ExxonMobil na Guiana remonta a meados dos anos 1990, quando, após completar uma série de prospecções geológicas, a empresa identificou em águas profundas uma “área de interesse para petróleo”. Em 1999, uma subsidiária assinou um acordo para perfuração em uma vasta concessão em alto-mar. Durante anos, a empresa não pôde fazer muito, principalmente como consequência da disputa de fronteira marítima entre a Guiana e o Suriname, que começou em 2000 e foi resolvida em 2007, abrindo caminho para que a Exxon retomasse a exploração no ano seguinte
Em maio de 2015, a Exxon anunciou sua primeira grande descoberta na Guiana: o campo de Liza 1. Até 2020, a Exxon havia investido por volta de US$ 5 bilhões na produção de petróleo na Guiana e encontrado dezoito poços no bloco de Stabroek, a cerca de 200 quilômetros da costa a partir da capital Georgetown, em águas com 1,5 mil a 1,9 mil metros de profundidade, estando as reservas aproximadamente 3,6 quilômetros abaixo do leito marinho.5 A maior parte dos poços se localiza na porção oriental da costa guianense, fora da região de Essequibo.
Até aqui, a Guiana não foi capaz de atender às exigências tecnológicas ou de mão de obra especializada para desenvolver sua indústria energética. Entretanto, as aspirações de desenvolver uma capacidade estatal e aumentar o investimento têm sido a força motriz da política doméstica na última década. Em 2018, o governo anunciou a intenção de formar uma companhia nacional de petróleo e adotar uma política de conteúdo local, criando centros de logística e institutos especializados de ciência e tecnologia, além de elaborar uma legislação tributária adequada. Raphael Trotman, então ministro dos Recursos Naturais, explicitou esses planos enquanto sua pasta formulava políticas de conteúdo local. Mas não se verificou nenhum progresso: a perspectiva de uma companhia nacional de petróleo foi citada pela última vez pelo governo em 2022.6 Diante dessa enorme falta de capacidade, o governo guianense tomou um empréstimo de US$ 20 milhões do Banco Mundial em 2019, voltado para o desenvolvimento de capacidades administrativas e regulatórias no setor de petróleo, que atualmente depende de trabalhadores especializados de países vizinhos, como Trinidad e Tobago, Venezuela, Brasil e os Estados Unidos.7 Não surpreende que a Exxon e outras grandes empresas privadas de petróleo tenham sido capazes de explorar os estágios nascentes da indústria por meio da cooptação e da influência sobre a política interna. As divisões étnicas e políticas existentes no país ofereceram um ambiente ideal para tais intervenções externas. Desde que a Guiana obteve independência do Reino Unido, em 1966, a população indo-guianense, 40% do total do país e que é representada pelo Partido Progressista do Povo (PPP), tem disputado o poder com Uma Parceria pela Unidade Nacional (APNU), representante da população afro-guianense, que corresponde a 30% do total do país.
Em maio de 2015, a oposicionista APNU, liderada por David Granger, venceu as eleições gerais do país, pondo fim a um ciclo de 23 anos do PPP no poder. O governo de coalizão da APNU tinha uma maioria frágil, de apenas um assento. Apenas nove dias após a eleição, a ExxonMobil anunciou o êxito das descobertas do petróleo em Stabroek. No ano seguinte, o governo de Granger assinou um novo contrato com a ExxonMobil, que revisou e fez emendas ao acordo de 1999. Apesar de alguns rendimentos adicionais para a Guiana, o contrato favorecia enormemente a petroleira. Muitos cidadãos guianenses contestaram a falta de transparência em torno dele. Uma cláusula que garantia ao governo um bônus de US$ 18 milhões no momento da assinatura do contrato gerou ainda mais suspeita.
Quando o contrato foi finalmente divulgado, vieram à luz enormes oportunidades perdidas. A Open Oil, uma empresa alemã de análise de dados, estimou que a Guiana absorveria não mais que 54% dos recursos econômicos do contrato. Em comparação, o acordo de Gana pelo petróleo encontrado em alto-mar lhe garantiu 64%. Uma análise pormenorizada do contrato aponta que, em termos de área, a concessão na Guiana é mais de cem vezes maior que a concessão estadunidense no Golfo do México. O governo guianense vai pagar os impostos em nome da empreiteira e é responsável por reembolsar todos os custos de desenvolvimento a fim de obter acesso às rendas de investimento, estimadas em US$20 bilhões em 2024. Uma previsão contratual também proíbe a Guiana de renegociar, aditar ou modificar o acordo unilateralmente. Um consórcio composto de uma empresa privada estadunidense chamada Hess Guyana Exploration e da estatal China National Offshore Oil Corporation (CNOOC) detém 45% da participação no bloco de Stabroek; o contrato exige que o consórcio seja indenizado caso qualquer ação do governo prejudique os benefícios econômicos acumulados.
A produção comercial em Stabroek começou no final de 2019. A Exxon já produzia 98 mil barris de petróleo por dia no campo de Liza 1 em julho de 2020, visando alcançar 120 mil barris diários no mês seguinte e 785 mil em 2025. Se o plano fosse bem-sucedido, esses números fariam da Guiana o sexto maior produtor de petróleo nas Américas.8 No entanto, o governo guianense estimou recentemente que o consórcio produziu e vendeu 31,8 milhões de barris (87 mil ao dia) em 2020, primeiro ano completo de produção, deixando de cumprir com a meta daquele ano, de 100 mil barris ao dia.9
Algumas estimativas sugerem que a produção futura tem o potencial de quadruplicar o Produto Interno Bruto (PIB) do país em relação ao valor atual, com o ingresso anual de US$ 15 bilhões; as receitas do governo poderiam alcançar US$ 5 bilhões ao fim da próxima década. Estimativas mais ousadas sugerem que a extração poderia garantir entre US$ 7 bilhões e US$ 27 bilhões em receita bruta nos próximos trinta anos.10 O alvoroço em torno da descoberta foi tão grande que Neil Chapman, membro do conselho de administração da Exxon, a chamou de “conto de fadas”.11 Ainda em 2018, Rex Tillerson, ex-CEO da Exxon e ex-secretário de Estado dos Estados Unidos, afirmou que as descobertas possibilitam que “nosso hemisfério se torne o centro inquestionável do fornecimento de energia no mundo”.12
Essas expectativas se mostraram, até agora, demasiado ambiciosas. O retorno aos investidores da Exxon caiu de 25% em 2012 para 6,5% em 2019, enquanto sua capitalização de mercado caiu de US$ 527 bilhões em 2007 para US$ 150 bilhões hoje. Com o recente anúncio da Exxon de que cortaria investimentos, o projeto na Guiana se tornou o ativo estratégico fundamental para a empresa em seu esforço por manter a confiança dos investidores.
O retorno do império
Nesse meio-tempo, a descoberta do petróleo reacendeu disputas regionais e globais centenárias – tais como as tensões entre a Guiana e a Venezuela. Em 2007, a Exxon abriu caminho para suas incursões iniciais na Guiana assim que Hugo Chávez nacionalizou projetos administrados pela própria Exxon, British Petroleum, Chevron, ConocoPhillips, Total e Statoil, que representavam 25% da produção de petróleo da Venezuela, com investimentos de mais de US$ 15 bilhões. A Exxon logo ingressou em prolongadas disputas judiciais contra o governo venezuelano em relação à exploração de petróleo, mas ao fim acabou derrotada nos tribunais, sofrendo amplas perdas financeiras.13 Em outubro de 2013, a Marinha venezuelana interceptou um navio-plataforma de exploração petrolífera de propriedade da companhia texana Anadarko Petroleum, escoltando-o e prendendo sua tripulação, que incluía cinco estadunidenses. A oposição aos Estados Unidos e a maior apropriação das receitas do petróleo eram as pedras angulares da plataforma de Chávez desde a tentativa de golpe militar apoiada pela CIA em 2002.
Na sequência da descoberta da Exxon em 2015, a Marinha venezuelana declarou a área marítima em disputa com a Guiana uma “zona de defesa integral”. O governo guianense, com apoio da Colômbia e do Suriname, rechaçou essa declaração e prometeu levar a questão à ONU, à Organização dos Estados Americanos (OEA), à Comunidade do Caribe (Caricom) e à Commonwealth.14 O caso foi mais uma vez levado ao Tribunal Internacional de Justiça, e os advogados da Guiana, pagos com os lucros da Exxon.
