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  1. Trânsitos turbulentos

    Comentários desativados em Trânsitos turbulentos

    “A China está operando o Canal do Panamá. Não o demos para a China, demos para o Panamá e vamos retomá-lo”, anunciou o presidente dos EUA, Donald Trump, em seu segundo discurso de posse. Desde que retornou ao cargo, os repetidos votos de “retomar” o canal surgiram como parte de um esforço mais amplo de Trump para retornar ao apogeu do expansionismo americano, durante o qual o Panamá serviu como um importante posto avançado neocolonial. Atualmente, 5% de todo o comércio global passa pelo Canal do Panamá, um nó crucial em uma rede de 144 rotas internacionais e 1.700 portos em todo o mundo. Mais de 40% do tráfego de contêineres dos EUA depende da hidrovia, que foi controlada e operada pelos EUA desde a conclusão de sua construção em 1914 até 31 de dezembro de 1999, quando entrou em vigor o Tratado Torrijos-Carter de 1977, que transferiu o controle do Canal para as autoridades panamenhas. 

    As ameaças de Trump intensificaram a instabilidade política em curso no istmo da América Central. Após meses de protestos em massa provocados por escândalos de corrupção e crescente desigualdade, o último ciclo eleitoral do Panamá culminou em maio de 2024 com a vitória de José Raúl Mulino, que concorreu à presidência depois que seu companheiro de chapa, o ex-presidente Ricardo Martinelli, foi condenado por lavagem de dinheiro. Durante o mandato de Martinelli, de 2009 a 2014, o PIB cresceu a uma taxa média anual de 8% – uma das mais altas da história recente, atribuída em grande parte ao boom da construção relacionado aos projetos de expansão do canal.

    As lembranças desse crescimento pareceram prevalecer na mente dos eleitores panamenhos, que apoiaram a candidatura de Martinelli à reeleição, apesar de suas questões judiciais. No entanto, o caminho a seguir ainda não está claro. Embora Mulino tenha prometido “mais dinheiro no teu bolso”,1 ele delineou poucas políticas concretas para atingir esse objetivo. Depois de assumir o cargo há oito meses, Mulino enfrenta uma série de desafios imensos. Seu governo tem a tarefa de revitalizar uma das economias mais afetadas pela pandemia, assolada por alto desemprego e um déficit fiscal, além do mais recente dilema da pressão dos EUA sobre o canal e a implementação da agenda de deportação em massa de Trump. 

    Quando entregaram o controle do Canal aos panamenhos no início deste século, as autoridades dos EUA alertaram que o desempenho econômico da hidrovia cairia. Pelo contrário, o Panamá tem apresentado taxas históricas de crescimento econômico, ao mesmo tempo em que sofre com o aumento da desigualdade regional e de renda como resultado. Atualmente, 86% do PIB do país está concentrado nas três províncias que circundam o Canal: Panamá, Panamá Oeste e Colón. A importância econômica do Canal nas últimas duas décadas solidificou o consenso orientado para o trânsito do modelo de desenvolvimento do Panamá, geralmente chamado pelos estudiosos de transitismo. Esse consenso descreve uma economia de enclave orientada para as necessidades do comércio global e baseada em uma transgressão da soberania territorial, dada a construção e o gerenciamento do canal pelos EUA.2 O transitismo há muito se estendeu além do Canal em si para incluir ativos como o sistema portuário, hubs para transporte aéreo, registro de bandeira de conveniência, regimes de investimento com impostos baixos e serviços bancários. Apesar do controle nacional, esse modelo continuou a produzir uma estrutura econômica dupla, na qual as atividades produtivas e de alta renda localizadas ao redor da zona de influência do canal coexistem com uma zona rural agrária caracterizada por baixa produtividade e condições de trabalho abaixo da média.

    O Panamá está localizado no centro do continente americano, na faixa de terra mais estreita entre os oceanos Atlântico e Pacífico e, como tal, o país tem uma “vocação histórica” de facilitar a circulação de mercadorias e recursos naturais para as necessidades de acumulação de capital. A luta pelo controle nacional dos ativos orientados para o trânsito moldou o desenvolvimento do Panamá ao longo dos séculos XX e XXI, especialmente devido à mudança de posição das elites políticas e econômicas nacionais em relação aos EUA. Por meio do modelo transitista, podemos entender o istmo panamenho como parte de um sistema mundial que, desde a era colonial, subjugou as colônias aos interesses das metrópoles imperiais.3 Hoje, enquanto o Panamá enfrenta mais um desafio à sua soberania, as lacunas desse modelo de desenvolvimento – vulnerável aos fluxos e refluxos do comércio global e da disputa geopolítica – estão à mostra.

    Formas do enclave

    Diferentemente de outros territórios periféricos do império espanhol, a vocação do Panamá para o trânsito teve como consequência o desenvolvimento de uma classe comerciante dedicada à gestão do tráfego de mercadorias. Essa vocação se articulou durante o século XIX mediante a construção da ferrovia transcontinental. 

    Com a descoberta de jazidas de ouro na Baía de São Francisco em 1849, teve início a construção de uma rede ferroviária transcontinental, conectando a costa do Caribe ao Pacífico. A construção da ferrovia se estendeu até o ano de 1855 e representou um ponto-chave para o início da circulação do dólar no Panamá, dado que os passageiros e trabalhadores que tinham relação com a rota faziam suas transações com a moeda norte-americana. Esse afluxo de dólares incentivou atividades de serviços destinadas principalmente aos usuários da ferrovia, o que acabaria por normalizar o uso da divisa estadunidense no território nacional. A longo prazo, isso representou a perda da soberania sobre a política monetária, outro traço fundamental do transitismo panamenho.

    A construção da ferrovia pressupôs uma tentativa dos Estados Unidos de frear o investimento de potências como a Inglaterra no continente americano enquanto desenvolvia sua indústria doméstica, especialmente no norte. Em outras palavras, desde o início, o desenvolvimento histórico da vocação transitista panamenha esteve intimamente ligado a rivalidades imperialistas no sistema mundial. 

    Segundo essa perspectiva, a condição de transitismo acompanhou as transformações do sistema mundial: primeiro, tomou a forma de um sistema de feiras celebradas periodicamente durante os séculos XVI e XVII na cidade de Panamá (atualmente Panamá Velho); em seguida, com a febre do ouro da Califórnia, foi moldada pela ferrovia transcontinental e, por fim, se estruturou pela via interoceânica, com a construção do Canal do Panamá pelo governo dos EUA.

    O Panamá foi fundado como nação no final de 1903. Inicialmente, os EUA buscaram firmar um tratado com a Colômbia por meio de um pagamento pela concessão das terras localizadas na zona central do istmo e, com isso, expandir o tráfego transístmico. Uma vez que o acordo não se concretizou, as elites comerciantes panamenhas, que não compartilhavam do mesmo interesse dos latifundiários da Colômbia, colaboraram com os EUA para separar o território do istmo e celebrar um tratado que cedeu os direitos territoriais da Zona do Canal do Panamá aos EUA. Assim, a classe dominante panamenha foi liderada por uma facção comerciante que firmou alianças com a pequena burguesia urbana e os grandes latifundiários, impulsionando as transformações do modelo transitista. 

    A fundação da nação panamenha formalizou a aliança desigual entre suas classes dominantes e os intetesses dos EUA. O Tratado de Hay-Bunau Varilla de 1903 entregou aos EUA a Zona do Canal do Panamá perpetuamente, convertendo o país em um protetorado neocolonial de fato.4 Por um pagamento único de US$10 milhões, concedeu-se aos EUA uma área de aproximadamente 30 quilômetros no centro do país, a Zona do Canal, excluindo as cidades de Panamá e de Colón. Todavia, mais da metade desse pagamento inicial foi feito mediante um investimento do JP Morgan no mercado imobiliário de Nova York. Também foram concedidas as terras que os EUA consideraram necessárias para a manutenção e a segurança do Canal. O Panamá renunciou à capacidade de arrecadar impostos sobre a Zona do Canal, de companhias subsidiárias e seus empregados. Em troca, os EUA consentiram em pagar uma renda vitalícia de US$250 mil a partir de 1913.

    Depois de firmado o tratado de Hay-Bunau Varilla, foi concretizado o convênio monetário de 1904, estabelecendo o dólar estadunidense como moeda oficial do Panamá. Pode ser que tenha havido pressão política por parte dos EUA para concretizar o acordo, pois a circulação do dólar reduzia seus custos de transação. Todavia, não há registros de um debate em torno dessa decisão, o que pode ser reflexo do contexto de hiperinflação observado na Colômbia entre 1899 e 1902, que poderia ter levado a nova República a considerar que a criação de um banco central arriscaria incentivar a espiral inflacionária da qual implicitamente estava escapando.5

    Em 1904, a Constituição da nova República sancionou o papel intervencionista do governo estadunidense: outorgou-se a ele a capacidade de intervir em assuntos locais e de restabelecer a ordem constitucional, caso necessário. Ao mesmo tempo, com a independência, as classes dominantes panamenhas asseguraram seu acesso às alfândegas antes controladas pelo governo colombiano, além das receitas advindas do uso do Canal. Assim, o marco fundacional da nação e a rede de comércio e serviços estabelecida pelos EUA em torno da Zona do Canal basicamente reduziram à propriedade imobiliária e à gestão das finanças públicas a capacidade das classes dominantes de capitalizar a via interoceânica.

    O Canal foi finalizado em 1914. Suas operações cimentaram a dependência das classes dominantes panamenhas em relação ao desempenho do mercado mundial e aos interesses estadunidenses. Por exemplo, as receitas fiscais passaram de US$6 milhões entre 1918 e 1920 para US$9 milhões entre 1926 e 1932. Em torno de 9% adveio da renda do Canal e dos investimentos no mercado imobiliário de Nova York.6

    A aliança entre as diferentes facções da classe dominante sofreu rupturas constantes ao longo da primeira metade do século XX. Como em outros casos latino-americanos, em termos políticos, essas alianças se basearam em regimes clientelistas em torno de figuras caudilhescas. Esse período de conflito cíclico pressupôs rupturas nacionalistas em momentos de crise econômica como a Grande Depressão, que resultaram na diversificação da capacidade limitada das classes dominantes de capitalizar a via interoceânica. Nesse contexto, por exemplo, ocorreram as renegociações das políticas protecionistas da Zona do Canal relacionadas ao comércio entre entidades territoriais, à arrecadação do imposto sobre a renda na Zona e ao cultivo das terras de transnacionais por parte das classes locais. Enquanto isso, em momentos de bonança, como aquele iniciado pela Segunda Guerra Mundial, logrou-se um desenvolvimento do mercado interno, ao mesmo tempo em que se intensificaram as demandas anti-imperialistas contra a presença estadunidense. Foi durante a bonança da Segunda Guerra que se consolidou também o capital produtivo local, em particular no setor da construção. Em 1945, por exemplo, a Zona do Canal representou 21% do PIB nacional.7

    Todavia, o período subsequente ao pós-guerra deu lugar a uma recessão em razão da diminuição do trânsito pelo Canal decorrente não só da interrupção das operações militares, mas também das novas dimensões dos navios comerciais. O Canal precisava ser ampliado para comportar novos fluxos. Nesse contexto, também foi inaugurada em 1948 a Zona Franca de Colón, em substituição às rendas que os latifundiários recebiam por arrendar suas terras para serviços militares. O impacto econômico imediato, no entanto, foi limitado: em 1950, a Zona Franca representou, junto com a Zona do Canal, apenas 8% do PIB nacional. 

    Por outro lado, mediante o Tratado Remon-Eisenhower de 1955, a renda do Canal foi renegociada. A partir daí, intensificou-se a substituição de importações e se constituiu um mercado interno. Em 1960, a produção interna já abastecia 86,9% do consumo de alimentos em geral. No decorrer da década, também se acelerou a formação de capital: o investimento total cresceu a um ritmo de 13,6%, e cerca de 25% do PIB foi destinado à formação de capital. Entre 1960 e 1965, duplicou-se o investimento em maquinaria. No final da década, o nível de gastos havia crescido em ritmo superior a 20% anuais.8 Paradoxalmente, a aliança entre as classes dominantes se manteve sobretudo pela presença estadunidense na Zona, que também justificou a intervenção militar ao longo do século.

    Golpe financeiro

    O modelo de desenvolvimento guiado pela via interoceânica e pelo trânsito de mercadorias embasou as disputas em torno da relação com os EUA e pelo controle nacional da Zona do Canal. Essa situação marcou a turbulenta história política do Panamá durante a segunda metade do século XX. Com as eleições de 1968 e a vitória da figura caudilhesca de Arnulfo Arias, a Guarda Nacional liderou um golpe de Estado que catalisou a transformação do modelo transitista. Sob o comando de Omar Torrijos Herrera, o sistema financeiro global se tornou contundente para a restruturação do modelo de desenvolvimento. O mandato de Torrijos redigiu e implementou uma nova constituição (vigente até o presente), mas o mais crucial para a gestão do transitismo foi a criação do Centro Bancário Internacional em 1970 e a assinatura do Tratado Torrijos-Carter em 7 de setembro de 1977. 