As crescentes disputas territoriais com a Venezuela empurraram a Guiana ainda mais para os braços dos Estados Unidos, atando a defesa do país aos interesses econômicos da Exxon. Os Estados Unidos se aliaram intimamente à Guiana para defender o próprio acesso estratégico a recursos e preservar relações com um governo que lhe é amigável e, ao mesmo tempo, hostil aos interesses venezuelanos. Entre maio e agosto de 2019, o Comando Sul das Forças Armadas estadunidenses promoveu ali o exercício militar anual denominado Novos Horizontes, no qual as tropas guianenses foram treinadas em engenharia, construção e assistência médica, com a mobilização de um aparato militar desproporcional para uma operação supostamente voltada a prestar assistência humanitária. Durante a cerimônia de encerramento, o general Andrew Croft, comandante da Força Aérea do Sul, declarou que a Guiana é um local estratégico, na divisa da América do Sul com o Caribe.15 Analistas notaram que a presença militar estadunidense na Guiana é uma manobra para cercar a Venezuela, somando-se à presença e às bases militares estadunidenses a oeste desse país, na Colômbia.
A “guerra às drogas” dos Estados Unidos – que assegurou um pretexto permanente para sua ação militar na América Latina – também se estendeu à Guiana. O país se enquadra na Iniciativa de Segurança da Bacia Caribenha (CBSI), formada pelos Estados Unidos para combater o tráfico de drogas na região.16 A Estratégia Nacional de Segurança dos Estados Unidos de 2017, bem como a Estratégia de Envolvimento no Caribe para 2020 elaborada pelo Escritório Estadunidense de Assuntos do Hemisfério Ocidental, determinam uma política de envolvimento para combater o tráfico de drogas e o crime transnacional no Caribe.
A militarização estadunidense tem sido defrontada pela crescente presença econômica e militar de potências externas aliadas ao governo Maduro, notadamente China e Rússia. O modelo de “petróleo por empréstimo” comprometeu cerca de metade das receitas do petróleo venezuelano com ambos os países. Embora tenha participação relativamente marginal na exploração do petróleo na Guiana, a China é um ator crucial na disputa por poder no mundo e na América do Sul. Em julho de 2018, o governo da Guiana assinou uma carta de intenções com o país para se juntar à à Iniciativa Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative – BRI), com vários projetos voltados a transformar a cidade guianense de Lethem em um importante centro de comércio. A petroleira estatal chinesa CNOOC é a terceira maior operadora do bloco de Stabroek.17 A Guiana pode ser considerada outro alvo potencial da crescente necessidade chinesa de encontrar recursos naturais fora de seu território.
Em meio a esses desdobramentos concomitantes, a região foi mais uma vez transformada em frente de batalha das grandes potências. Enquanto os Estados Unidos e a União Europeia têm domínio sobre a Guiana e o Suriname, a Venezuela é receptiva à China e à Rússia. Conforme a competição por recursos se intensifica, o Grande Caribe continua sendo um território estratégico para o poder estadunidense, país que está disposto a empregar sua vasta presença militar.
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Desde 1º de dezembro de 2023, o Brasil preside o G20. O mandato de um ano, que culminará na cúpula anual de novembro no Rio de Janeiro, sucede duas presidências do Sul Global—Indonésia (2022) e Índia (2023)—e antecede mais uma—África do Sul (2025). No momento em que a condução do espaço foi transmitida a Lula pelo primeiro ministro indiano Narendra Modi, a nova presidência brasileira anunciou três eixos prioritários: i) o combate à fome, à pobreza e à desigualdade; ii) a transição energética e o desenvolvimento sustentável em suas três dimensões (econômica, social e ambiental); e iii) a reforma do sistema de governança internacional. As propostas foram bem acolhidas internacionalmente e, agora, é o momento de construir agendas concretas para a cúpula de novembro.
Ainda que as propostas do governo brasileiro sejam progressistas, o espaço de diálogo multilateral representado pelo G20 se defronta com uma institucionalidade de governança internacional anacrônica, que reflete a correlação de forças existente na metade do século XX. Forjadas no pós-Segunda Guerra Mundial, instituições como o FMI e o Banco Mundial estruturam um sistema que não reflete as profundas mudanças ocorridas no cenário internacional desde então. Esse sistema, dominado por países cujas economias representam uma fatia cada vez menor da produção e comércio mundiais, reproduz assimetrias financeiras e monetárias relevantes, reforça desigualdades e não oferece soluções para os desafios econômicos contemporâneos.
Por outro lado, o aumento do peso do Sul Global no conjunto dos países que compõem o G20 indica transformações no equilíbrio de forças dentro do grupo e mostra que o momento é propício para mudanças. A última cúpula do fórum, em Nova Delhi, foi um exemplo disso. Sob a presidência indiana, este grupo de países teve ao menos duas grandes vitórias que representam uma guinada em direção à multipolaridade: a ausência de um posicionamento unilateral em relação à Guerra na Ucrânia e, ainda mais importante, a inclusão da União Africana como membro permanente do grupo.
Figura 1: Membros do G20 após a cúpula de 2023
Fonte: G20. Elaboração própria.
O aumento do peso e, consequentemente, do poder político do Sul Global no G20 favorece novas pautas internacionais para o século XXI. Assumindo a presidência rotativa pela primeira vez, o governo brasileiro tem uma grande oportunidade de promover a cooperação entre esses países para favorecer a implementação de agendas comuns. Ainda que a diversidade política entre os países do Sul Global dificulte uma coordenação diplomática mais formal para a estruturação de um bloco econômico dentro do G20, as prioridades do governo brasileiro refletem interesses compartilhados e podem favorecer a atuação conjunta.
O Sul Global no G20
Com a recente incorporação da União Africana (UA) o mapa do G20 se alterou substancialmente, aumentando de forma significativa a abrangência geográfica do espaço deliberativo. O conceito de Sul Global aqui adotado é baseado em critérios geopolíticos, para além de geográficos e econômicos. Entre os membros do G20, consideramos como Norte Global: Alemanha, Austrália, Canadá, Estados Unidos da América, França, Itália, Japão, Reino Unido, República da Coréia e a União Europeia. Como Sul Global, consideramos: África do Sul, Arábia Saudita, Argentina, Brasil, China, Índia, Indonésia, México, Rússia, Turquia e a União Africana.
Agrupar os países-membro de acordo com essa divisão ilustra as mudanças do peso do Sul Global no G20 nas últimas décadas. A participação do PIB na economia global é o critério mais utilizado para análises de economia internacional. A partir do século XXI, houve uma rápida transformação no peso dos dois grupos de países. Os últimos dados, referentes a 2022, mostram que vivemos precisamente o momento em que o Sul Global está ultrapassando o Norte (figura 2).
Figura 2: Participação no PIB global (em paridade do poder de compra)
Fonte: Banco Mundial. Elaboração própria
Com o crescimento econômico mundial ocorrido entre 1990 e 2022, a parcela dos países do Norte Global que compõem o G7 dentro do G20 caiu cerca de 20 pontos percentuais—de 57 por cento para 37 por cento. O crescimento da participação do Sul Global no PIB mundial reflete a inegável importância do G20, em contraste com o G7, como fórum de governança global.
Figura 3: Participação do G7 no PIB do G20 (em paridade do poder de compra)
Fonte: Banco Mundial. Elaboração própria.
Ainda que a economia chinesa lidere significativamente essa trajetória ascendente do Sul Global, ela não a explica sozinha. A figura 4 mostra que, isolando as duas maiores economias do planeta—EUA e China—desde o início do século XXI a contribuição dos demais países do Sul com o crescimento real do PIB do G20 tem sido quase invariavelmente maior que a dos demais países do Norte.
Figura 4: Contribuição para o crescimento real do PIB do G20 (%)
Fonte: World Development Indicators, Banco Mundial. Elaboração própria.
Quando analisamos a produção industrial, a transformação também é bastante significativa. Embora haja diferenças substanciais na participação de cada um dos países do Sul Global nas cadeias globais de valor, em termos quantitativos agregados, a evolução do conjunto de países é notável. No momento da criação do G20 em 1999, a participação dos países do Sul no total da produção industrial do grupo era cerca de 10 por cento. A partir de 2005 esta participação começa a crescer rapidamente, chegando a quase 50 por cento em 2021 (figura 5). Já nos próximos anos—e a despeito do movimento de reshoring promovido pelos EUA—o Sul Global deverá ultrapassar o Norte também segundo este critério.