    Por um lado, o Centro Bancário Internacional surgiu a partir da aprovação do Bank Holding Act [Lei das Holdings Bancárias] pelo Congresso dos Estados Unidos em 1970. A lei permitiu a expansão de bancos estadunidenses para mercados internacionais. Naquele momento, o Estado norte-americano buscou competir com os mercados de eurodivisas que haviam surgido no final da Segunda Guerra Mundial. Torrijos aprovou o Centro Bancário Internacional em 1970, seguindo recomendação do economista Arnold C. Harberger, conhecido como pai dos Chicago Boys. Dado que o Panamá carece de ferramentas de política monetária, o Centro Bancário Internacional permite que o dinheiro circulante seja fixado essencialmente através da exportação de serviços de um sistema bancário que reforça a dependência da economia nacional dos mercados internacionais. Assim, as matrizes dos bancos desempenharam a função de emprestadoras de última instância, garantindo a liquidez no mercado local e substituindo o papel do emissor.9

    O estímulo ao crescimento foi imediato, mas limitado: o PIB cresceu a uma taxa anual de 6,5% até 1973. Todavia, com a crise energética mundial dos anos de 1970 e suas repercussões, o PIB recuou 2% em 1974. Ao mesmo tempo, a deterioração econômica foi desigual: enquanto os setores da manufatura, da construção e do comércio declinaram, o setor bancário-financeiro cresceu 21% em 1973. Em resposta à recessão mundial, foi adotado o “Plano Nacional de Desenvolvimento 1976-1980”, que demarcou uma incorporação mais ativa do sistema financeiro global no modelo de desenvolvimento transitista. Essa transição na estrutura de dependência se vê mais claramente no crescimento do setor bancário: o Panamá passou de cinco bancos em 1960 para 122 em 1984, enquanto os aportes do setor ao PIB passaram de 48% em 1975 para 58% em 1980. Nesse cenário, a presença estadunidense em função do Canal já não era necessária: era possível exercer a mesma influência mediante o sistema financeiro global. Esse progresso representou um acordo entre as classes dominantes e os interesses imperiais que contribuiu para a consolidação de Torrijos no poder sem maiores ingerências. Além disso, a criação do Centro Bancário Internacional foi essencial para a gradual transnacionalização das economias latino-americanas no início do século XXI.10

    Por outro lado, o Tratado Torrijos-Carter acordou a devolução do Canal e suas operações ao governo nacional a partir da meia-noite do dia 31 de dezembro de 1999. A soberania do país sobre a Zona do Canal foi reconhecida e a Comissão do Canal do Panamá, uma corporação estadunidense, foi substituída pela Autoridade do Canal do Panamá, uma entidade jurídica autônoma. Terras e infraestruturas da Zona do Canal não consideradas estratégicas para a defesa militar (como a ferrovia e o sistema portuário) foram devolvidas e, por fim, o Panamá concordou com a cooperação militar e de defesa com os EUA para garantir a neutralidade do Canal e a segurança de suas operações, seja em tempos de guerra, seja em tempos de paz. 

    Com a morte repentina de Torrijos em um acidente aéreo em 1981, o militar e agente da CIA Manuel Antonio Noriega subiu ao poder e permaneceu como ditador de fato entre 1983 e 1989. Em 1988, o regime de Noriega foi acusado de narcotráfico pelos Estados Unidos, que impôs sanções econômicas ao Panamá precisamente no momento em que o país adotava uma política de abertura neoliberal.

    No contexto da iminente devolução do Canal, o governo norte-americano apostou nas sanções sobretudo como forma de acelerar que Noriega entregasse o poder.11 Os fundos que o Banco Nacional mantinha nos Estados Unidos foram cancelados, gerando uma crise de liquidez no país. Adicionalmente, as cotas de importação de produtos panamenhos foram suspensas, assim como os pagamentos provenientes da Comissão do Canal do Panamá, e empresas e cidadãos estadunidenses foram proibidos de realizar operações com o governo.12 A crise de liquidez acabaria por gerar a maior contração já experimentada pela economia panamenha até então, marcada por uma queda de 13,5% do PIB e uma taxa de desemprego de 16,3% em 1988.13

    Tendo como justificativa o Tratado de Neutralidade Permanente do Canal do Panamá, firmado junto com o Tratado Torrijos-Carter de 1977, os EUA deram fim ao mandato de Noriega por meio de uma invasão militar no dia 20 de dezembro de 1989. Batizada oficialmente de “Causa Justa”, a invasão produziu milhares de vítimas e desaparecidos não reconhecidos. Na capital, caiu uma bomba a cada dois minutos durante 14 horas, resultando em pelo menos 3 mil mortos e mais de 6 mil feridos.14 Esse fim brutal do regime de Noriega, paradoxalmente, marcou o início de um novo capítulo na história do modelo transitista: pela primeira vez, a gestão da via interoceânica se dava sob o mando do Panamá.

    Crescimento desigual no século XXI

    Segundo o acordado em 1977, o Panamá recuperou o controle do Canal no ano de 2000, incorporando em sua estrutura econômica o ativo mais relevante do modelo de desenvolvimento transitista. Ao passo que, ao longo do século XX, o modelo transitista se desenvolveu em conformidade com as lutas entre as classes dominantes e os EUA, a partir da nacionalização do Canal, as transformações do modelo foram pautadas pela gestão macroeconômica. A gestão nacional do Canal e a consolidação de outros ativos relevantes para o modelo transitista, como o sistema portuário, o hub de transporte aéreo, o embandeiramento de navios e os regimes de investimento de baixa tributação, cimentaram as bases do crescimento experimentado durante o século XXI, mas também aprofundaram as contradições econômicas e sociais.

    O Panamá apresentou altas taxas de crescimento econômico no contexto da ampliação da via interoceânica. Ao passo que, durante o século XX, as receitas provenientes do Canal tinham de ser renegociadas constantemente para que impactassem o desenvolvimento nacional e o crescimento econômico, agora, o Canal e as indústrias associadas a suas operações poderiam ter impactos diretos. Assim, a partir da nacionalização, o projeto de ampliação estimulou um boom da construção civil pública e privada, posicionando o país como uma das economias mais dinâmicas e atrativas da região.

    Todavia, o modelo de desenvolvimento não desafiou a dependência da economia doméstica em relação ao desempenho do mercado mundial: durante a bonança associada à ampliação do Canal, a China e os EUA representaram 80% do trânsito pela via interoceânica. A continuidade do transitismo, agora sob o mando nacional, reforçou uma condição política em que a estabilidade doméstica dependia das receitas tributárias arrecadadas em torno da zona de influência do Canal.15

    No nível setorial, as atividades que sustentaram o dinamismo da economia panamenha estavam estreitamente ligadas ao modelo de desenvolvimento transitista. Construção, intermediação financeira, comércio (especialmente na zona franca) e transporte e armazenamento e comunicações tiveram um desempenho muito mais favorável do que outras atividades tradicionais, como as do setor primário e da indústria. A composição e a evolução setorial da economia nacional, a despeito de ter gerado ganhos para um segmento da população, aprofundou a dualidade estrutural, dado que os setores que menos cresceram são aqueles que empregam a maior proporção de trabalhadores e auferem as menores rendas.

    As características do modelo de crescimento implementado no país também aprofundaram as desigualdades territoriais. Segundo estudos recentes, a disparidade territorial do Panamá em matéria de PIB per capita é a mais alta da região. As desigualdades são tão agudas que as províncias de Panamá e Colón possuem níveis de renda per capita similares aos de alguns países europeus, como Espanha e Portugal, em contraste com o baixo nível registrado no restante do país, como em Darién e Bocas del Toro, onde a renda per capita se assemelha à de países da África subsaariana.

    Ao contrário da experiência latino-americana, que registrou processos de convergência de produção, no Panamá, a disparidade na renda per capita territorial tendeu a aumentar. Essa situação é estreitamente vinculada a uma estrutura econômica nacional que exclui as províncias não situadas na zona de trânsito do Canal do processo de crescimento.16

    Antes das eleições de 2009, o Partido Panameñista e o Partido Revolucionário Democrático se alternaram no poder por quase 20 anos. Ainda que se tenha registrado avanços em matéria macroeconômica, os dividendos desses indicadores não foram suficientes para corrigir problemas estruturais do país. A crescente brecha de crescimento desigual representou, nesse contexto, uma oportunidade para a figura de Ricardo Martinelli, fundador do partido Cámbio Democrático. Martinelli direcionou o descontentamento da população contra as elites políticas “tradicionais”. Nas eleições de maio de 2009, logrou a vitória por um percentual histórico de mais de 60% dos votos.

    Durante o quinquênio de Martinelli, os indicadores macroeconômicos mostraram um impulso sem precedentes na história do país. O Panamá era frequentemente apontado como caso de sucesso por instituições multilaterais diversas. O PIB cresceu a uma taxa média anual de 8%, a mais alta observada em um quinquênio, e taxa de desemprego caiu para um mínimo histórico de 4,1%. Isso não implicou, no entanto, uma ruptura com a estrutura econômica transitista.

    O crescimento observado teve origem em vários fatores. Em primeiro lugar, a administração de Martinelli recebeu do governo anterior contas públicas extremamente sólidas. As contas fiscais haviam apresentado superávit entre 2006 e 2008, um feito excepcional em meio à recessão global. A relação dívida/PIB era de 40%, a mais baixa já entregue em uma transição, o que permitiu uma forte expansão do gasto público. 

    A gestão das finanças públicas foi pró-cíclica: o PIB crescia em ritmo considerável e o governo mantinha altos níveis de gastos. As contas fiscais foram deficitárias ao longo do mandato. Para cobrir o déficit, a dívida pública aumentou de forma sustentada até alcançar US$18,23 bilhões, ou 37% do PIB.17 Grande proporção das obras de infraestrutura realizadas foram contratadas sob a rubrica “chave na mão”, que consiste em abonar o projeto depois de iniciada a construção. Isso permite aos governos transferir a dívida correspondente para o futuro, diminuindo a pressão sobre as finanças do Estado durante seu mandato.18

    Nesse contexto, a construção civil se converteu em atividade-chave para estimular a economia, e o dinamismo do setor foi acompanhado de um boom de commodities impulsionado pela demanda chinesa e estadunidense.19 A partir do início da ampliação do Canal, em 2006, registrou-se um boom de construção de infraestrutura pública e privada. Para além da ampliação, foram realizadas obras como a primeira linha do Metrô, a ponte atlântica sobre o Canal, a Cidade da Saúde e a segunda e terceira fases da Cinta Costera, bem como a construção de rodovias. No setor privado, proliferou a construção de moradias, arranha-céus, centros comerciais e escritórios. A atividade do setor de construção cresceu 155% entre 2009 e 2014, o que equivale a um crescimento médio anual de 21% (cerca de três vezes o crescimento da economia em seu conjunto). Essa dinâmica fez com que seu aporte ao PIB passasse de 9,7% em 2009 a 17% em 2014, contribuindo com quase um terço do crescimento total do quinquênio.

    Os efeitos econômicos para o resto da população foram notáveis: as taxas de desemprego e de informalidade baixaram a níveis históricos, o acesso a crédito e financiamento para o consumo foi ampliado—o que implicou um maior endividamento familiar20—e programas de transferências de renda foram implementados.21 Apesar do incremento na renda da população mais vulnerável, a desigualdade na distribuição, medida pelo índice de Gini, permaneceu acima dos 50 pontos. O crescimento econômico registrado ao longo do mandato de Martinelli foi tão impressionante quanto desigual—o fosso social mostra que, mais uma vez, os problemas estruturais da economia panamenha não foram abordados.

    Mas, apesar da deterioração das contas públicas e, posteriormente, dos indícios de corrupção em obras de infraestrutura e programas sociais, o forte impulso da economia e a melhoria nas condições de vida da população notadas no governo de Martinelli prevalesceram no imaginário popular. As obras públicas e as transferências de renda respaldaram uma percepção geral de bonança econômica.

    O modelo no limite

    O declínio do período de bonança de 2009-2014 evidenciou os limites do modelo econômico panamenho. Ao término do mandato de Martinelli, as condições macroeconômicas globais se deterioraram, produto, entre outros fatores, da queda no preço das matérias-primas e do fim do superciclo de commodities, bem como da desaceleração do comércio mundial engendrada pelo conflito comercial entre China e Estados Unidos. O crescimento do PIB passou de 5,1% para 3,3% em 2019, a cifra mais baixa registrada desde 2009 (1,2%).

    No plano interno, a conclusão de grandes obras públicas e privadas de infraestrutura, a exemplo da própria ampliação do Canal, também contribuiu para uma desaceleração do crescimento. O reflexo se viu no nível do investimento, que crescia a uma taxa média de 14% entre 2009 e 2014 e caiu progressivamente até atingir 1,2% em 2019.

    O crescimento anual do setor da construção civil, que se manteve em dois dígitos entre 2011 e 2015, registrou um patamar de 0,7%, o mais baixo desde 2005. O comércio também enfrentou fraco dinamismo, causado tanto pela desaceleração do consumo doméstico quanto pelo menor desempenho das exportações da Zona Franca de Colón, provocado pelo recrudescimento da crise econômica da Venezuela, pelos conflitos tarifários com a Colômbia e pela queda no preço das matérias-primas.

    A atividade de transporte, armazenamento e comunicações, por outro lado, foi favorecida pela entrada do Canal ampliado em operação, o que atenuou, em alguma medida, a desaceleração generalizada dos demais setores econômicos. As contribuições da Autoridade do Canal do Panamá ao Tesouro Nacional também aumentaram consideravelmente a partir de 2017, alcançando os US$3,3 bilhões—63% a mais do que em 2016.