Figura 5: Produção Industrial (% valor adicionado em relação ao total do G20)
Fonte: Banco Mundial. Elaboração própria.
Do ponto de vista do comércio internacional, a participação dos países do Sul Global também é crescente. No momento de criação do G20, em 1999, a participação do Sul no total das exportações era de aproximadamente 13 por cento, passando a mais de 30 por cento em 2021 (figura 6). O aumento nas exportações reflete o crescimento da produção de bens industriais, como demonstrado acima, mas também a grande relevância dos países do Sul na produção e exportação de bens agrícolas e minerais. A figura 7 mostra a importância do Sul na produção de alguns dos gêneros alimentícios mais relevantes para a dieta da maioria da população mundial. O Sul Global é antigo protagonista na produção de arroz e cana-de-açúcar (com destaque, respectivamente, para a China e a Índia; e para o Brasil, a Índia e a China).
Com relação a outros gêneros alimentícios, foi ao longo das últimas três décadas que os países do Sul ultrapassaram os do Norte. A produção de trigo e carne do Sul Global, por exemplo, ultrapassou a do Norte nos anos 1990 e representa atualmente cerca de 60 por cento do total produzido pelo G20. A produção de soja pelo Sul se tornou preponderante no início do século XXI e sua participação atual também gira em torno de 60 por cento (com destaque para o Brasil e a Argentina). Na produção de milho, os EUA ainda são, individualmente, o país mais importante, mas na análise que congrega os países em dois blocos, o Sul Global também se tornou mais relevante que o Norte (sobretudo em função das produções chinesa e brasileira).
Figura 6: Participação do Sul Global nas exportações totais do G20 (%)
Fonte: Banco Mundial. Elaboração própria.
Figure 7: Food production, selected foodstuffs (% in relation to the G20 total)
Fonte: Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura – FAO. Elaboração própria.
Na produção de eletrecidade, questão de importância central, os países do Sul Global ultrapassaram os do Norte no G20 já em 2013. Atualmente, superam a produção destes em mais de 40 por cento. Além disso, ainda mais relevante do que a quantidade produzida é a diversidade de fontes. A figura 8 mostra que o Sul Global tem produções equivalentes ou superiores às do Norte em fontes consideradas limpas (como energia hidrelétrica, eólica e solar), mas que o volume de produção de energia por meio da queima de carvão mineral é ainda extremamente grande—sobretudo em função da China e da Índia.
Esses dados demonstram a impossibilidade de pensar em uma transição energética a nível global sem a adesão do Sul, o que, por um lado, expõe a necessidade do compromisso desses países com esse projeto, mas, por outro, evidencia a importância da colaboração e disponibilização de instrumentos entre Norte e Sul, garantindo que a transição seja feita com a rapidez necessária, mas sem reforçar desigualdades estruturais. Também há heterogeneidades importantes entre os próprios países do Sul Global, o que torna a transição energética mais desafiadora para alguns do que para outros. É crucial, portanto, que a agenda ambiental do G20 seja formulada levando em conta os principais vetores de aumento (e de potencial redução) na emissão de carbono para cada país.
Figura 8: Produção de eletricidade, por fonte, G20 (TWh)
Fonte: Statistical Review of World Energy 2023 – Energy Institute. Elaboração própria.
O outro lado da moeda
O aumento da importância do Sul Global no G20 segundo as métricas econômicas de produção e comércio não se reflete em mudanças no funcionamento do Sistema Monetário e Financeiro Internacional (SMFI). No conjunto dos mercados cambiais internacionais, o volume de transações que envolvia o dólar estadunidense representava, em 1989, 90 por cento e, em 2022, 88 por cento.1
A resiliência do dólar contrasta com a perda da importância relativa da economia estadunidense na produção mundial. No mesmo período de 1989 a 2022, a única moeda emitida pelo Sul Global que teve uma ascensão digna de nota é o renminbi chinês, que passou de 0 por cento a 7 por cento do volume de transações. Considerando que o PIB chinês atualmente representa cerca de 15 por cento do PIB global (em paridade do poder de compra), há um grande descompasso. Moedas de grandes economias do Sul Global, como Índia (2 por cento) e Brasil (1 por cento), são absolutamente marginais no cenário internacional.
Esta assimetria do SMFI tem grandes impactos macroeconômicos globais, gerando o que Valérie Giscard D’Estain chamou, já nos anos 1960, de “privilégio exorbitante” para o país emissor da moeda-chave, e o que chamamos de “fardo compulsório” para países emissores de moedas periféricas.2 Como consequência, estes últimos tendem a apresentar maior volatilidade em suas taxas de câmbio, maiores taxas de juros e menor autonomia na gestão da política econômica3 A sssimetria monetária, naturalmente, é uma fonte de poder geopolítico. A dependência dos países de transações em dólar no SMFI permite aos EUA usar sua moeda como arma de guerra.4
Ao lado da hegemonia do dólar estadunidense, as principais instituições financeiras multilaterais adotam práticas de governança anacrônicas que reforçam a desigualdade entre os países. O peso do voto e o poder de veto detido pelos EUA no Fundo Monetário Internacional são exemplos de como as mudanças geopolíticas e econômicas ocorridas desde 1945 são ignoradas por esse sistema.
Para além da economia, pessoas
Ao lado da análise de indicadores econômicos, é pertinente olhar para os dados demográficos dos países-membros do G20. A porção populacional do Sul Global já era largamente superior àquela do Norte em 2022, e o ingresso da União Africana no grupo em 2023 tornou este quadro ainda mais desbalanceado. A figura 9 mostra que mais de 80 por cento da população total do G20 está no Sul. A ONU estima que as populações do Norte e do Sul Global extra-UA ficarão relativamente estáveis ou terão crescimento modesto nas próximas três décadas, enquanto a população da UA deve aumentar em cerca de um bilhão de pessoas, o que elevaria a participação demográfica do Sul Global no G20 aproximadamente 86 por cento do total.
Figura 9: População total, integrantes do G20 (bilhões de pessoas)
Fonte: ONU – World Population Prospects 2022. Elaboração própria.Fonte: ONU – World Population Prospects 2022. Elaboração própria.
Se considerarmos apenas a população abaixo de vinte anos, a discrepância é ainda maior. A figura 10 mostra que, com a inclusão da UA, o Sul Global reune atualmente quase 90 por cento da população jovem do G20—quadro que tende a ser mantido nas próximas décadas.
Figura 10: População abaixo de 20 anos no G20 (bilhão de pessoas)
Source: ONU – World Population Prospects 2022. Own formulation.
As métricas econômicas e demográficas revelam a grande e crescente proeminência do conjunto de países do Sul Global no G20. Isso provoca inquestionáveis efeitos geopolíticos. É sinal de aumento do poder do Sul no grupo, o que deve incentivar sua atuação em bloco na busca de interesses comuns.
Agendas Sul-Sul
O aumento do peso e, consequentemente, do poder de barganha do Sul Global no G20 significa que o momento é oportuno para pressionar por uma nova estrutura global de governança que reflita concretamente as transformações econômicas e geopolíticas das últimas décadas. O esforço do Sul Global por ampliar sua voz nas arenas internacionais não é novo, mas a conjuntura atual permite à presidência brasileira potencializar as demandas desse grupo no G20.
Um fator central é a ampliação exponencial do poder geopolítico chinês. Caso os países do Norte Global não abram espaço para as demandas dos demais países do Sul, favorecerão uma crescente aproximação deles com a China. A ampliação dos BRICS para incluir seis novos países (Arábia Saudita, Irã, Etiópia, Egito, Argentina e Emirados Árabes Unidos), iniciada em 2023, por exemplo, pode implicar o aumento da importância de fóruns de articulação internacional alheios ao G20.
Soma-se ao cenário internacional um fator de ordem doméstica: após seis anos como pária internacional, o Brasil retoma sua antiga posição de prestígio na cena mundial com a reeleição de Luís Inácio Lula da Silva. Já nos primeiros meses de seu terceiro mandato, Lula se reposicionou como um dos principais líderes mundiais, sobretudo em questões ligadas à paz, e ao combate à fome e à crise climática. Para que essas prioridades sejam colocadas em prática no cenário internacional, é importante que a presidência brasileira do G20 defenda vigorosamente as propostas de alívio ou perdão de dívidas de países de baixa renda, especialmente num contexto de ajuste fiscal amplamente incentivado pelo SMFI.