    Apesar do incremento nas contribuições do Canal ao Tesouro Nacional, o crescimento das despesas em ritmo superior ao das receitas e a manutenção das distorções no sistema tributário contribuiram para a progressiva deterioração das contas públicas, levando à necessidade de ajustes na lei de responsabilidade fiscal para flexibilizar o déficit. O desemprego escalou de 5,1% em 2015 para 7,1% em 2019 e a informalidade passou de 40% para 45%. Ao contexto de deterioração macroeconômica do país, somou-se o escândalo dos Panama Papers.22 Depois do escândalo, os fluxos de investimento estrangeiro foram caindo até alcançar 5,6% do PIB, a cifra mais baixa desde 2009.

    A perda de dinamismo econômico era previsível. Nenhum plano de desenvolvimento foi estruturado para repor as fontes de crescimento do país depois do boom da construção—que, por sua vez, preservando a característica concentração da atividade econômica do país em torno da via interoceânica, acumulou-se essencialmente na província de Panamá, reproduzindo as típicas assimetrias do transitismo.

    A pandemia de Covid-19 piorou a crise. A súbita paralisação do trânsito de mercadorias e de boa parte da atividade econômica gerou um choque sem precedentes no país, a ponto de o PIB se contrair em 17,7%, uma das quedas mais profundas registradas em nível global. As atividades de construção, comércio e transporte que historicamente sustentaram o crescimento panamenho representaram 77% da contração. 

    Como a atividade econômica se concentra na zona de influência do Canal, regiões do país não paralisadas pela pandemia não apresentaram alternativas produtivas. A taxa de desemprego chegou a 18,5%, a informalidade escalou para 52,8% e a taxa de participação passou de 66,5% para 63%, retrocedendo 11 anos em suas cifras. Além disso, a contração do emprego assalariado no setor privado foi tão grande que, até 2023, não havia conseguido se recuperar totalmente..23 O Panamá não apenas figurou entre os países de maior concentração econômica, mas também entre os que mais demoraram para alcançar os níveis pré-pandêmicos registrados em âmbito regional—além de ser o que levou mais tempo para retomar as classes escolares presenciais.

    A reabertura da economia foi seguida de choques externos, como os impactos sobre o preço do petróleo causados pelo conflito entre Rússia e Ucrânia. O aumento do custo do combustível detonou uma onda de protestos de massa, aos quais se somaram outras manifestações de insatisfação contra o alto custo da vida, a corrupção e a desigualdade. Além disso, a queda na arrecadação tributária no contexto da pandemia deteriorou as contas públicas em ritmo exorbitante: a relação dívida/PIB subiu para 56,4% em 2023, cifra equivalente a US$47 bilhões.

    As adversidades climáticas enfrentadas pelo Canal do Panamá também tiveram impacto econômico negativo. Como as eclusas dependem da chuva, a chegada do El Niño e a grave seca no território afetaram diretamente os reservatórios que proveem a água para as operações do Canal. As consequentes restrições ao trânsito de navios se estenderam até 2024. O menor volume de carga que passou pelo Canal também reduziu os aportes ao Tesouro Nacional: de acordo com dados do INEC, até junho de 2024, as receitas provenientes do pedágio haviam sofrido uma contração de 11,7%. 

    Durante o quinquênio 2019-2024, houve uma onda de protestos que durou quase um ano. Mas as manifestações que ocorreram nos meses de outubro e novembro de 2023 alcançaram níveis históricos. Em outubro de 2023, entrou em vigor um contrato público com a empresa Minera Panamá para a operação de uma mina de 13 mil hectares situada a 180 quilômetros da capital, dentro do Corredor Biológico Mesoamericano. A aprovação do contrato sem licitação gerou mobilizações populares que paralisaram o país por mais de um mês. 

    À deriva 

    Apesar das grandes mobilizações populares, a situação política do Panamá hoje representa mais continuidade do que uma ruptura. Os primeiros planos econômicos de Mulino reforçaram a dependência do transitismo, e uma alternativa viável a esse modelo ainda não se materializou.  A única proposta concreta de campanha de Mulino concentrou-se na construção do Trem Panamá-Chiriquí, que ofereceria um impulso econômico insustentável, semelhante ao boom de construção do governo anterior de Martinelli.

    O governo Mulino agora também precisa lidar com a presidência de Trump. Na semana passada, em meio ao “juramento” de Trump de recuperar o controle do canal, o recém-empossado Secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, reuniu-se com Mulino na Cidade do Panamá, uma visita que terminou com um acordo para que o Panamá receba cidadãos de países terceiros deportados dos EUA. Até o momento, quase 300 deportados, muitos de países asiáticos, foram levados de avião para o país, com cerca de um terço transferido para um acampamento militar na selva na região de Darien e o restante mantido em hotéis na capital. O fato de Mulino estar disposto a cumprir a severa e violenta agenda de deportação de Trump mostra a importância de manter a relação econômica e de segurança do Panamá com os EUA.

    Publicamente, Mulino respondeu às ameaças de Trump garantindo a neutralidade nas operações do canal e retornando às disposições dos Tratados Torrijos-Carter de 1977. Mas as negociações nos bastidores podem em breve revelar outros jogos de poder, com o Panamá potencialmente cedendo às pressões do Norte em questões como concessões portuárias, investimentos em infraestrutura, tarifas sobre navios americanos e uma presença militar americana revigorada na hidrovia. Um grupo cada vez maior de panamenhos na Internet já expressou seu apoio à devolução do controle do canal aos EUA, um sentimento que, sem dúvida, decorre da rígida desigualdade econômica produzida pelo modelo transitista. Para muitos no país, a questão permanece: o canal realmente contribui para o bem maior do país?

    No entanto, o consenso orientado para o trânsito continua a ditar a política econômica nacional. As declarações de Trump representam ameaças significativas ao caminho existente, mesmo quando a hegemonia dos EUA na América Latina enfrenta desafios crescentes da China. Em meio às queixas populares relativas às más condições de trabalho e aos custos de vida inacessíveis, a capacidade estatal de proteção social ainda depende de um modelo de desenvolvimento esgotado, marcado por uma estrutura econômica dupla e pela deterioração cíclica dos indicadores macroeconômicos e sociais. Mesmo que Mulino busque alguma forma de realinhamento geopolítico para restringir a influência dos EUA, suas tentativas de revitalizar o modelo transitista parecem ser mais uma aposta na dependência, deixando à deriva as demandas por mudanças significativas.

    Tradução: Nélio Schneider


  2. Ajuda externa segundo Wall Street

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    Costumamos ouvir que o novo governo Trump inaugurou a era do tecnofeudalismo. É só olhar para Elon Musk, pontificando no Salão Oval sobre a democracia do autodenominado “Departamento de Eficiência Governamental” (Department of Government Efficiency, DOGE), ao mesmo tempo em que ocupa, de forma antidemocrática, o sistema de pagamentos do Tesouro Americano. Por outro lado, como Adam Tooze recentemente diagnosticou, estaria o governo simplesmente usando o bullying como um modo de poder, destruindo as instituições sem qualquer critério ou planejamento?

    O desmonte da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) aponta para ambas as direções. Para os liberais americanos, a USAID representa um farol para os valores progressistas, instrumental para a concretização de investimentos públicos essenciais em direitos sociais, resiliência climática ou nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) no Sul Global. As muitas vozes que a defenderam da ofensiva do DOGE descreveram-na como uma força para o bem, a despeito do fato de que, ou seria precisamente porque, ela promove silenciosamente o soft power americano. Essa visão é compartilhada por muitos. Como disse Bernie Sanders, “Elon Musk, o cara mais rico do mundo, está perseguindo a USAID, que socorre as pessoas mais pobres do mundo”.

    Mas esse não foi um caso de destruição sem planejamento. No começo de fevereiro, uma reportagem da Bloomberg mostrou que o governo Trump planejava deslocar parte do financiamento da USAID para a Corporação Financeira de Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos (US International Development Finance Corp, DFC). Criada durante o primeiro mandato de Trump, a DFC emprega dinheiro público para alavancar ou mobilizar investimento privado externo, em parceria com investidores institucionais. Como resumido pela Bloomberg: “A nova abordagem implicaria a redução da assistência humanitária e um aumento do papel dos grupos de private equity, hedge funds e outros investidores em projetar poder econômico num momento em que os EUA competem com a China por influência e projetos estratégicos externos”.

    À primeira vista, parece ser a privatização da ajuda externa: um deslocamento da provisão pública para soluções de mercado. Mas o buraco é mais embaixo. O novo governo Trump está turbinando a pauta menos conhecida, mas cada vez mais dominante, dentro da USAID: “mobilizar o capital privado”. Essa abordagem, que chamei de Consenso de Wall Street, é o paradigma de desenvolvimento internacional que marcou a última década, promovido pelo Banco Mundial, pelas Nações Unidas e pelas agências de desenvolvimento dos países ricos, incluindo a USAID durante o governo Biden.

    O Consenso reimagina o papel do Estado como um facilitador do investimento privado por meio da concessão de subsídios, prática conhecida como “redução de riscos”. O desenvolvimento não é mais um bem público a ser diretamente financiado pelos Estados, mas sim uma oportunidade de mercado a ser destravada por meio da transformação alquímica de parcerias público-privadas (PPPs) em projetos privados “investíveis”.

    A USAID e o Consenso de Wall Street

    Na sua formulação pré-Trumpiana, o Consenso de Wall Street sustentava uma visão do que chamava de “desenvolvimento investível”. Estado e organizações de fomento ao desenvolvimento, incluindo bancos multilaterais de desenvolvimento, guiariam os trilhões gerenciados pela finança privada para classes de ativos dos ODS, seja em educação, energia, saúde ou outras infraestruturas. O Estado usa recursos públicos (ajuda oficial ou receitas fiscais locais) para melhorar perfil de risco desses ativos, comumente descritos como projetos com retorno garantido. No setor energético, compromete-se a comprar energia privada a preços ou quantidades predeterminados, garantindo um fluxo de caixa aos investidores. Um processo similar acontece na saúde “investível”. Na Turquia, por exemplo, o Ministério da Saúde acabou gastando cerca de 20% de seu orçamento em pagamentos garantidos a hospitais em regime de PPP, de copropriedade do gestor de ativos francês Meridiam, com um custo médio por leito duas vezes maior do que o de um hospital público. No setor de fornecimento de água, o dinheiro público para a prestação privada tipicamente reduz o acesso universal por meio da imposição de tarifas de uso à população mais pobre.

    “Alavancar” ou “mobilizar” o investimento privado é um código para conceder subsídios públicos à infraestrutura social privada. Isso envolve uma nova política distributiva que desloca recursos públicos para investidores privados. A lógica pró-lucro, no centro desse paradigma de desenvolvimento, restringe o acesso universal à infraestrutura social e é solo fértil para violações de direitos humanos. Por exemplo, uma reportagem da Bloomberg mostra que hospitais privados financiados por auxílio internacional ao desenvolvimento têm sistematicamente detido pacientes e recusado cuidados.

    A USAID também promoveu essa “redução de riscos ao investimento privado”, o que foi celebrado por Samantha Power, que comandava a agência no governo Biden, ao afirmar no ano passado que a agência, “nos últimos quatro anos, aumentou em 40% a contribuição do setor privado para seu trabalho de desenvolvimento. Para cada dólar do orçamento público que gastamos, trouxemos 6 dólares em investimentos do setor privado”.

    Durante o governo Obama, quando a segurança nacional virou um dos focos principais da USAID, a agência lançou a “Power Africa”, iniciativa aparentemente voltada à melhoria do acesso a energia elétrica no continente africano. No agora defunto site da USAID, a “Power Africa” contava diversas histórias de sucesso, incluindo a da usina de energia de 450 MW Azura-Edo, na Nigéria, e os Projetos de Energia Eólica Lago Turkana e de Kipeto, no Quênia, dois dos maiores programas de energia renovável do continente. Apesar desses projetos representarem, em alguma medida, passos importantes para reduzir as significativas lacunas energéticas que afligem a região, também ilustram uma conhecida agenda de Wall Street: A USAID, enquanto impunha duros encargos fiscais aos governos africanos e limitava as oportunidades de modernização industrial autônoma, criava oportunidades para financistas privados. Os projetos funcionaram, efetivamente, como uma “faixa extrativista”, direcionando os escassos recursos fiscais do Sul global para investidores do Norte.

    A usina de gás natural Azura-Edo, na Nigéria, talvez seja o exemplo mais claro do extrativismo apoiado pela USAID por meio da redução de riscos. Trata-se do primeiro projeto energético financiado pelo capital privado na Nigéria, narrado pelo Banco Mundial como “exemplo” da sua capacidade de atrair investimento privado para o setor elétrico. Para fazê-lo, o Banco, em conjunto com outras instituições oficiais de desenvolvimento dos EUA (DFC), da Alemanha, da França, da Suécia e da Holanda, organizaram e mitigaram riscos financeiros aos empréstimos bancários destinados ao projeto. Mas os termos fiscais da redução de riscos que a Azura (hoje majoritariamente propriedade do fundo americano de private equity General Atlantic) impôs à Nigéria têm sido objeto de contínua controvérsia.