O G20 já demonstrou a capacidade de promover mudanças no cenário fiscal dos países. Em 2020, para minimizar os impactos da pandemia nas populações e das dívidas públicas nas trajetórias de crescimento dos países de baixa renda, o fórum instituiu a Debt Service Suspension Initiative (DSSI). De maio de 2020 a dezembro de 2021, a iniciativa suspendeu US$12,9 bilhões em pagamentos do serviço da dívida dos países participantes.5 O valor, no entanto, representou pouco mais de um quarto do que havia sido anunciado no lançamento.6Em 2022, o programa foi substituído pelo Common Framework for Debt Treatment Beyond the DSSI, em vigor atualmente. Ambos os programas se mostraram lentos, excludentes dos países de renda média, e falhos em atrair a participação completa dos credores.7 Há espaço para avançar com um projeto melhor e mais abrangente de renegociação ou perdão de dívidas.
O endividamento externo e a consequente ausência de espaço fiscal são questões vinculadas a outro problema crucial: os custos crescentes do financiamento climático. Países superendividados precisarão investir na transição verde se o G20 quiser atingir seus objetivos comuns. A dificuldade da comunidade internacional de propor alternativas para a dívida de países de renda média e baixa impossibilita a realização de investimentos em mitigação e adaptação justamente por aqueles que são mais vulneráveis às mudanças climáticas.8 O fato de o estado brasileiro ser um credor externo só aumenta a legitimidade deste pleito.
O cenário global de pressão pela adoção de regras fiscais é um dos exemplos de assimetria no SMFI que a presidência brasileira pode pautar. A resistência dos países do Norte em relação a reformas dessa natureza é ainda muito grande, mas o reconhecimento das disfuncionalidadesdo atual sistema legitima as reivindicações do Sul. Se é certo que algumas das mudanças não sairão de uma concertação global, mas das próprias transformações econômicas e geopolíticas em curso, há outras, em particular as que envolvem as instituições multilaterais formadas em Bretton Woods, que podem ser favorecidas por meio de diálogo e pressão dentro do G20.
Adicionalmente, a iniciativa brasileira de criação da Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza pode ter ampla repercussão global se culminar numa proposta concreta, que contemple sobretudo a estrutura de financiamento e a articulação entre as diversas instâncias governamentais. Com vontade política e um desenho institucional eficaz, é possível mitigar a sórdida realidade de quase 800 milhões de pessoas passando fome em um mundo que produz suficiente quantidade de alimentos para alimentá-las. Esse desenho pode se basear nas experiências bem-sucedidas do próprio Sul Global—como a política de alívio direcionado da pobreza da China e a Política de Fome Zero do Brasil.
Por fim, a sustentabilidade em suas três dimensões—econômica, social e ambiental—é um tópico que precisa receber tratamento prioritário e transversal em relação a todas as agendas da presidência brasileira do G20. Questões ligadas ao financiamento da transição verde, à garantia das condições de não exploração de áreas ambientais preservadas, e à diferenciação do fardo de redução das emissões de carbono para países do Sul e do Norte Global são centrais.
O Brasil—assim como outros países do Sul e do Norte Global—enfrenta aqui um certo impasse. Num mundo em que a transição energética ocorre a passos lentos, figurar entre os grandes produtores de petróleo é uma posição que ainda garante ao Brasil oportunidades econômicas relevantes—como a exploração das reservas da Margem Equatorial, por exemplo—e poder geopolítico—vide o movimento de integração da OPEP+. Mesmo assim, em meio à gravidade da crise ambiental atual, o governo deve permanecer firme na defesa de políticas ambientais eficientes. Tendo em vista a centralidade da transição verde na agenda do G20 e o fato de que o Brasil também sediará a COP30 em 2025, o contexto é propício para a abertura de canais de diálogo, parcerias e financiamento.
Esses são alguns exemplos de como a presidência brasileira do G20 pode articular suas prioridades com a crescente importância do Sul Global no fórum para efetivamente influenciar as resoluções da cúpula de 2024. Não existem soluções nacionais para problemas globais. A pandemia mostrou com nitidez a falência das atuais estruturas de governança global na coordenação de soluções coletivas. A indecorosa corrida pela compra de vacinas, quando países ricos garantiram doses em quantidades muito superiores à sua necessidade enquanto países de renda média e baixa sequer haviam garantido a primeira dose para sua população, foi ilustrativa da urgente necessidade de transformações.
Como a experiência já demonstrou, questões relacionadas a desigualdades estruturais ou à crise climática não serão resolvidas com a adoção dos mesmos mecanismos de um sistema evidentemente falho. Se o G20 não for capaz de desafiar estas estruturas, perderá sua relevância como fórum de discussão. A cada dez jovens do G20, nove estão no Sul Global. Se a agenda do grupo estiver mais atenta a um jovem do Norte Global do que a nove do Sul, o espaço terá fracassado. Nesse sentido, a presidência brasileira no G20 pode ter um papel histórico central na reorganização das instâncias de governança mundial. Para tanto, precisará ter cautela em relação às pautas que lhe forem impostas pelas instituições multilaterais tradicionais, privilegiar as necessidades do Sul Global e favorecer a coordenação entre estes países para que atuem em bloco na defesa de interesses comuns.
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Desde o início da década de 2000, o financiamento do desenvolvimento argentino passou por uma profunda transformação.1 Em meio a inadimplências cíclicas da dívida e negociações intermináveis com investidores ocidentais e o Fundo Monetário Internacional (FMI), os empréstimos chineses para investimentos no exterior foram paulatinamente ganhando destaque. Entre 2007 e 2020, a Argentina recebeu US$ 10,65 bilhões em investimentos de empresas chinesas, concentrados nos setores de energia, mineração e financeiro.2 Hoje em dia, a Argentina é o quarto maior beneficiário de empréstimos chineses na região, com cerca de US$ 17 bilhões no total. Esses empréstimos têm apoiado, principalmente, a infraestrutura de transporte, projetos de energia e o aumento das exportações argentinas. Em 2022, o presidente Alberto Fernández concordou em abrir linhas de financiamento com a China, o que totalizou quase US$ 23 bilhões por meio do Diálogo Estratégico para Cooperação e Coordenação Econômica (DECCE) e da Iniciativa Belt and Road, embora esta última ainda esteja pendente de ativação.
Foi nesse cenário de transformação no financiamento argentino que Javier Milei, o autodefinido “primeiro verdadeiro reformador do livre comércio e presidente libertário na história do mundo”, elegeu-se. Milei venceu o pleito contra o ex-ministro da Fazenda, Sergio Massa, em um país com uma taxa de inflação de 140% e exportações em queda livre graças a uma seca que resultou em perda de US$ 19 bilhões, quase 3% do PIB argentino.
Do ponto de vista econômico, Milei provoca uma sensação de déjà vu que lembra as personagens neoliberais das décadas de 1970, 1990 e da era Macri. Seu partido político e seu gabinete são oriundos de administrações anteriores, com figuras como Ricardo Bussi (filho do general da ditadura e ex-governador da província de Tucumán, Antonio Domingo Bussi) e membros da administração de Carlos Menem (1989-1999), incluindo o sobrinho do ex-presidente, Martín Menem, que assumiu a presidência da Câmara dos Deputados. De maneira notável, um número significativo de ex-ministros do governo de Macri – Patricia Bullrich, Luis Caputo, Santiago Bausili, entre outros – também se juntou ao gabinete de Milei.
Milei defende reformas radicais de livre comércio e uma robusta política de ajuste. Na esperança de inaugurar uma nova era de endividamento substancial com as finanças ocidentais, ele originalmente prometeu cortar os laços com governos “comunistas” – como a China e o Brasil – e, notoriamente, prometeu dolarizar a economia e desmantelar o Banco Central.
Porém, menos de um mês após sua eleição, a orientação de Milei em relação à China sofreu uma mudança drástica: atualmente, a Argentina possui uma reserva líquida do Banco Central de US$ 10 bilhões negativos, com reservas brutas no valor de US$ 23 bilhões, 75% das quais estão vinculadas a um acordo de swap com a China. Quando a embaixada chinesa suspendeu o acordo, Milei foi, ironicamente, forçado a pedir desculpas a Xi Jinping em sua primeira ação política. Mas a carta de Milei não foi suficiente – a China suspendeu a ativação dos 47 bilhões de renminbi (equivalente a US$ 6,5 bilhões) do swap.