    O Estado nigeriano, por meio da estatal Bulk Electricity Trading, assinou um compromisso de compra de US$ 30 milhões por mês. Como a capacidade instalada da Azura não poderia ser facilmente absorvida pela comprometida infraestrutura da rede de energia elétrica do país, o Estado acabou obrigado a pagar por mais energia do que consegue de fato utilizar. Em um jogo de gato e rato, a Azura tem ameaçado o governo nigeriano com a possibilidade de acionar a garantia parcial de risco do Banco Mundial, um instrumento de redução de risco formulado para pressionar o país a cumprir suas obrigações de pagamento aos investidores internacionais. Uma vez acionada, a garantia de risco funciona como um empréstimo para a Nigéria, já que o Estado redutor de riscos sempre paga, assim afetando sua classificação de risco soberano. Como colocou um funcionário do governo em 2024, “o acordo foi um grande erro”. Uma vez que não há recursos para continuar pagando as tarifas exorbitantes da Azura, resumiu: “esse acordo está nos matando”. Previsivelmente, o acordo de Azura é celebrado pela USAID como um “sucesso”, simplesmente.

    Outra história de sucesso é a Usina Eólica do Lago Turkana (Lake Turkana Wind Power, LTWP). Nas próprias palavras da agência, a USAID “está criando um ambiente favorável para a energia renovável no Quênia, por meio do apoio a um programa que auxilia o país na gestão da rede de energias renováveis intermitentes”. Os parceiros privados incluem, notavelmente, a Aldwych, trabalhando em conjunto com o Standard Bank da África do Sul, o Banco de Desenvolvimento Africano e o Nedbank, que se comprometeram com financiamento e seguro, e com o Departamento do Tesouro dos EUA.

    Num primeiro momento, entidades públicas nórdicas e a fabricante de turbinas dinamarquesa Vestas figuravam entre os maiores acionistas. Em seguida, as ações foram vendidas para a Anergy Turkana Investments, gestora de ativos sul-africana de propriedade estatal, e para o fundo climático da Blackrock. Do ponto de vista fiscal, o Estado queniano firmou um compromisso de compra com prazo de vinte anos que obriga a estatal Kenya Power and Lightening a adquirir a energia eólica gerada. A redução fiscal dos riscos de demanda foi tão generosa com os proprietários da LKWF que o Banco Mundial retirou seu apoio ao projeto, destacando que o compromisso de compra (como no caso da Azura) forçaria o Estado a pagar por energia que não conseguiria utilizar. E, ainda que a rede de distribuição queniana pudesse absorver a energia gerada, o contrato de vinte anos obriga a população a pagar um preço de Sh16/kWh, atualmente três vezes maior do que o preço de mercado—Sh5.8/kWh. O parque eólico de Kipeto, atualmente de propriedade da gestora de ativos francesa Meridiam, tem um compromisso de compra similar, que impõe à Kenya Power a obrigação de compensar a firma francesa em dólares, afastando assim o risco cambial dos investidores privados.

    Figura 1: Projeto de Energia Eólica Lago Turkana: propriedade e redução fiscal de riscos

    O extrativismo de redução de riscos se tornou tão controverso que, no final de 2024, um comitê parlamentar queniano requereu à Comissão de Ética e Combate à Corrupção e à Direção de Investigações Criminais que investigassem o papel dos funcionários públicos na assinatura do contrato de compra de energia entre a Kenya Power e a LTWP. O governo acabou por impor uma moratória aos compromissos de compra (PPAs) no setor elétrico, mas as implicações do acordo não eram apenas fiscais. Os altos custos de energia comprometem o esforço público de fortalecimento da capacidade industrial da economia queniana e  representam novas fontes de conflito político entre o Estado, os produtores estrangeiros de energia e os fabricantes locais.

    A USAID funcionou tanto como instrumento de ajuda humanitária quanto de redução extrativista de riscos. Enquanto enfatizou os ganhos mais visíveis de seus projetos, como infraestrutura e investimento, ofuscou os custos sociais e econômicos de longo prazo para seus destinatários.

    O DOGE e a ajuda externa

    O título desse artigo não é de minha autoria original.1 Foi tirado de um post escrito por dois trumpistas do mundo das finanças: Jon Londsdale, pupilo de Peter Thiel, e Ben Black. Este último, filho do cofundador da Apollo Global Management, Leon Black, foi nomeado pelo novo governo para chefiar a DFC em seu papel reformulado, funcionando como um instrumento mais agressivo do poder econômico americano. Segundo a Bloomberg, a DFC deve se tornar o fundo soberano de Trump, com o limite total de financiamento aumentado dos atuais US$ 60 bilhões (valor que já é superior ao orçamento da USAID, de US$ 40 bilhões) para US$ 120 bilhões.

    Advogado formado em Harvard, Black lidera a firma de private equity Fortinbras, nomeada em homenagem—sem sarcasmo—ao personagem de Shakespeare que, em razão da grandeza demonstrada na luta pela honra de sua família, foi descrito por Hamlet como tendo “ambição divina”. Filho de um “asset stripper”, ele foi agora encarregado de despojar a USAID de seu comprometimento com a assistência humanitária: em outras palavras, sua tarefa no governo é “DOGE a USAID”.2

    De forma um tanto irônica, o diagnóstico da USAID feito por Londsdale e Black ecoa o de Bernie Sanders, mas o faz para denunciar a posição política que supostamente guiaria a atuação da agência. Sob Biden, argumentam, a USAID se tornou um “programa de dependência para nações estrangeiras”, um “desvio absurdo de missão” que desperdiça o dinheiro dos contribuintes americanos em projetos pretensamente virtuosos, ligados a temas como clima ou igualdade de gênero, “cedendo à pauta do grupo de interesse do momento”. Lamentavelmente, não tinham nenhum comentário a fazer sobre como as operações da USAID beneficiam sua própria turma.

    A proposta, em vez disso, é reorganizar a ajuda externa no sentido de “garantir acesso a recursos críticos, construir economias de mercado fortes e promover caminhos para o investimento privado (…) Com o apoio financeiro da DFC, empresas americanas de mineração, navegação e dependentes de recursos naturais poderiam ser envolvidas, trazendo capital e conhecimento técnico” para interesses geopolíticos estratégicos como a Groenlândia.

    As operações da DFC em 2023 são um retrato de seu empreendimento de redução de riscos. Naquele ano, cerca de US$ 10 bilhões foram empenhados, dos quais US$ 1,2 bilhão estava reservado para a Ucrânia, sem informações sobre os programas específicos. Os vinte maiores investimentos da corporação superam, todos, a cifra de US$ 100 milhões. O maior, que soma US$ 747 milhões, destinava-se a um swap de dívida por natureza no Gabão. À primeira vista, esses projetos parecem situações de ganha-ganha: nações endividadas, como o Gabão, recebem alívio financeiro em troca de compromissos de conservação ambiental. O problema, contudo, é que essas trocas terceirizam a política ambiental para atores externos (nesse caso, o US Nature Conservancy) e criam oportunidades de lucro para o financistas: o US Bank of America Nova York foi quem organizou a emissão de debêntures azuis. Enquanto isso, pouco abordam as causas fundamentais da acumulação de dívidas, como relações comerciais exploratórias ou a volatilidade dos mercados financeiros globais.

    Diversos outros compromissos da DFC ilustram seu papel na intersecção entre as prioridades geopolíticas dos EUA e os interesses corporativos domésticos. A corporação, por exemplo, deu uma garantia de US$ 300 milhões ao Goldman Sachs, destinada a subscrever potenciais obrigações derivativas geradas pelo contrato da empresa com a PKN ORLEN, gigante polonesa de petróleo que buscava se proteger dos riscos de importação de gás natural liquefeito dos EUA. Ainda, alocou US$ 150 milhões ao fundo de private equity I Squared Climate Fundpara investimentos em infraestrutura na Índia, Indonésia, Filipinas, Vietnã, Camboja, El Salvador, Malásia, México, República Dominicana, Peru e Brasil. Em outra operação de redução de riscos, a DFC destinou US$ 100 milhões ao fundo de private equity Global Access Fund,responsável pela privatização da infraestrutura hídrica via PPPs.

    Por mais que o segundo governo Trump pareça caótico, parte de sua agenda é coerente. A nova gestão vai potencializar a redução extrativista de riscos da USAID via DFC—a parcela de ajuda humanitária da agenda americana de desenvolvimento, nos termos do próprio Elon Musk, será jogada “no triturador de madeira”. É a era do Consenso de Wall Street turbinado: administrado pelo capital privado para favorecer o capital privado.

    Tradução: Lucia Del Picchia

  3. Refém do antigo consenso

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    Os bancos centrais estão de volta ao centro das atenções. Após mais de três décadas de inflação baixa nos países ricos, o aumento dos preços observado entre 2021 e 2023 empurrou discussões que ocorriam nos confins da academia de volta para a esfera pública. Esses debates não se restringem a questões econômicas técnicas, mas tratam diretamente da atuação política dos bancos centrais. Na recente eleição dos Estados Unidos, por exemplo, não faltou quem apontasse para a inflação como explicação para a vitória de Donald Trump. Alguns comentários foram além, argumentando que a inflação explica um viés geral pró-oposição em eleições recentes ao redor do mundo. 

    Ao sul do Equador, as economias também foram atingidas pela recente onda de inflação. Nesse caso, porém, a turbulência nos preços expôs os limites dos sistemas de metas de inflação de forma particular, mediada—como de costume em países capitalistas dependentes—pelos caprichos dos fluxos internacionais de capital. Enquanto os debates no Norte global têm se centrado em ferramentas alternativas para superar os limites da política monetária convencional, no Sul, para que haja algum grau de autonomia monetária, essa discussão exige, primeiro, a retomada dos controles de capital. Os países periféricos ocupam posições inferiores às das economias ricas na hierarquia de moedas que estrutura o sistema monetário internacional e enfrentam desafios significativamente distintos. Se o foco no patamar da taxa de juros que domina os debates sobre política monetária é restrito demais para dar conta das atuais tensões inflacionárias no Norte, no Sul, significa restringir-se aos sintomas e ignorar as causas mais profundas da particular vulnerabilidade desses países aos ciclos financeiros globais: a volatilidade monetária.

    O Brasil, com seu câmbio extremamente volátil, é um arquétipo desses desafios. Mas vários outros países enfrentam situações semelhantes—vale lembrar das recentes controvérsias em torno da política monetária em países como Bolívia, Colômbia ou Turquia, todas impulsionadas, ao menos em parte, pela redução da liquidez global. Tendo em vista o importante papel dos economistas críticos brasileiros em estabelecer a centralidade da hierarquia monetária internacional para a compreensão da política monetária, é surpreendente que o debate público do país tenha ignorado, nos últimos dois anos, o papel do ciclo financeiro global, concentrando-se no patamar das taxas de juros definidas pelo Banco Central. De fato, taxas de juros extraordinariamente altas têm implicações profundas para o Brasil, permitindo a reprodução das desigualdades extremas do país. Mas os desafios impostos pela inflação exigem que a política monetária vá além dessa questão e considere seriamente os controles de capital.

    Lula contra o Banco Central

    Quando iniciou seu terceiro mandato, em 2023, Lula foi impedido de nomear o presidente do Banco Central do Brasil e alguns de seus diretores em razão de uma lei aprovada durante o governo de extrema direita de Jair Bolsonaro (2019-2022), seu antecessor. Em linha com as legislações de independência dos bancos centrais adotadas em outros países, em 2021, Bolsonaro obteve a aprovação no congresso da lei que estabelece mandatos fixos e não coincidentes com os do governo para o presidente da autoridade monetária e seus diretores—o presidente do Banco Central, por exemplo, agora inicia seu mandato no terceiro ano do governo que o nomeou e permanece no cargo por mais dois anos após o encerramento do mandato do presidente da República.

    O objetivo declarado da regra era evitar a politização da política monetária. A politização, no entanto, não pôde ser evitada, em especial porque o presidente do Banco Central nomeado por Bolsonaro, Roberto Campos Neto, não só era leal a ele, mas participou ativamente de sua campanha para a reeleição—entre outras coisas, há relatos de que tenha criado um agregador de pesquisas para ajudar a campanha quando já estava no comando da autoridade monetária. Menos de três semanas após o início de sua terceira gestão, Lula passou a culpar Campos Neto e as altas taxas de juros fixadas pelo Banco Central pelas dificuldades em impulsionar o crescimento econômico e criar empregos no Brasil. Aproveitando a deixa, partes da esquerda e alguns economistas críticos declararam Campos Neto como inimigo. O último, por sua vez, corriqueiramente recorria às atas do comitê de política monetária para criticar as políticas do governo.1

    Certamente, não faltavam motivos para as reclamações contra o Banco Central: pode-se argumentar, por exemplo, que a taxa de juros foi mantida em patamares excessivamente altos por muito tempo, apesar da trajetória de queda da inflação que vinha desde meados de 2022. O conflito se tornaria ainda mais grave a partir de abril de 2024, quando Campos Neto fez uma série de comentários públicos que foram interpretados como uma tentativa de sabotar o governo, ao estimular o aumento das expectativas de inflação. 

    Do ponto de vista do governo, de qualquer forma, a troca de farpas com Campos Neto serviu ao propósito político de desviar o foco da opção de Lula de não romper decisivamente com a austeridade—sua escolha por um “lulismo em câmera lenta”.2 Isso também alimentou a esperança de que, quando Lula conseguisse substituir Campos Neto, em 2025, a política monetária poderia adotar uma postura expansionista, contribuindo para impulsionar a economia. Quando 2025 chegou, no entanto, a situação havia mudado, e as esperanças anteriores já estavam esfaceladas.

    O nomeado por Lula para dirigir o Banco Central é Gabriel Galípolo, um jovem economista que trabalhou no sistema financeiro e tem um bom trânsito entre economistas da esquerda. Após um breve período no Ministério da Fazenda, em meados de 2023, Galípolo foi indicado para compor a diretoria do Banco Central. Nas primeiras sete reuniões do Comitê de Política Monetária das quais participou desde que ingressou na instituição, a taxa de juros foi reduzida.3 Nas seis reuniões seguintes, no entanto, Galípolo inicialmente apoiou a pausa no relaxamento da política monetária (nas duas primeiras) e, em seguida, sua reversão (nas quatro últimas)—até agora, a taxa de juros subiu de 10,5% para 13,25%. Na última reunião, a primeira presidida por Galípolo, a taxa foi elevada em 1 ponto percentual. 

    Enquanto isso, reconhecendo que, no fim das contas, a saída de Campos Neto não traria consigo juros mais baixos, alguns economistas de esquerda mudaram de tática.  Em uma carta aberta endereçada ao Conselho Monetário Nacional, nove influentes economistas críticos argumentaram que a rigidez dos preços e a indexação predominantes na economia brasileira tornam a atual meta de inflação (de 3%) “disfuncional”, pedindo uma mudança da meta para 4% para “permitir um crescimento mais equilibrado da economia”. Desde então, outros se juntaram ao coro.4

    Entre 2005 e 2018, a meta de inflação brasileira permaneceu em 4,5% e, a partir de 2019, foi reduzida em 0,25 ponto percentual a cada ano—um reflexo do neoliberalismo desinibido promovido no país desde que que o Partido dos Trabalhadores foi destituído do poder, em 2016. Durante os desentendimentos com Campos Neto, em 2023, o próprio Lula cogitou aumentar a meta, mas até agora o governo optou por mantê-la em 3%.

    O que aconteceu? Por que a saída de Campos Neto não foi suficiente para alterar a postura do Banco Central? Por que Galípolo apoiou as recentes elevações da taxa de juros, incluindo os agressivos aumentos de um ponto percentual nas duas últimas reuniões?

    A resposta está na própria trajetória da inflação. Após atingir um pico de 12,1% em abril de 2022, como parte da onda de inflação pandêmica global, em junho de 2023, ela caiu drasticamente para 3,2%. Desde então, entretanto, aumentou novamente e fechou 2024 em 4,8%—acima do limite de 4,5% estabelecido pelo sistema de metas de inflação, que admite um desvio de 1,5% do centro da meta. Os economistas convencionais, naturalmente, culpam as incertezas da política fiscal pela recente depreciação da moeda brasileira e pelo aumento da inflação, pedindo mais austeridade. Mas, por mais revelador que seja sobre as disputas políticas de fundo, esse argumento surrado não ajuda a explicar as turbulências macroeconômicas recentes. 

    Ciclos financeiros globais

    Talvez a maldição dos países grandes seja olhar demais para dentro, registrando todos os acontecimentos como internamente determinados—tendência que não escapou aos observadores estrangeiros: Perry Anderson, por exemplo, argumentou que a cultura nacional brasileira é “excepcionalmente autossuficiente”. Os debates sobre política macroeconômica estão sujeitos a essa introversão—às vezes de forma honesta, outras nem tanto—, subestimando o papel dos ciclos financeiros globais nos movimentos da taxa de câmbio e, consequentemente, nas taxas de inflação.

    A taxa de câmbio, no entanto, é justamente a variável mais relevante por detrás das mudanças no nível de preços (veja a figura abaixo), uma vez que afeta não somente os preços de bens importados e exportáveis, mas também de serviços como aluguéis, comumente reajustados com base em um índice que acompanha de perto os movimentos da moeda. A taxa de câmbio, por sua vez, costuma se mover em conjunto com as da maioria dos países periféricos—mesmo que as oscilações do real tendam a ser mais fortes do que a média—, reagindo às flutuações globais de liquidez criticamente determinadas pela política monetária dos Estados Unidos.5 Para interpretar a dinâmica da inflação brasileira, portanto, é preciso analisar os ciclos globais. Uma breve retrospectiva esclarece esse ponto.

    O sistema de metas de inflação foi adotado no Brasil em 1999, quando a ferramenta de estabilização anterior—uma âncora cambial—foi engolida pelos choques globais da segunda metade da década de 1990. O período de 1997 a 1999 foi marcado por um colapso duplo: quedas cíclicas coincidentes dos fluxos de capital e dos preços das commodities. No período anterior ao colapso duplo, a economia brasileira havia conseguido superar uma persistente hiperinflação, atrelando sua moeda ao dólar americano a partir de 1995. Apesar dos esforços para atrair capital estrangeiro em nível suficiente para sustentar a paridade cambial—a taxa básica de juros média entre 1996 e 1998 foi de 23,7%—, a volatilidade dos fluxos de capital que causou estragos no México, no Leste Asiático e na Rússia naqueles anos eventualmente forçou o real a flutuar.

    Seguindo uma tendência global, o Brasil substituiu o regime de câmbio fixo pelo sistema de metas de inflação e conseguiu atingir algum grau de estabilidade dos preços —a um altíssimo custo, sem dúvida (o desemprego e a desigualdade aumentaram e a dívida externa disparou com a fixação da taxa básica de juros em 45% em 1999). Depois de cair de 9,6% para 1,7% entre 1996 e 1998, a inflação voltou a subir para 8,9% em 1999, devido à grande desvalorização da moeda, antes de baixar para uma média de 6,8% nos dois anos seguintes. Na sequência, a combinação de incertezas relacionadas à crise da Nasdaq nos EUA com especulações eleitorais domésticas forçou desvalorizações anuais de 25% do real em 2001 e 2002, levando a inflação de volta a 12,5%.

    Em janeiro de 2003, quando Lula assumiu a presidência pela primeira vez, a situação havia mudado drasticamente: o colapso duplo havia se transformado em um duplo boom, das commodities e dos fluxos de capitais. A reorganização da economia global a partir da integração da China aos circuitos mundiais de produção e comércio resultou em uma década de aceleração do crescimento, aumento dos preços das commodities e bonança nos fluxos de capital que durou até 2011. A taxa de câmbio se valorizou gradual mas constantemente, passando de um pico de 3,89 reais por dólar em setembro de 2002 para um mínimo de 1,56 em julho de 2011. A inflação, por sua vez, foi mantida dentro da meta em todos os anos entre 2004 e 2014, com média anual de 5,4% até 2011—enquanto durou o duplo boom. E, finalmente, a taxa básica de juros pôde cair de 19,8% para 14,5%, comparando as médias de 1999-2002 e 2003-2011, respectivamente.

    Politicamente, o governo aproveitou as condições globais favoráveis para adotar uma série de medidas que reduziram a desigualdade salarial e impulsionaram a demanda doméstica—ainda que, simultaneamente, as rendas do capital tenham se concentrado cada vez mais no topo. O duplo boom também estimulou o aumento do endividamento das famílias, alimentando ainda mais a demanda agregada. A tendência foi regional: a aceleração do crescimento atrelada à queda da desigualdade salarial foi elemento comum aos países sul-americanos da chamada onda rosa, governados por partidos à esquerda do centro no período. A trajetória auspiciosa do crescimento inclusivo, no entanto, tinha um lado menos atraente: o duplo boom consolidou o papel da região como exportadora de commodities primárias, ampliando a vulnerabilidade externa das economias e fortalecendo as facções agrárias e extrativistas das classes dominantes que eventualmente contribuiriam para derrotar a onda rosa, enfraquecendo as jovens instituições democráticas desses países.

    Quando o duplo boom se tornou novamente um colapso duplo, em 2011, as dificuldades começaram a surgir. No Brasil, a taxa de câmbio se desvalorizou à la Hemingway—gradualmente e depois repentinamente—, chegando a 4 reais por dólar em janeiro de 2016. A inflação, como de costume, seguiu o mesmo caminho: oscilou em torno de uma média de 6,1% entre 2012 e 2014, apesar do grande esforço do governo para manter os preços administrados sob controle, e saltou para 10,7% em 2015. A forte guinada contracionista do Banco Central, aumentando a taxa básica de 7,25% para 14,25% entre abril de 2013 e julho de 2015, teve efeito limitado: as pressões sobre o nível de preços e sobre o câmbio só diminuiriam a partir de 2016, quando as condições internacionais se alteraram novamente e a liquidez global começou a se recuperar. 

    Também em 2016, o Partido dos Trabalhadores de Lula foi afastado do governo após um golpe parlamentar, impactando decisivamente a direção política do país. Os governos seguintes tomaram uma série de medidas para desmantelar mecanismos redistributivos, incluindo reformas no mercado de trabalho e na previdência social e um congelamento constitucional dos gastos federais, o chamado teto de gastos. A combinação resultante entre estagnação econômica e taxa de câmbio relativamente estável manteve a inflação em um nível baixo até o início da pandemia. Quando a crise sanitária se espalhou, as fugas de capital da periferia foram um dos ingredientes do choque global: somente em 2020, a taxa de câmbio brasileira se desvalorizou cerca de 30% e a inflação atingiu um pico de 12,1%, como mencionado anteriormente.

    A questão certamente não é argumentar que determinantes domésticos são irrelevantes para a dinâmica inflacionária no Brasil. É inegável que a forma como o ciclo financeiro global afeta a economia brasileira é influenciada não apenas pelas características estruturais de sua integração nos circuitos produtivos e financeiros mundiais, mas também por decisões políticas internas. Em vez disso, o argumento é que as economias periféricas são periodicamente sobrecarregadas por movimentos repentinos dos fluxos financeiros globais, o que obriga os governos a lidarem com dilemas agudos. Na medida em que os capitais fogem, a atividade econômica é geralmente pressionada para baixo e os preços para cima. 

    Nesse cenário, ou o governo aumenta a taxa de juros e alimenta a contração para tentar lidar com a inflação—por meio do impacto dos juros sobre os fluxos de capital e a taxa de câmbio—,  ou permite que a inflação comprima o poder de compra para tentar preservar o nível de emprego, torcendo para que a depreciação da moeda estimule as exportações e compense a redução da demanda interna. Quanto mais aberta aos fluxos de capital for uma economia, mais aguda tende a ser a escolha. Economias ricas centrais, com moedas fortes, enfrentam dilemas significativamente mais amenos, já que a transmissão dos movimentos da taxa de câmbio para os preços tende a ser menos significativa e a própria volatilidade da moeda tende a ser muito menor. 

    O pêndulo

    Por que, então, as economias se abririam aos fluxos de capital? O capital estrangeiro costuma ser retratado como ferramenta propulsora do desenvolvimento, investindo em atividades supostamente fora do alcance dos agentes nacionais e trazendo consigo as tecnologias mais recentes e as práticas de gestão mais avançadas mundo afora. No entanto, esses benefícios são, na melhor das hipóteses, ilusórios: mesmo quando assumem a forma de investimento produtivo—quando uma empresa multinacional abre uma fábrica no país, por exemplo—, os fluxos de capital podem criar enclaves pouco conectados com o restante da economia ou canalizar mais ganhos para suas matrizes—na forma de remessas de lucros—do que trouxeram para o país receptor. 

    De qualquer forma, a maior parte dos fluxos de capital não é composta por investimentos produtivos, mas por fluxos de portfólio de curto prazo: grandes gestores de ativos nas capitais financeiras do mundo transferem fundos de um local para outro em um piscar de olhos, com o objetivo de obter os maiores ganhos possíveis no menor tempo possível. Comprando e vendendo títulos do governo, ativos privados e uma variedade barroca de derivativos, gestores de fundos propagam volatilidade e turbulência e representam uma fonte insegura e insustentável de divisas estrangeira. Esses fluxos de hot money, como são adequadamente chamados, tendem a queimar países que os recebem. 

    É compreensível, portanto, que a regulamentação dos fluxos de capital tenha sido uma questão historicamente conflituosa, seguindo o duplo movimento descrito por Karl Polanyi em A Grande Transformação. Quando as classes dominantes, especialmente sua facção financeira, pressionam pela liberalização financeira, tendem a desencadear um contra-movimento das sociedades para se protegerem. Na era do padrão-ouro, examinada por Polanyi, os fluxos de capital desregulados foram um dos três motores do moinho satânico que lançou as sementes das guerras mundiais e da ascensão do fascismo. Descrevendo suas consequências no final de 1920, escreveu:

    “Uma sequência quase ininterrupta de crises monetárias ligava os indigentes Balcãs aos afluentes Estados Unidos, através da conexão elástica de um sistema internacional de crédito ( . . . ). ‘Fuga do capital’ era uma novidade. ( . . . ) No entanto, ficou patente o papel vital que desempenhou na queda dos governos liberais na França, em 1925 e novamente em 1938, bem como no desenvolvimento do movimento fascista na Alemanha em 1930.”