A trajetória da orientação de Milei em relação à China põe de pé questões relacionadas a desenvolvimentos mais profundos no cenário financeiro global. Ela sugere que há mais em jogo do que apenas a ideologia: em certos contextos, os EUA e suas instituições financeiras afiliadas não podem mais afirmar com credibilidade que financiam as necessidades de desenvolvimento do Sul Global, e o investimento chinês veio para ficar. Além disso, indica que nem todos os países do Sul Global são igualmente fortalecidos pela crescente concorrência geoeconômica. Pelo contrário, alguns se encontram duplamente presos entre as potências globais.
Ciclos da dívida
Em dezembro de 1982, o Banco Central da Argentina nacionalizou quase US$ 17 bilhões em dívidas privadas, no momento em que se encerrava um período de ditadura apoiada por Kissinger, caracterizada por alguns dos primeiros experimentos de reestruturação neoliberal. A decisão abriu caminho para a crise da dívida da década de 1980 e para as subsequentes políticas de desindustrialização e reformas de ajuste, acompanhadas de repressão social.
Desde então, a economia argentina tem permanecido nessa trajetória cíclica: empréstimos significativos desencadeiam uma crise econômica que é usada para justificar medidas de austeridade e privatização. Em vez de estimular o crescimento econômico, essas medidas geralmente pioram a crise e provocam um período de fuga de capitais.3 Nas eleições seguintes, a coalizão de centro-esquerda no poder se abstém de desafiar o ciclo, optando, em vez disso, por renegociar e pagar a dívida.
É por causa desse padrão que a ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner chamou a Argentina de “pagadora em série“. A estratégia pode ter ganhos temporários em circunstâncias exógenas favoráveis, como um boom de commodities. Porém, durante uma recessão internacional, a estratégia se une às políticas de ajuste estrutural e gera enorme insatisfação. A coalizão de direita acaba retornando ao poder.
Figura 1: A Argentina como um “pagador em série”: Dívida bruta por moeda como porcentagem do PIB
Source: Banco Central da Argentina. Em azul, dívida em pesos; em verde, dívida em moedas estrangeiras.
O ciclo da dívida da Argentina tem sido persistentemente estimulado por seu relacionamento tóxico com o FMI. Em 2018, os efeitos desastrosos dos empréstimos da instituição atingiram novos patamares, ultrapassando a capacidade de endividamento da Argentina, o que provocou uma saída de capital que contradizia os estatutos do FMI.4
As políticas do FMI têm sido orientadas por uma agenda distinta: Mauricio Claver, diretor executivo do FMI e conselheiro crucial do governo Trump para a América Latina, afirmou: “Tudo o que Trump fez no FMI foi para ajudar Macri e impedir que o peronismo voltasse à ‘Casa Rosada’ (Palácio Presidencial da Argentina).” Ao priorizar a exclusão da esquerda, essas políticas abriram inadvertidamente o caminho para a direita.
Luis Caputo, o Ministro da Economia de Milei, ocupou o mesmo cargo durante o governo de Macri. Caputo, um economista com experiência no JP Morgan e no Deutsche Bank, implementou um mecanismo de fuga de moeda por meio do Banco Central durante o mandato de Macri. Isso envolveu leilões de dólares abaixo das taxas de mercado, resultando em uma perda substancial de 66 bilhões de pesos. A conexão dessa perda com os fundos do empréstimo recorde de Macri junto ao FMI foi revelada mais tarde, levantando preocupações sobre as saídas financeiras. Em revelação surpreendente, o próprio Milei declarou em uma entrevista em 2018: “Caputo se vendeu, ele recebeu US$ 15 bilhões do FMI e é responsável pelo desastre no Banco Central”.
Figura 2: Países mais endividados com o FMI, em bilhões de dólares.
Assumindo o poder, o governo do ex-presidente Alberto Fernández prometeu romper com o neoliberalismo e traçar um caminho para o crescimento. Entretanto, a reestruturação da dívida, liderada pelo então Ministro da Economia Martín Guzmán, envolveu a solicitação de um novo empréstimo ao FMI dentro da estrutura do Programa de Facilidades Estendidas (EFP) e a obtenção de aprovação no Congresso. As evidências históricas indicam que os programas de ajuste estrutural, sejam eles “brandos” ou “rigorosos”, não conseguiram resolver os problemas na América Latina, muitas vezes exacerbando-os. 5
O próprio acordo provou ser inflacionário e reduziu de modo significativo a capacidade do governo de implementar políticas assertivas contra a inflação. Após a formalização do acordo com o FMI, Guzmán pediu demissão e Sergio Massa, um político experiente, assumiu o cargo.
Uma abertura para a China
Foi depois de décadas de empréstimos por parte das instituições ocidentais que a China surgiu como uma alternativa atraente. Os empréstimos chineses têm vantagens significativas em relação a seus equivalentes ocidentais. Enquanto o financiamento ocidental vem com condicionalidades políticas e econômicas internas, a China oferece empréstimos sem condicionalidades para grandes projetos de infraestrutura. Após um período de carência de cinco a dez anos, espera-se que os países beneficiários paguem os empréstimos graças ao crescimento econômico que eles devem gerar.
Os empréstimos exigem que a tecnologia chinesa constitua de 30% a 40% das importações do país beneficiário, ampliando os mercados de exportação da China. De modo geral, o financiamento ocidental tem sido muito mais especulativo e de curto prazo do que o capital “paciente” chinês. 6 Como indica a Tabela 2, os empréstimos de Estado para Estado da China para a Argentina usando garantias soberanas totalizaram quase US$ 7,8 bilhões, e a maioria das linhas de financiamento foi para projetos de transporte e energia.
Tabela 1: Quadro comparativo entre as finanças ocidentais e chinesas na Argentina
Aspecto
Finanças ocidentais
Finanças chinesas
Condicionalidades
– Condicionalidades políticas e econômicas internas. – Principalmente relacionadas a programas de ajuste. – Condicionalidades geopolíticas.
– Condicionalidades de políticas não domésticas. – Cláusula tecnológica: Mínimo de 30 a 40% das importações de tecnologia chinesa para impulsionar as exportações chinesas.7 – Cláusulas de inadimplência cruzada: Se um projeto for interrompido, todos serão afetados.
Ciclo
– Especulativo e de curto prazo. – Não gera condições de pagamento – Normalmente, gera saídas de capital do país – Relacionado à expansão financeira dos EUA
–Relacionado a projetos na economia real (hidrelétricas, usinas solares, linhas de exportação, etc.) – Espera gerar condições de pagamento – Os swaps são de longo prazo, capital “paciente”.88 Não custam nada antes da ativação. – Vinculados à expansão do material chinês.
Taxa de juros
– FMI: Cerca de 10%
– As taxas dos empréstimos e swaps chineses são mais baixas do que os juros do mercado. – Empréstimos em torno de 3%, swaps em torno de 6%.
Adaptabilidade
– Baixa
– Alta
Fonte: Elaborado pelo autor.
Tabela 2: Empréstimos canalizados por bancos de desenvolvimento da China para a Argentina (2010-2019). Por agência de empréstimo, projeto, valor, taxa de juros e vencimento.