    Em meio aos destroços da Segunda Guerra Mundial, o pêndulo oscilou. Na conferência de Bretton Woods, os idealizadores da ordem do pós-guerra concordaram que os governos tinham o direito de controlar “todos os movimentos de capital”. Para um de seus arquitetos, John Maynard Keynes, a mudança era clara: “o que costumava ser uma heresia”, disse ele, “agora é endossado como ortodoxia”.6 A nova visão durou muitas décadas, durante as quais os fluxos de capital livres eram a exceção, e não a regra. Quase meio século depois, em 1989, John Williamson—em sua codificação do Consenso de Washington—evitou um apelo irrestrito à liberalização, concentrando-se apenas no investimento estrangeiro direto. “A liberalização dos fluxos financeiros estrangeiros”, escreveu, “não é considerada uma prioridade de primeira ordem. Em contrapartida, uma postura restritiva que limite a entrada de investimentos estrangeiros diretos é considerada insensata”.

    Porém, após décadas de crescente integração econômica global, com a produção cada vez mais fragmentada em cadeias de suprimentos transnacionais unidas pela haute finance, as forças que pressionavam por uma nova liberalização financeira estavam prontas para contra-atacar. Em 1997, Michel Camdessus, então diretor do Fundo Monetário Internacional, propôs a alteração de suas disposições estatutárias—aprovadas originalmente em Bretton Woods—para permitir que a instituição pressionasse oficialmente pela liberalização financeira. As consequências do colapso duplo, em especial a crise do Leste Asiático, impediram a aprovação da proposta.7 Mas a maré da liberalização já tinha subido. Como lembra Dani Rodrik, apesar do fracasso em alterar seu estatuto, “o FMI continuou a instigar os países com quem trabalhava a remover barreiras domésticas às finanças internacionais, e os Estados Unidos pressionaram seus parceiros em acordos comerciais a renunciar aos controles de capital”.

    O Brasil, ao lado de seus vizinhos latino-americanos, atendeu ao chamado logo no início. Na década de 1990, uma coalizão favorável às reformas neoliberais começou a se consolidar e as primeiras leis destinadas a desmantelar os controles de capital e liberalizar os mercados de câmbio foram promulgadas. Entre 1995 e 1998, conforme mencionado acima, o esforço de liberalização foi fundamental para sustentar a paridade cambial que eliminou a hiperinflação. Quando Lula se tornou presidente, em 2003, economistas liberais argumentaram que a estabilização dos preços só seria consolidada se a liberalização financeira fosse até o fim, tornando o real “plenamente conversível”. Invocando argumentos teóricos e empíricos contra a proposta, economistas de esquerda alegaram que uma maior liberalização simplesmente empurraria a moeda brasileira ainda mais para baixo na hierarquia global, aprofundando a vulnerabilidade externa. Mas seus argumentos não prevaleceram. Lenta mas decisivamente, a política se deslocou em direção à maior conversibilidade—o pêndulo polanyiano estava em pleno movimento.

    Após a crise financeira global de 2008, como parte do enfraquecimento geral da hegemonia neoliberal, as primeiras rachaduras no consenso da liberalização financeira começaram a aparecer. No Brasil, a sucessora de Lula, Dilma Rousseff, decidiu mudar a política econômica para atenuar os impactos negativos sobre a produção industrial do real sobrevalorizado. Uma série de medidas foi adotada para reduzir a volatilidade do câmbio e gerenciar os fluxos de capital, envolvendo a tributação seletiva e a imposição de recolhimento compulsório em diferentes operações de câmbio, incluindo derivativos. Isso se mostrou eficaz por algum tempo, aumentando a estabilidade da taxa de câmbio. Em 2012, o ministro da Fazenda de Dilma afirmou que o Brasil estava preparado para enfrentar um “tsunami monetário” global, comparando dramaticamente a situação com o desastre que havia atingido Fukushima no ano anterior. Politicamente, porém, o governo não estava preparado: não formou uma coalizão capaz de sustentar sua tentativa de disciplinar o capital financeiro. À medida que a liquidez global era drenada, aumentava a pressão para restaurar o arranjo político neoliberal e adotar austeridade monetária e fiscal. Em 2013, os controles de capital foram abandonados.

    Globalmente, porém, a virada em favor dos controles de capital seguiu adiante. Em 2012, o FMI publicou uma “visão institucional” sobre o assunto, afirmando em seu característico linguajar cauteloso que “não há ( . . . ) nenhuma presunção de que a liberalização total seja uma meta apropriada para todos os países em todos os momentos ( . . . ) Em determinadas circunstâncias, medidas de administração dos fluxos de capital podem ser úteis”. No ano seguinte, durante encontro mundial de banqueiros centrais em Jackson Hole, Hélène Rey foi além. Considerando que “os influxos brutos de capital, a alavancagem, o crescimento do crédito e os preços dos ativos dançam, em grande parte, no mesmo ritmo”, afirmou que a visão tradicional de que os países tinham autonomia para definir suas políticas monetárias na vigência da liberalização financeira era ilusória: “políticas monetárias independentes são possíveis se e somente se a conta de capital for administrada”.

    Alguns anos depois, em 2016, economistas do FMI colocaram os controles de capital novamente sob os holofotes em um artigo autocrítico intitulado “Neoliberalism: oversold?”. Nele, afirmavam que “os controles de capital são uma opção viável e, às vezes, a única” aberta aos países que enfrentam “um boom de crédito insustentável”. Por fim, em 2020, reagindo às desastrosas saídas de capital da periferia global causadas pela pandemia, o Escritório de Avaliação Independente do FMI argumentou que a “visão institucional” do Fundo sobre o assunto deveria ser revisada, “permitindo ( . . . ) o uso mais prolongado de medidas de fluxo de capital”.

    O Brasil, no entanto, continuou nadando contra a maré, ainda refém do consenso anterior—em razão do extraordinário papel desempenhado pelos interesses financeiros em sua economia política. Durante o governo Bolsonaro, como parte do pedido de adesão à Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), foi promulgada uma lei que liberalizou ainda mais os mercados de câmbio para cumprir as exigências da organização. Dada sua extrema volatilidade cambial, a economia brasileira está particularmente sujeita aos ciclos financeiros globais. Se a hegemonia da haute finance não for desafiada, o país deve ficar sozinho no topo do ranking de vulnerabilidade externa. 

    Disciplina de mercado e risco democrático

    O que está em jogo não é apenas a estabilidade econômica, mas a própria sobrevivência das instituições democráticas. As implicações autoritárias dos fluxos financeiros globais foram amplamente examinadas por Polanyi, por exemplo, quando observou que em vários países europeus no período entre guerras “partidos trabalhistas tiveram que sair do governo para ‘salvar a moeda’” ou “em nome dos padrões monetários saudáveis”. Quase um século mais tarde, tais ameaças ainda não foram superadas.

    Durante a primeira eleição vencida por Lula, em 2002, a especulação cambial e a fuga de capitais foram tão intensas que ele decidiu redigir uma carta em que se comprometia a seguir as políticas neoliberais. Ao analisar o episódio, Daniela Campello concluiu: “não há como entender a presidência de Lula ou suas consequências para a esquerda brasileira sem fazer referência à globalização financeira e à disciplina de mercado”. Na metade de seu terceiro mandato, o presidente continua sujeito a pressões semelhantes.

    Em novembro passado, em uma tentativa de convencer os “mercados” de seu compromisso com a eliminação do déficit fiscal primário, o Ministério da Fazenda anunciou um plano fiscal que reduzia transferências sociais e desacelerava os aumentos do salário mínimo. O plano também incluía uma proposta de extensão das isenções do imposto de renda para partes da classe média, compensada por um aumento nos impostos sobre os ricos. Economistas do sistema financeiro levaram na pessoal, disfarçando de responsabilidade fiscal sua resistência à tributação progressiva.

    Em dois dias, o real perdeu quase 4% do valor em relação ao dólar e, três semanas depois, a desvalorização chegou a 6%, efetivamente empurrando a inflação para cima do limite superior permitido pelo regime de metas. Em entrevista ao Financial Times, um gestor de portfólio confessou: “O mercado está muito preocupado com as contas fiscais do Brasil e, principalmente, com a resposta do governo a elas. A taxa de câmbio é a única forma que o mercado tem de chamar a atenção do governo”.

    Pode ser que o governo Lula opte por manter a atual estratégia, se esforçando para evitar conflitos e apostando que uma oposição dividida abra caminho para sua reeleição, apesar da recente queda de popularidade. Para sua base fiel nos setores mais pobres da sociedade brasileira, o governo oferece algum alívio da austeridade herdada, com uma ou outra tentativa de tornar o sistema tributário mais progressivo. Até agora, o orçamento ampliado que o presidente negociou antes de assumir o cargo manteve o crescimento em uma taxa relativamente alta em comparação com a quase estagnação da última década, mas seus efeitos defasados devem ser reduzidos nos últimos dois anos do mandato. Com os partidos conservadores fortalecidos pelas recentes eleições municipais e a extrema direita encorajada pelo sucesso eleitoral de Trump, os riscos envolvidos nessa opção são altíssimos. E com o novo governo dos EUA atacando agressivamente a globalização do comércio, é bastante provável que os próximos dois anos sejam caracterizados pela turbulência financeira global, com seus habituais impactos sobre as moedas periféricas.

    Um caminho alternativo implicaria impulsionar a economia do país em uma direção capaz de reduzir a vulnerabilidade externa e, ao mesmo tempo, a dependência das elites agrárias—cada vez mais leais à extrema direita—, para formar um bloco social com mais chances de conter a ameaça autoritária. Acompanhar a tendência global de reversão da liberalização financeira seria particularmente útil nesse sentido: poderia não só atenuar o impacto do ciclo financeiro global sobre a economia, mas também enfraquecer a ferramenta de chantagem dos capitalistas financeiros sobre a política governamental.

    Para esse fim, a experiência de gerenciamento dos fluxos de capital em 2011 e 2012 pode ser particularmente útil, sugerindo uma série de instrumentos potencialmente eficazes, desde os recolhimentos compulsórios em diferentes operações cambiais (especialmente derivativos) até a tributação seletiva dos fluxos de curto prazo—com uso do “imposto sobre operações financeiras” ou IOF. Uma vez que as instituições financeiras são propensas a criar novos instrumentos e operações para escapar das restrições da regulamentação, os detalhes e o direcionamento precisariam ser revisados regularmente à luz da avaliação detalhada da dinâmica do mercado. Mas a lógica deve ser clara desde o início, concentrando-se nas operações de hot money e carry trade para evitar o impacto sobre os fluxos de longo prazo e a pressão excessiva sobre o balanço de pagamentos.

    Certamente, qualquer passo nessa direção criaria animosidade com as instituições financeiras, que perderiam lucros provenientes da especulação de curto prazo. Entretanto, como indica a última turbulência cambial, pelo menos uma parcela das elites financeiras, determinada a pressionar o governo a se comprometer com o aprofundamento da austeridade, já faz parte da oposição. Desafiar essas elites é, portanto, inevitável para que Lula possa cumprir, ainda que parcialmente, suas promessas de campanha e manter viva a possibilidade de evitar o retorno da extrema direita ao poder. Concentrando-se nos controles de capital, o governo poderia se capacitar para enfrentar os desafios impostos pelos ciclos financeiros globais, criando condições para a adoção de uma estratégia de longo prazo capaz de superar as bases produtivas da vulnerabilidade externa—estratégia que, nesse cenário, estaria mais bem protegida tanto da turbulência global quanto da oposição financeira interna.

  4. A transição verde possível 

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    A transição energética está redefinindo a geopolítica e reconfigurando as cadeias produtivas globais: haverá vencedores e perdedores. Países com vantagens estruturais—como possibilidade de produção abundante de energia renovável, potencial em biocombustíveis, hidrogênio verde e reservas de minerais críticos—emergirão como líderes nesse novo cenário mundial. As transições industriais costumam ocorrer em longos ciclos, mas a atual tende a favorecer o Brasil, por conta de seu vasto território, matriz energética limpa e base industrial que, apesar dos desafios, mantém capacidades relevantes. O país reúne todas as condições necessárias para se consolidar como uma grande potência na nova ordem energética mundial. 

    Esse potencial, contudo, não será aproveitado se deixado ao acaso: sem uma estratégia clara, o Brasil corre o risco de continuar preso à histórica dependência de commodities e perda de capacidade industrial. Para romper esse ciclo, é preciso uma política industrial focalizada e bem direcionada—uma que enfrente restrições fiscais, juros elevados e a volatilidade cambial sem repetir os erros do passado.

    Em uma visão global, quatro países com economias políticas muito diferentes—China, Estados Unidos, Rússia e Brasil—possuem vantagens estruturais na transição energética. Enquanto a China avança com investimentos massivos, EUA e Rússia veem sua competitividade futura ameaçada pelos lobbies do petróleo e do agronegócio, que retardam suas transições. No atual tabuleiro global, a competição está aberta, mas o tempo é curto. As escolhas de hoje definirão não apenas o lugar do Brasil no novo mapa energético mundial, mas também seu papel na construção de um futuro sustentável.

    A escolha do governo brasileiro foi o lançamento, em janeiro de 2024, do programa Nova Indústria Brasil (NIB), um plano industrial orientado por missões que surge num cenário econômico e geopolítico bastante diferente daquele que marcou os governos anteriores de Lula (2003-2010) e o primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011-2014). Se for bem-sucedida, a NIB alcançará o delicado equilíbrio necessário para aumentar o valor agregado da indústria doméstica, reestruturar o comércio Brasil-China em bases setoriais mais igualitárias—sem perder a posição superavitária—e adaptar o país ao novo e errático papel dos Estados Unidos. 

    A boa notícia é que, diferente de ciclos anteriores, em que a política industrial operava sob maior incerteza setorial, a urgência da descarbonização e da transição energética oferece um caminho mais claro para o desenvolvimento produtivo—e há oportunidades evidentes para o Brasil. Somente a diversificação produtiva já contribuiria para a redução das emissões: a diminuição do peso relativo da agropecuária e do desmatamento na economia limitaria as principais fontes de gases de efeito estufa do país. Mas o Brasil também tem vantagens competitivas na descarbonização industrial e em setores críticos para a transição energética que o posicionam como potencial líder e não mero espectador dessa transformação. 

    Foi esse o diagnóstico que orientou o relatório Nova Política Industrial para um Novo Mundo, produzido pelo Net Zero Industrial Policy Lab (NZIPL), que analisa as diretrizes da NIB e mapeia as principais oportunidades para que o Brasil se consolide como um ator central na transição verde. No relatório, argumentamos que, para cada missão, é necessário um direcionamento estratégico que alinhe investimentos públicos e privados a metas claras de adensamento produtivo, inovação e inserção nas cadeias globais de valor. Também apontamos que os próximos passos de implementação demandam a definição de alvos específicos (microtargeting) da política industrial, identificando não só as grandes oportunidades setoriais, mas os elos das cadeias produtivas que integram a atividade produtiva como um todo, catalisando o papel de liderança do Brasil. 

    Nova Indústria Brasil: entre missões e setores

    A organização da NIB por missões foi uma inovação no modelo de governança tradicional das políticas industriais brasileiras. A ideia é articular setores e atores em torno de objetivos estratégicos, como a descarbonização e a digitalização, superando um problema crônico de políticas anteriores. O Plano Brasil Maior (2011-2014), por exemplo, contava com Conselhos de Competitividade setoriais—grupos de diálogo entre governo, empresariado e trabalhadores—, mas acabava fragmentando as cadeias produtivas e limitando a coordenação dos encadeamentos necessários para catalisar os resultados da política industrial. As missões oferecem uma linha mestra para a política. No entanto, como destaca o relatório, a sua efetiva implementação exige também um mapeamento detalhado das oportunidades setoriais e das atividades específicas dentro das cadeias de valor, seguido de iniciativas altamente focalizadas. Para que os investimentos públicos e privados gerem impacto real, essas iniciativas precisam estar ancoradas em métricas claras e condicionalidades que garantam adensamento produtivo e tecnológico. Não se trata, portanto, de abandonar as missões, e tampouco se trata de resgatar o antigo foco setorial: a proposta é transformar o amplo arcabouço da NIB em uma estratégia de execução precisa e orientada a resultados. Só assim os ambiciosos—e vitais—objetivos das missões poderão se concretizar.

    Como contribuição a essa abordagem, o relatório faz um mapeamento inicial de sete oportunidades setoriais estratégicas para o Brasil. Analisamos as políticas já implementadas no âmbito da NIB, seus avanços e limitações, e apontamos os caminhos para que o país transforme seu potencial em competitividade real na economia verde. Os setores escolhidos são resultado de uma análise que considera o potencial de recursos naturais e de manufatura do país. Cada análise setorial do relatório levou em consideração três fatores primordiais: 1. a posição do Brasil no cenário competitivo do mercado global; 2. a base de produção doméstica existente e 3. as iniciativas da política industrial brasileira e as reações do setor privado.

    Oportunidades setoriais

    Os três primeiros setores abordados no relatório estão intimamente conectados: são elos de uma longa cadeia de suprimentos que vai desde os minerais tirados do solo até os veículos eletrificados. Os minerais críticos são um pilar fundamental da transição energética global, e o Brasil tem um papel estratégico a desempenhar nessa cadeia. O país já é um dos principais produtores de ferro, bauxita, manganês, grafite e níquel, além de contar com reservas promissoras de lítio. A nível global, porém, recentes políticas anunciadas pela Indonésia aumentaram a oferta de certos minérios, fazendo com que as perspectivas de preço para níquel e lítio se tornem menos promissoras. Diante desse cenário, direcionar investimentos para o processamento de grafite para ânodos de baterias, por exemplo, não apenas aumentaria o valor agregado na economia brasileira, mas também fortaleceria a resiliência das cadeias de suprimento de seus parceiros comerciais. O objetivo está presente na Missão 3 da NIB, focada em “agregação de valor sobre recursos minerais no país”. A reestruturação do Conselho Nacional de Política Mineral (CNPM), o novo Fundo de Minerais Críticos do BNDES e a chamada pública de parceria entre BNDES e Finep para projetos de transformação de minerais mostram que o Brasil já vem criando incentivos nessa direção.

    Seguindo essa mesma lógica, o foco em baterias é estratégico para o Brasil, pois pode estimular encadeamentos produtivos tanto a montante—via exploração e processamento de minerais críticos—quanto a jusante, com a fabricação de componentes, a montagem final das baterias e o posterior encadeamento com o setor automotivo. Nesse contexto, o programa de Mobilidade Verde (Mover) emerge como peça central da política atual ao vincular estímulos ao aumento do conteúdo local na produção de baterias e incentivos fiscais para atrair etapas de pesquisa e desenvolvimento (P&D) para o país. A iniciativa busca revitalizar um setor automotivo abalado por uma década de estagnação, posicionando as baterias e a produção de híbridos-flex como eixo de revitalização industrial. Os resultados iniciais da política são positivos e trouxeram um forte fluxo de investimentos privados ao país.

    Fábricas de carros elétricos e híbridos-flex de empresas domésticas e multinacionais: 2022-2024

    EmpresaTipo de plantaInvestimentoLocalCapacidade (veículos p.a)
    ToyotaHíbridosR$ 13,2 biSão Paulo100.000
    HyundaiHíbridosR$ 22,8 biSão Paulo210.000
    GMHíbridosR$ 8,4 biSão Paulo330.000
    VolkswagenHíbridosR$ 10,8 biSão Paulo140.000
    StellantisHíbridosR$ 30 biSão Paulo1,1 mi motores
    RenaultHíbridosR$ 5,1 biParaná178.000
    CAOA CheryHíbridosR$ 4,5 biGoiás72.000
    BYDHíbridosR$ 5,46 biBahia150.000
    Great Wall MotorsHíbridosR$ 9,96 biSão Paulo50.000
    Fonte: análise do NZIPL com dados da FDI Intelligence
    O programa mover atraiu um grande volume de investimentos para a produção de veículos eletrificados, especialmente híbridos-flex

    Embora o Brasil tenha potencial geológico e demanda crescente, sua cadeia produtiva de baterias ainda é frágil. Faltam empresas capazes de produzir componentes intermediários (como ânodos, cátodos e separadores) essenciais para agregar valor e reduzir a dependência externa. Sem investimentos nesses elos, corre-se o risco de concentrar a produção nas etapas finais, criando uma economia de enclave: ilhas de produção desconectadas do tecido produtivo local, sem transferência efetiva de conhecimento ou estímulo a fornecedores nacionais. Para evitar esse cenário, políticas públicas precisam ir além do conteúdo local genérico, focando em gargalos específicos da cadeia. A opção do Brasil pela priorização de veículos híbridos-flex—produto com mercado quase exclusivamente nacional—, pode atrair polos de P&D, mas arrisca prejudicar a posterior capacidade de exploração de mercados externos.

    Além de mapear os elos entre minerais críticos, baterias e veículos elétricos, o relatório trata também dos biocombustíveis. Os recentes mandatos de descarbonização da aviação—adotados pela União Europeia, EUA, Canadá, China e pelo programa Combustível do Futuro no Brasil—devem ampliar significativamente a demanda global por combustíveis sustentáveis de aviação (SAFs, na sigla em inglês). O Brasil desponta como protagonista nesse mercado, combinando rotas tecnológicas diversificadas, capacidade instalada e ampla experiência no desenvolvimento de biocombustíveis.

    O agronegócio nacional já fornece insumos como sebo bovino, óleo de soja e óleo de palma, matérias-primas para a produção de ésteres e ácidos graxos hidroprocessados (HEFA, na sigla em inglês), e há projetos em andamento encabeçados por empresas como a Brasil BioFuels, a Essential Energy USA e a Petrobras. Paralelamente, a produção anual de 35,4 bilhões de litros de etanol de cana de açúcar viabiliza e pode ampliar as possibilidades da tecnologia Alcohol-to-Jet (AtJ), já explorada e exportada por empresas brasileiras.

    Por conta desse potencial, o país se tornou um imã de investimentos em SAFs, atraindo petrolíferas como a Shell e fundos soberanos como o Mubadala (dono da Acelen). O setor também tem o incentivo de programas de financiamento público—um exemplo é a iniciativa conjunta entre BNDES e Finep, que abriram uma chamada pública de R$ 6 bilhões para projetos relacionados a SAFs e receberam propostas totalizando R$ 120 bilhões em investimentos potenciais. O desafio agora é garantir que o valor agregado permaneça no Brasil, fortalecendo a cadeia produtiva nacional e evitando a exportação de insumos pouco processados para a fabricação dos combustíveis de aviação no exterior.

    Uma vez que o Brasil é o terceiro maior mercado eólico do mundo, o relatório também explora o potencial do país ampliar seu parque produtivo na manufatura de aerogeradores e seus componentes. A construção dessa indústria nacional foi impulsionada pela estratégia do BNDES que, com flexibilidade e focalização, ajustou suas políticas em um processo contínuo de aprendizado. O banco mapeou componentes críticos—como torres, lâminas, rodas e naceles—e flexibilizou os requisitos de conteúdo local para adequá-los à complexidade tecnológica de cada peça. Essa abordagem adaptativa permitiu equilibrar a promoção da produção nacional e a viabilidade técnica e econômica do setor, resultando em avanços significativos. Hoje, o Brasil produz localmente de 85% a 95% dos componentes, importando apenas a caixa multiplicadora (gearbox).

    No entanto, apesar dos progressos, a indústria ainda enfrenta desafios para se tornar competitiva globalmente. Gargalos de infraestrutura limitam a exportação de peças de grande porte, e a demanda no setor tem sido reduzida. Recentemente, o aumento das tarifas de importação para aerogeradores (com isenção apenas até 2025) e o Marco Legal das Eólicas Offshore representam passos importantes para fortalecer o setor, com potencial de suprir até 19% da demanda elétrica nacional. Contudo, para consolidar uma cadeia produtiva integrada e competitiva, é essencial uma estratégia coordenada, com metas claras e apoio estatal robusto, capaz de superar desafios históricos e aproveitar as oportunidades que virão com a expansão offshore.

    O relatório também aponta dois setores de difícil descarbonização (hard-to-abate) no campo de oportunidades para o país: aço de baixo carbono e fertilizantes verdes. Graças à matriz energética limpa, setor de mineração consolidado e indústria siderúrgica instalada, o Brasil possui uma base sólida para se tornar líder na produção de aço de baixo carbono. No entanto, o país ainda exporta minério de ferro e reimporta aço, perdendo o valor agregado nas etapas intermediárias. O cenário global parece trazer incentivos para a descarbonização do material, inclusive através de medidas protecionistas baseadas em emissões, como o mecanismo de ajuste fronteiriço de carbono da União Europeia (CBAM, na sigla em inglês). De fato, o Brasil aparece como possível líder em cenários projetados por especialistas.1

    Apesar do potencial, o setor enfrenta desafios significativos. Atualmente, 74% da produção nacional de aço ainda depende de altos-fornos, um processo intensivo em carbono. Iniciativas como o uso de carvão vegetal (empregadas por empresas como a Vallourec) e parcerias para produção de ferro briquetado a quente (HBI, na sigla em inglês) com hidrogênio (a exemplo daquela firmada entre Vale e H2 Green Steel) são passos importantes. No entanto, a rota de descarbonização mais completa de redução direta a hidrogênio (DRI-H2-EAF) exigiria investimentos massivos em redução direta e eletrolisadores. Enquanto isso, o governo poderia acelerar a transição através de incentivos à produção de aço a partir de sucata em fornos elétricos combinados com políticas robustas de reciclagem. Apesar de o governo atual reconhecer a importância estratégica do setor, ainda falta uma estratégia integrada, clara e direcionada para o aço de baixo carbono, essencial para aproveitar a janela de oportunidade—que pode ser curta.

    Outra possibilidade derivada do potencial do Brasil para a produção de hidrogênio verde é a descarbonização do setor de fertilizantes. Atualmente, o país importa 85% do que consome, o que limita sua capacidade de escolher fontes de baixo carbono. Para um país que é o quarto maior consumidor de fertilizantes do mundo, a nacionalização da produção tende a ser a prioridade, mas deve ser aliada à descarbonização. Um exemplo dessa tendência é o projeto da Atlas Agro em Uberaba, que investirá R$ 7 bilhões para produzir hidrogênio verde, amônia e fertilizantes nitrogenados, utilizando 300 MW de energia renovável. Além de reduzir as emissões, o projeto diminui a dependência de importações e gera valor agregado local.

    Essa transição, no entanto, depende de políticas claras e investimentos em P&D. A reativação de fábricas como a Araucária Nitrogenados, com parcerias entre Petrobras, Embrapa e Yara, é um passo importante, mas insuficiente para alcançar a meta de 55% de produção nacional até 2050. Ao integrar a nacionalização com a descarbonização, o Brasil pode não apenas fortalecer sua segurança alimentar, mas também se posicionar como líder global em fertilizantes sustentáveis.