Ano
Agência de Empréstimo
Projeto
Milhões (em dólares)
Taxa de Juros
Vencimento
2010
China Development Back (CDB) y CITIC
Fornecimento de locomotivas, vagões de passageiros, peças de reposição, ferramentas, documentos técnicos, serviço técnico e treinamento técnico para a Ferrovia San Martín
273
Taxa + 3.15%
10
2010
Export-Import Bank of China (CHEXIM)
Fornecimento de vagões de passageiros, peças de reposição, ferramentas, documentos técnicos, serviço técnico e treinamento técnico para a Ferrovia San Martín
114
Não disponível
8
2014
China Development Back (CDB) y ICBC
Reabilitação da Ferrovia Belgrano Cargas
2100
Libor Libor de 6 meses + 2,9% de taxas de juros, 0,125% de compromisso, e 0,20% de taxa de administração
15,5 (com período de carência de 4,5 anos)
2014
China Development Back (CDB); ICBC y Bank of China (BoC)
Represas hidrelétricas no Rio Santa Cruz
4714
Libor Libor de 6 meses + 3,8% de taxas de juros, 0,125% de compromisso, e 0,20% de taxa de administração
15 (com período de carência de 5,5 anos)
2017
Export-Import Bank of China (CHEXIM)
Parques solares fotovoltaicos Cauchari I, II e IIIA
331
Taxas de juros 3% (Preferential Buyer Loan – PBL) + 0,75% de taxa de compromisso e 0,75% de taxa de administração
15 (com período de carência de 5 anos)
2019
China Development Back (CDB)
Aquisição de material rodante para a Roca Electric Railway
236
Libor Libor de 6 meses + margem de 2,4%
10 (com período de carência de 3 anos)
Total
7768
Fonte: Secretaria de Assuntos Estratégicos da Argentina (2023)
As linhas de swap chinesas desempenharam um papel crucial na estabilização macroeconômica da Argentina desde 2009, fortalecendo as reservas do país no Banco Central sem custos adicionais se usadas como um mecanismo de reserva. Desde 2008, o Banco Popular da China tem se envolvido em acordos de swap bilaterais (BSAs) com bancos centrais estrangeiros, utilizando esses acordos para oferecer suporte de liquidez de curto prazo a países parceiros além das instituições de Bretton Woods. A Argentina tem sido uma beneficiária significativa desses acordos. O swap cambial inicial, avaliado em 70 bilhões de yuans (US$ 9,98 bilhões), foi assinado em 2009 entre o Banco Popular da China (PBoC) e o Banco Central da Argentina (BCRA) durante a presidência de Cristina Fernández de Kirchner.
Em 2017, sob a administração de Macri, o PBoC e o BCRA renovaram o acordo bilateral de swap de moeda para 70 bilhões de yuans. Um acordo adicional de swap de moeda de 60 bilhões de yuans foi assinado em 2018, aumentando o total para 130 bilhões de yuans (US$ 20 bilhões). Em 2022, Alberto Fernández renovou e ampliou o swap com a China para 150 bilhões de yuans (US$ 23,4 bilhões). Durante o mandato de Sergio Massa como Ministro da Economia, duas parcelas adicionais foram habilitadas: a primeira, equivalente a US$ 5 milhões, e quando esgotada, uma segunda parcela foi ativada por US$ 6,5 bilhões. Desse último montante, foram alocados fundos para fazer três pagamentos ao FMI em yuans: em 30 de junho, no valor de US$ 1,08 bilhão; em 1º de novembro, US$ 796 milhões; e no dia 7 do mesmo mês, outros US$ 884 milhões.
Tabela 3: Reservas do Banco Central da Argentina, desagregadas em agosto de 2023
Conceito
Bilhões (em dólares)
1. Reservas internacionais brutas
23.8
Passivos brutos — Linhas de swap — China (das quais ativadas) — BIS RR Depósitos cambiais Outros (incluindo seguro de depósito) — SEDESA — Outros
34.1 20.9 17.9 6.5 3.0 10.3 2.0 1.8 1.0
2. Reservas internacionais líquidas
-10.3
Ouro DSE Reservas líquidas
3.8 0.0 -14.1
Item de memorando
Taxas de juros nominais (definição do programa) Posição a termo sem entrega do Banco Central
-6.3 3.1
Fontes: Elaborado pelo autor com base no FMI e no BCRA.
Comércio chinês e transformação industrial
O aumento do investimento chinês tem um preço. Desde o início dos anos 2000, a China ultrapassou os parceiros econômicos tradicionais da Argentina, incluindo os Estados Unidos e a Europa. Atualmente, a China é o segundo maior parceiro comercial da Argentina, depois do Brasil. Normalmente, o comércio chinês representa de 8% a 10% das exportações argentinas. No entanto, a balança comercial da Argentina tem apresentado déficits crescentes, principalmente com a China e os Estados Unidos.
Figura 3: Balança comercial da Argentina com os EUA e a China
Enquanto a China escapou das políticas de “terapia de choque”,9 a Argentina sofreu as consequências das ondas neoliberais recorrentes, o desenvolvimento industrial nos países passou por trajetórias bifurcadas.10 Isso levou a uma mudança significativa na matriz produtiva, pois a Argentina passou por uma desindustrialização graças ao aumento da demanda por matérias-primas e recursos naturais.11
Figura 4: Porcentagem da participação da indústria no PIB da Argentina e da China.
Fontes: Elaborado pelo autor com base no Banco Mundial.
O aumento do comércio com a China apenas intensificou a mudança. A soja é a principal exportação da Argentina para o país, um terço do total. Atender à demanda chinesa por soja, por sua vez, transformou completamente o cenário econômico argentino.12 As Figuras 5 e 6 ilustram o profundo desequilíbrio na diversidade de exportações e importações entre os dois países.
Figura 5: Exportações da Argentina para a China
Fonte: OEC, MIT (2023)
Figura 6: Importações da Argentina da China
Fonte: OEC, MIT (2023)
Restrições estruturais
Milei não é o primeiro líder argentino a resistir aos crescentes laços econômicos com a China. Desde 2015, o governo Macri tem buscado reduzir a cooperação e enfatizar uma aliança geopolítica com os Estados Unidos. Mas, também nesse caso, as realidades econômicas forçaram o governo a reverter o curso. Durante os primeiros sete meses do governo de Mauricio Macri, a China reduziu as importações de soja em 30% e as importações de óleo de soja em 97%. Durante a reunião do G20 de 2016 na China, Macri conseguiu restaurar o comércio de soja. Como os projetos financiados pela China geralmente incluem uma cláusula de “inadimplência cruzada” que garante a interrupção de todos os projetos se um deles for interrompido, as repercussões de um recuo são enormes.
A orientação de Milei em relação à China, portanto, não é novidade. Apesar da relação econômica com a China estar cada vez mais sólida nos últimos anos, a Argentina continua fiel ao seu alinhamento com o Ocidente. Mas, assim como os governos anteriores, Milei terá de lidar com a composição mutável da economia global: o pagamento da dívida da Argentina com o FMI depende da continuidade das exportações para a China.
O fracasso de Milei em encontrar novos financiamentos dos credores ocidentais pode obrigar seu governo a aceitar a diplomacia econômica chinesa, levando a uma situação semelhante à do governo de Bolsonaro no Brasil.13 Isso pode resultar em uma dependência econômica reforçada das mãos chinesas. No entanto, enquanto o Brasil está capitalizando as relações chinesas com um importante superávit comercial, centros de inovação e fundos do Novo Banco de Desenvolvimento, a Argentina irá à China como um “devedor desesperado”. A China está pressionando Milei para confirmar que seu governo manterá o interesse chinês na Argentina.
O caso da Argentina, portanto, traz à tona duas duras realidades. A primeira é que o financiamento e o investimento chineses no Sul Global atendem a uma necessidade estrutural e não a uma escolha política. A segunda é que, embora o surgimento de superpotências concorrentes normalmente abra oportunidades para os países do Sul Global, ele também pode desencadear uma espiral descendente. Como sempre acontece, a Argentina é uma exceção, presa em mudanças pendulares sem uma estratégia internacional clara.
Esse artigo foi traduzido do inglês por André Lucena.
Em março deste ano, na medida em que a guerra da Rússia na Ucrânia se intensificava, o Ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, fez uma viagem a Nova Delhi para falar com seu homólogo indiano, S. Jaishankar. “Se a China e a Índia falassem em uníssono, o mundo inteiro escutaria”, argumentou Wang. “Se a China e a Índia se unissem, o mundo inteiro prestaria atenção.” Rapidamente, as balanças geopolíticas começaram a se inclinar a favor da Índia.
Em abril, a Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, fez sua primeira viagem a Delhi, onde estabeleceu as bases para o trabalho que foi desenvolvido ao longo de várias semanas de intensas negociações entre a UE e a Índia, pautado por uma ampla agenda que abrangia desde a defesa até a indústria verde.
No mês seguinte, num giro de três dias entre Alemanha, Dinamarca e França, o Primeiro-Ministro Narendra Modi obteve concessões que os formuladores de políticas indianos almejavam há mais de duas décadas, incluindo investimentos em energia verde, transferências tecnológicas e acordos militares, dando vida a uma moribunda parceria estratégica UE-Índia.
Em Berlim, o Chanceler Olaf Scholz anunciou uma parceria verde de €10 bilhões para ajudar a Índia a alcançar suas metas climáticas até 2030, além de transferências de alta tecnologia. No dia seguinte, em Copenhague, os países nórdicos assinaram acordos de energia eólica e solar, juntamente com investimentos em transporte marítimo verde e cidades verdes. Em Paris, Macron assinou acordos para investir nos centros de hidrogênio verde da Índia, além de aumentar as vendas de aeronaves e navios militares franceses; por sua vez, a Électricité de France confirmou um acordo, que estava pendente há tempos, para construir seis reatores nucleares EPR-1650 em Jaitapur. Isso se seguiu ao monumental acordo de investimento de $42 bilhões da Índia com o Japão para veículos elétricos (VEs), hidrogênio/amônia verde e transição da indústria pesada.
O andamento dessas concessões rápidas não é acidental. O divórcio entre China, Rússia e o Ocidente está proporcionando a Modi uma oportunidade de ouro para negociar uma nova ordem geopolítica. Enquanto o mundo se divide em novos blocos da Guerra Fria – que se parecem muito com os antigos blocos da Guerra Fria – a antiga grande estratégia da Índia de não alinhamento está ressurgindo. E, desta vez, o surgimento da China garante que o novo bloco contra-hegemônico desfrutará de recursos consideravelmente maiores do que os antigos poderes comunistas jamais tiveram.
Essa confederação fortalecida se estende além do subcontinente. Os últimos trinta anos de crescimento da Índia foram obtidos em uma era de primazia global dos EUA. Juntamente com outras nações em desenvolvimento com interesses independentes dos EUA, hoje, uma Índia muito mais rica tem o poder para desafiar a face coercitiva da hegemonia americana. Brasil e Indonésia também estão aproveitando sua nova influência. Nem os Estados Unidos nem a Europa devem subestimar as elites pós-coloniais em seus esforços renovados para traçar um curso independente.
O atrito com o Ocidente é inevitável. Mas os diplomatas no mundo em desenvolvimento estão dispostos a pagar para evitar um confronto custoso e arriscado com o eixo sino-russo. A resposta dos países em desenvolvimento à pergunta do Ocidente, “Você quer conter a China conosco?” provavelmente é “Sim”. Mas a resposta à pergunta, “Você quer conter a China e a Rússia conosco?”, provavelmente, é “Não”.
Desde 11 de setembro, o Departamento do Tesouro dos EUA, a Agência de Segurança Nacional e o Departamento de Comércio desenvolveram um panóptico sobre as principais redes de globalização. O Office of Foreign Asset Control do Tesouro e o sistema de pagamentos SWIFT monitorizaram os canais financeiros; a internet de vigilância do Vale do Silício, revelada por Edward Snowden, forneceu uma visão do fluxo de informações; e a lista de controle de exportações de tecnologias deu um mapa das cadeias de abastecimento. Pontos críticos foram localizados e operados nos estados industrializados avançados do G7. Enquanto isso, os EUA tornaram-se mais dispostos a usar o sistema do dólar contra encrenqueiros. O sinal para os países em desenvolvimento era claro: se ameaçados, os EUA vão exercer seu controle sobre as tecnologias que sustentam o crescimento econômico e a superioridade militar.
O domínio do G7 sobre tecnologias-chave permanece como fonte de seu poder principal, como demonstrado pelo desenho de suas sanções de guerra econômica contra a Rússia após sua mais recente invasão da Ucrânia. Sanções aos ativos do banco central da Rússia e o corte de acesso ao sistema SWIFT sinalizaram guerra financeira. Em seguida, uma cortina de ferro tecnológica caiu, bloqueando as exportações de alta tecnologia para a economia russa, bem como partes importantes de aviões, enquanto o G7 buscou bloquear o fornecimento de chips de silício (um componente-chave de hardware militar) da Coreia do Sul e Taiwan. Em outubro, os EUA ampliaram seu cerco à China, impondo restrições ao controle de exportações sobre chips.
Países como China, Índia, Indonésia, Brasil, África do Sul, México, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos se recusaram a sacrificar seus interesses nacionais para punir a Rússia. Mais importante, eles acreditam que seu poder de barganha na nova Guerra Fria poderá resultar em acordos mais vantajosos de comércio, tecnologia e armas do Ocidente. Apenas esses oito países representarão três quartos da população mundial e 60% da economia global até 2030. Eles têm aspirações de domínio regional e acreditam que o não alinhamento se presta melhor aos seus interesses.
Não é de surpreender, portanto, que esses países estejam adotando uma postura de não-alinhamento para garantir as mesmas tecnologias-chave – caças, tecnologia verde, chips, submarinos, armas nucleares, farmacêuticos avançados, redes móveis 5G – que poderiam impulsionar seu crescimento. O mapa dos países que permaneceram neutros nas sanções à Rússia não é um protesto idealista por justiça global, mas sim uma jogada de segurança prática. Antes de aderir ao novo regime financeiro-tecnológico-militar do Ocidente, esses países pretendem extrair concessões máximas. Eles também estão apostando que o Ocidente vai tolerar a demora deles nas sanções à Rússia e se absterá de impor sanções secundárias (sanções por violar sanções) a eles. Ameaças de saída, como qualquer negociador sabe, conferem poder.
O que exatamente querem os países que flertam com um novo não alinhamento?
1. Tecnologias essenciais para impulsionar o crescimento futuro;
2. Hardware militar avançado para segurança aprimorada;
3. A vantagem nas negociações comerciais com a Europa, os EUA e o novo bloco Rússia-China;
4. Commodities essenciais, a exemplo de alimentos, energia, metais e fertilizantes do novo bloco Rússia-China;
O Movimento Não Alinhado (independência do colonialismo, sem estar formalmente alinhado com ou contra nenhum grande bloco de poder, seja do Leste ou do Oeste) teve início durante a Guerra Fria na conferência de Bandung, em 1955, na Indonésia, com 29 países. Foi institucionalizado em 1961, sobreviveu ao período bipolar e caiu em irrelevância após 1991. Atualmente, o MNA conta com 120 membros. Três grandes países – China, Brasil e México – são observadores. Fonte: Non-Aligned Movement Disarmament Database
A Reliance, conglomerado indiano de propriedade do bilionário apoiador de Modi, Mukesh Ambani, encapsula a relação dos países em desenvolvimento com o G7. A refinaria Jamnagar de Ambani gera bilhões importando petróleo bruto russo e exportando diesel e gasolina para o Ocidente. Mesmo desrespeitando as sanções ocidentais, continua a receber transferências de tecnologia verde do Ocidente. Investiu mais de US$ 60 bilhões de seu próprio caixa e US$ 10 bilhões em parcerias e aquisições de eletrolisadores para fabricação de hidrogênio (de uma empresa dinamarquesa), pastilhas de silício fotovoltaico (de uma empresa alemã), painéis solares (de uma empresa norueguesa), baterias em escala de rede (de uma empresa americana) e baterias de fosfato de ferro (de uma empresa holandesa).
A gestão dessas parcerias estrangeiras pela Índia vai depender de Dubai. O líder dos Emirados Árabes Unidos, Mohammad bin Zayed, posicionou o Reino do Golfo como um Club Med para oligarcas e bancos comerciais evitarem sanções ocidentais. Os petro-estados do Golfo devem ganhar um adicional de US$ 1,3 trilhão em exportações de petróleo (dólares) nos próximos quatro anos. Dubai permite que países não alinhados evitem sanções, utilizando pagamentos de commodities liquidados em yuan, rúpias e rublos para contornar os dólares. A política do Golfo Pérsico de Biden está se adaptando, com conversas sobre garantias de segurança para os Emirados Árabes Unidos e uma nova parceria com os EUA para um acordo de financiamento de energia limpa de US$ 100 bilhões para países em desenvolvimento. Enquanto isso, os fundos soberanos do Golfo estão investindo na transição energética em toda a Eurásia. É a antiga rota do comércio de açúcar, especiarias e algodão entre a Índia, Arábia e Europa de volta com força.
Sob a presidência de Joko Widodo, a Indonésia também está tomando a iniciativa de assumir o controle de seu abundante suprimento de níquel e cobre – essenciais para a transição energética – e incentivando investimentos em instalações de processamento. Se o sonho de se tornar um eletroestado é novo, os meios são antigos. A Indonésia está copiando os sucessos do estado desenvolvimentista dos Tigres Asiáticos, bem como as iniciativas de nacionalização dos países da OPEP na década de 1970. Diante dos gritos de indignação da Comissão Europeia na Organização Mundial do Comércio, Jokowi proibiu as exportações de níquel, forçou empresas internacionais a refinar e processar o metal domesticamente e buscou transferir tecnologia para empresas estatais.
A Indonésia tem as maiores reservas de níquel do mundo, com a maioria controlada por sua empresa estatal de mineração, a MIND ID. Após a proibição das exportações de níquel por Jokowi, empresas chinesas concordaram em estabelecer joint ventures na Indonésia, juntamente com a transferência da tecnologia crítica de lixiviação ácida sob alta pressão (HPAL), necessária para produzir níquel de grau de bateria. Enquanto a Volkswagen da Alemanha, a Vale do Brasil e a Ford e a Tesla dos EUA procuravam, inicialmente, garantir níquel não processado do país, a Indonésia insistiu em abocanhar mais da cadeia de valor, criando um campeão nacional na produção de veículos elétricos, a Indonesia Battery Corporation, que firmou parcerias com a CATL da China e a LG da Coreia do Sul para obter a tecnologia crítica HPAL para o níquel de grau de bateria.
Os próximos alvos de Jokowi para o tratamento de “proibir exportações e nacionalizar” são estanho (a Indonésia é o segundo maior produtor do mundo, e o metal é usado como solda para fazer conexões elétricas), alumínio (a Indonésia é o quinto maior produtor do mundo, e o metal é usado em eletricidade e carros) e cobre (usado em praticamente tudo o que é elétrico).
Entretanto, essa independência política permanece limitada diante das sanções americanas. Após os EUA ameaçarem com guerra econômica qualquer comprador de armas russas, a Indonésia cancelou sua compra planejada de caças Sukhoi-35 da Rússia, apesar das ofertas russas de um esquema de contorno do dólar com óleo de palma em troca de caças. Em vez disso, a Indonésia ampliou enormemente os gastos com defesa para comprar trinta e seis F-15 dos EUA e quarenta e dois Rafales da França, junto com dois submarinos Scorpene da França (este último um calmante após a França perder a venda de submarinos a diesel para a Austrália), a um custo total de US$ 22 bilhões. Quando a Rússia enviou dois sistemas de mísseis antiaéreos S-400 para a Índia, em 2021, o fato provocou uma reação furiosa dos EUA e ameaças de sanções à Índia pelo acordo. Os apelos por sanções construtivas e não coercitivas permanecem sem resposta.
O presidente eleito do Brasil, Lula, apoiado pelo Partido dos Trabalhadores (PT) de esquerda, sindicatos, grupos de direitos sociais, raciais e de gênero, mantém um amplo compromisso político com sustentabilidade e multilateralismo.
Surpreendentemente, dada a aproximação da sua plataforma política com os EUA, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro, que está de saída do posto, escolheu a neutralidade na guerra. Os interesses materiais tornam essa escolha óbvia – as exportações brasileiras de soja, milho, açúcar e carnedependem fortemente de fertilizantes russos, e Bolsonaro tinha um enorme interesse em preservar essas relações. Além disso, o superávit comercial do Brasil com a China é maior do que todas as suas exportações para os EUA. Mas a corrente ideológica vai mais fundo.
Sob Luiz Inácio Lula da Silva, o Brasil aprofundou relações não apenas com os BRICS e outros governos da Onda Rosa, mas também com os EUA. Em 2011, o ministro das Relações Exteriores afirmou que o Brasil tinha mais embaixadas na África do que a Grã-Bretanha. Essa disposição para fazer amigos tanto no Pacífico quanto no Atlântico Norte deu ao Brasil uma maior margem de manobra, como quando quebrou patentes de medicamentos para o HIV/AIDS em favor de genéricos indianos.
A facção pró-mercado de Bolsonaro rompeu com essa tendência multilateralista, posicionando-se contra Índia, África do Sul e China quando esse bloco exigiu vacinas contra a Covid-19 sem as barreiras de propriedade intelectual na Organização Mundial do Comércio. Também se juntou ao G7 na política de livre comércio agrícola e se absteve de lutas a respeito da propriedade intelectual. No entanto, os melhores esforços da direita brasileira para suprimir o protecionismo não foram suficientes para superar a longa aversão do país a esquemas coordenados pelo G7; o Brasil ainda escolheu a neutralidade nas sanções russas. As elites em Brasília prefeririam manter suas opções abertas e seus compromissos suaves.
O crescimento industrial verde exige algumas escolhas difíceis. Olhando para o futuro, o Brasil precisará dar prioridade aos produtores locais ou aos aliados externos, ao decidir se desenvolverá carros flex-fuel alimentados por etanol de cana-de-açúcar cultivado localmente ou baterias provenientes da China, Indonésia e do vizinho triângulo de lítio. Em seu discurso de vitória, cercado por sindicalistas e camponeses sem terra, Lula prometeu seguir um não alinhamento estratégico: “Não aceitaremos uma nova Guerra Fria entre os Estados Unidos e a China. Teremos relações com todos.” O Brasil pode adiar a escolha entre Norte e Sul, mas a escolha entre um Brasil voltado para dentro ou voltado para fora parece inevitável.
Houve uma ironia especial quando a direita capturou o Brasil. Sob Bolsonaro, o país talvez tenha sido o mais cooperativo com a ordem liderada pelo G7 entre os países do BRICS. Mas Lula representa a melhor chance do mundo em desenvolvimento de liderar um movimento global de não alinhamento. Enquanto o antigo movimento não alinhado era ancorado por imperativos morais – decolonização, antirracismo, desarmamento nuclear – a versão incipiente carece de um programa social e ético positivo. Em vez disso, ela decorre da fria lógica comercial e de segurança do desenvolvimento. Caberá a esse ex-metalúrgico sindicalista forjar uma nova coalizão com base em valores compartilhados.
Os países em desenvolvimento usarão as condições geoeconômicas violentamente mutáveis desta década para construir sobre as bases dos antigos modelos de crescimento, incluindo política industrial e capitalismo de Estado desenvolvimentista. É de se esperar que países como Índia e Indonésia continuem impondo condições em sua cooperação cada vez mais cobiçada e ao acesso aos mercados consumidores em crescimento em acordos de infraestrutura pesada.
Se esta for a tendência geral, haverá enormes variações nas estratégias. O programa de desenvolvimento do Brasil por meio de políticas sociais, incluindo os benefícios em dinheiro do Bolsa Família, pode ser totalmente realizado com o retorno de Lula ao poder. Enquanto isso, Indonésia e Índia – que detêm a presidência que se encerra e a que se inicia do G20 – têm favorecido políticas centradas na expansão de eletricidade, estradas e portos, que podem ignorar os direitos humanos e realizar acordos em favor de agentes poderosos. Na versão extrema, é preciso considerar o modelo de Gujarat, que formou a base das campanhas eleitorais agressivas de Modi.
Os novos países não alinhados jogam as potências do G7 umas contra as outras. Os mais expostos a esse território mutante de relações econômicas e de segurança são Alemanha, Coreia e Japão, cujas empresas industriais temem a perda de seus mercados de exportação. Até agora, a Alemanha está se distanciando dos que promovem a desvinculação em Washington. Em sua recente visita à China, o chanceler Scholz, acompanhado pelos CEOs da BASF e da Volkswagen, disse: “Novos centros de poder estão surgindo em um mundo multipolar, e pretendemos estabelecer e expandir parcerias com todos eles”.
Mesmo enquanto os países não alinhados negociam dentro do novo regime de sanções e encontram maneiras de usá-lo a seu favor, não devemos perder de vista o impacto devastador das sanções do G7, um instrumento poderoso que desmantelou cadeias de suprimentos e criou pressões inflacionárias. Quando elites de mercados emergentes conseguem negociar essas condições a seu favor, é impressionante. Entretanto, mesmo os acordos comerciais mais criativos estabelecidos nos termos do G7 são amortecedores insuficientes contra a volatilidade dos preços de alimentos e energia, desencadeada por mercados de commodities desregulados administrados por Londres e Chicago. O caos climático em todos os continentes, entretanto, agrava essas tensões, devastando as já precárias vidas de muitos. Mais uma razão, então, para o G7 tirar uma página do livro dos BRICS e coordenarinvestimentos em infraestrutura sustentável a longo prazo.
Esse ensaio foi traduzido do inglês por André Lucena.