    Os setores descritos representam algumas das principais frentes em que o Brasil pode alavancar sua base produtiva para se posicionar na economia verde. No entanto, a materialização desse potencial não será automática. A NIB oferece um arcabouço promissor e já deu passos importantes em sua implementação, com incentivos e diretrizes bem definidos.  Sua efetividade, porém, dependerá da capacidade de transformar essas diretrizes em estratégias setoriais concretas, garantindo coordenação, financiamento e metas claras para consolidar novas especializações produtivas.

    Oportunidades e condicionantes da nova política industrial brasileira

    A mudança estrutural é historicamente um fator propulsor do desenvolvimento econômico. Após décadas de um projeto industrializante fortemente liderado pelo Estado, a partir dos anos 1980, o Brasil passou por uma intensa abertura comercial e financeira, levando a um cenário macroeconômico adverso e a uma perda de complexidade econômica, o que também impactou o papel do país na geopolítica das cadeias produtivas.

    O boom de commodities promoveu um ciclo de especialização regressiva do parque produtivo brasileiro—que se voltou ao fornecimento de produtos baseados em recursos naturais para a indústria externa—e fomentou a expansão do mercado interno, favorecendo a importação de produtos de maior valor agregado. O esgotamento do boom e a queda internacional do preço das commodities desaqueceu tanto o setor primário-exportador quanto o mercado consumidor interno. O primeiro governo Dilma (2011-2014) lançou uma estratégia de reindustrialização que se mostrou ineficaz em razão da sobreapreciação cambial, do caráter defensivo2 das políticas e da perda de foco setorial,3 fatores que impossibilitaram a transformação estrutural do país. Depois de um ciclo de desaceleração econômica mundial acompanhado da profunda reorganização das cadeias globais de valor, a transição para uma economia verde significa uma janela histórica de oportunidade para que o Brasil promova uma mudança estrutural efetiva. 

    Se bem executada, a NIB pode mesclar sua organização por missões com uma implementação bem focalizada, posicionando o país de forma competitiva em setores estratégicos, impulsionando a agregação de valor e uma inserção mais qualificada nas cadeias globais. Oportunidades desse porte são raras—e a inação, ou mesmo um erro de política industrial, podem custar ao Brasil mais uma chance de mudar de patamar.

    A transição energética já começou, e o Brasil, depois de anos de completa omissão do Estado e aposta em vantagens comparativas estáticas—sob o pretexto de perseguir uma ideologia de mercado—, chega atrasado no planejamento. A NIB vem tarde e precisa fazer muito para correr atrás do prejuízo, reconstruindo a capacidade estatal, trazendo novas ideias de desenvolvimento e garantindo que esse desenvolvimento seja sustentável e inclusivo. A chegada tardia atrapalha, mas o potencial do Brasil é enorme e ainda pode ser aproveitado.

    Transformar esse potencial em realidade, no entanto, dependerá da superação de desafios persistentes. O espaço fiscal limitado e os mercados financeiros avessos ao risco restringem a capacidade do governo de ampliar investimentos estratégicos. Além disso, fatores macroeconômicos como câmbio e taxa de juros podem minar a competitividade da indústria, reduzindo a eficácia das políticas setoriais. No plano externo, a fragmentação geopolítica e o protecionismo verde das grandes economias adicionam incertezas, tornando ainda mais necessário um posicionamento estratégico do Brasil.

    Diante desse cenário, a política industrial verde e focalizada não é apenas uma escolha estratégica, mas um imperativo para proteger o Brasil de choques macroeconômicos e geopolíticos, garantindo que os investimentos do Estado sejam mais seguros e eficazes e que gerem engajamento do setor privado. O sucesso da NIB dependerá da capacidade do país de apoiar a sua política industrial com preços macroeconômicos estáveis e com uma diplomacia pragmática, garantindo acesso a mercados, estimulando a expansão e consolidação de sua base produtiva e alavancando o potencial do país. O êxito do atual projeto industrializante, portanto, não depende apenas de escolhas de política econômica e setorial, mas também da capacidade do Brasil de navegar em um ambiente global em transformação—cujo ciclo atual, a princípio, o favorece.

    Leia o relatório completo: “Nova política industrial para um novo mundo: aproveitando as oportunidades do Brasil na transição energética”.

  5. Estado e desenvolvimento

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    Nas últimas décadas, afirmou-se uma retomada da política industrial na economia mundial. Sua base essencial foi a reação dos Estados Unidos à ascensão da China, cuja produção industrial, quer medida pelo valor da produção total, quer pelo valor adicionado, superou a estadunidense. Essa é uma circunstância inteiramente nova para a economia global, já que a polarização entre os Estados Unidos e União Soviética—que perdurou de 1945 até a diluição do bloco soviético em 1991—era essencialmente política: a disputa pela tecnologia mais avançada se circunscrevia ao terreno das armas. A nova polarização em torno da tecnologia nem sempre é destacada nas análises geopolíticas, que sublinham a fragmentação mundial e a emergência de diversas plataformas de negociação, como o G20 e os BRICS, por exemplo. Entretanto, quando se hierarquiza a disputa a partir da competição pelas tecnologias centrais, o antagonismo que se impõe é a entre os EUA e a China. Os demais países reagem a esse confronto.

    A retomada da política industrial ganhou maior legitimidade e abrangência nos EUA e em diversos países da União Europeia (UE), ainda que neste continente o retorno do planejamento industrial priorize a redução das emissões de carbono. Na China, o planejamento e as políticas industriais verticais foram essenciais à transição iniciada por Deng Xiaoping em 1978, modelo que marcou também os grandes saltos industriais ocorridos no Japão, na Coreia do Sul e em Taiwan. Estratégias semelhantes, ainda que com menor capacidade de coordenação, também se difundiram em diversos países da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) e especialmente na Índia. Os últimos anos marcam, portanto, uma retomada da política industrial entre países que dela se afastaram no auge do neoliberalismo e sua evolução como ferramenta econômica entre países que historicamente a praticaram.

    Em outros países periféricos, entre eles o Brasil, a reação à ascensão chinesa foi distinta. Se no âmbito político o progresso chinês ampliou a capacidade de negociação internacional por meio da criação de plataformas como os BRICS (bloco em processo de expansão e diversificação geográfica), no âmbito econômico, contribuiu para uma evolução contraditória entre os planos da macroeconomia, da estrutura produtiva e do meio ambiente. A ascensão chinesa favoreceu a redução das restrições de balanço de pagamento e a expansão da demanda agregada—o chamado “efeito demanda”.1 No entanto, também ampliou a primarização da atividade econômica, o que tornou o Brasil fortemente dependente em commodities, na acepção da UNCTAD. Essa mudança na pauta exportadora não decorreu exclusivamente de características estruturais e das políticas econômicas adotadas internamente, mas se afirmou a partir da evolução dos mercados externos, o que também contribuiu para a ampliação do processo de desindustrialização e desnacionalização da economia.

    O desenvolvimento chinês gerou impactos contraditórios para o Brasil, contribuindo para a configuração de um modelo de crescimento distinto do que marcou a fase mais industrializante do país—sobretudo na década de 1970—, mais convergente com o seu padrão histórico, assentado na especialização primário-exportadora. Esse padrão vem perseverando em que pesem as diversas políticas industriais introduzidas—ainda que de forma fragmentada—em todos os governos do Partido dos Trabalhadores (PT), incluindo o atual, porque criou coalizões sociopolíticas que dificultam muito um processo de mudança estrutural. O desafio atual é construir uma trajetória de desenvolvimento sustentável que, ao mesmo tempo, gere emprego e renda, reduza as desigualdades sociais e leve a uma redução significativa do desmatamento, a principal contribuição do país à mudança climática. Promover essas transformações implica também a retomada e rediscussão das relações do Brasil com a China. Xi Jinping esteve no Brasil em novembro de 2024 para a reunião do G20. Há uma discussão em curso sobre novas iniciativas de cooperação, inclusive dos termos de um eventual ingresso no Brasil na Iniciativa Cinturão e Rota, que já envolve uma centena de parceiros (na América Latina, quase todos os países estabeleceram memorandos de entendimentos, com exceção de Brasil, Colômbia e México).

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    A crescente rivalidade entre EUA e China é comumente atribuída a mudanças no plano da geopolítica. Mas a virada essencial se projetou no momento em que a complementaridade econômica estabelecida entre os países nos anos 1990 foi extinta,2 dando lugar ao antagonismo entre interesses nacionais, assentado não apenas numa perspectiva geopolítica distinta, mas também nos interesses e estratégias de grandes grupos econômicos—privados e estatais. Enquanto havia ampla complementaridade entre as empresas chinesas, especializadas na produção em atividades intensivas em mão de obra, e as estadunidenses, detentoras de marcas e tecnologia, as relações econômicas eram apoiadas por lobbies no Congresso americano que garantiam à China a renovação do status de “Nação mais Favorecida” no GATT.3 Com o catch-up tecnológico chinês e a estratégia voltada à tecnologia endógena adotada nos anos 2000, pressões internas para o endurecimento comercial contra a China passaram a ser exercidas nos EUA pelas mesmas empresas que antes apoiavam o regime chinês. Empresas estadunidenses desfizeram seus lobbies e passaram a endossar a posição mais belicista do Pentágono contra o país asiático. 

    A mudança de percepção dos grupos econômicos a respeito da China está por trás da retomada da política industrial americana. Trata-se de uma perspectiva clássica de nacionalismo econômico, defendido pelos governos e apoiado pelas empresas que experimentam ameaças a suas parcelas de mercado. Nos documentos que definiram a estratégia econômica do Joe Biden, defendia-se que os EUA precisavam adotar uma moderna estratégia industrial adequada a tempos de competição estratégica com grandes potências. Essa argumentação está presente no preâmbulo das leis de investimentos de emprego e infraestrutura, de criação de incentivos para a produção de semicondutores e da lei de redução da inflação, aprovadas entre 2021 e 2022.4 A digitalização e as tecnologias verdes são consideradas estratégicas. Embora os Estados Unidos tenham uma posição muito superior à da China na indústria de semicondutores (ainda que o país asiático venha evoluindo muito rapidamente), nas áreas de tecnologia verde, a China lidera com grande capacidade de se tornar um produtor praticamente monopolista em diversas áreas. Como a evolução dessas tecnologias depende do acesso a minerais estratégicos (como as terras raras, o lítio, o nióbio etc.), o  próprio conselheiro de segurança nacional dos EUA, Jake Sullivan, destacou o risco de que as cadeias de suprimento de energia limpa sejam armamentizadas—como ocorreu com o petróleo nos anos 1970 ou com o gás natural na Europa em 2022.

    É no setor de semicondutores que se localiza a disputa tecnológica contemporânea mais importante na economia global, e é nessa cadeia de suprimentos que os EUA tem usado todo o seu arsenal de políticas mercantilistas—entre elas, estratégias que poderiam ser interpretadas como medidas de sabotagem visando minar a capacidade de produção e de progresso tecnológico chinês. As políticas estadunidenses de semicondutores e outros materiais estratégicos possuem elementos compulsórios que, em nome da segurança nacional, buscam disciplinar os mercados. Elas mostram uma vez mais o acerto da percepção de Adam Smith, de que a segurança nacional vem na frente dos interesses do mercado. Essas políticas recebem, evidentemente, diversas críticas de economistas liberais e de instituições como a OMC, mas fato é que, tanto no passado como agora, o governo dos EUA promove ou desrespeita as leis comerciais internacionais segundo seus interesses domésticos, quase sempre referidos como elementos de segurança nacional.

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    A mudança climática assumiu uma dimensão essencial na reconfiguração da política industrial contemporânea, mas se assentou num momento de grande acirramento de conflitos econômicos e geopolíticos: ao mesmo tempo em que a redução dos índices de CO2 constitui um bem público universal, o mundo se encontra imensamente fragmentado e desigual em termos de renda e de condições de vida, desigualdade que aumentou entre e intrapaíses. Isso torna muito difícil estabelecer uma mesma régua para as políticas universais que o planeta exige, na medida em que os países possuem condições muito diferenciadas. Mesmo assim, há caminhos de planejamento doméstico que podem abrir portas para países periféricos. 

    A política industrial de hoje, assim como aquela que se afirmou historicamente, inclui uma grande variedade de instrumentos, como financiamentos diferenciados do comércio externo, empréstimos governamentais, prioridades estabelecidas por bancos de desenvolvimento, assistência financeira diferenciada nos mercados internacionais, compras públicas voltadas para a produção doméstica, garantias de empréstimos e tarifas diferenciadas. A priorização de atividades econômicas estratégicas também está presente em quase todas as experiências nacionais. O que há de comum entre esses instrumentos é que eles possuem uma forte dimensão política, de forma que, para serem adotados de forma coesa e eficaz, necessitam reunir recursos políticos para sustentar, em nome de uma perspectiva geral do país, escolhas que não necessariamente se confundem com aquelas tomadas pelo mercado, mesmo em relação a setores cujos preços podem ser alterados por decisões políticas.

    Algumas políticas recentemente implementadas na China e na Índia revelam o amplo protecionismo que veio se afirmando no planejamento industrial asiático. Na década de 2010, a brasileira Embraer, por exemplo, começou a produzir jatos comerciais na China. Dez anos depois, decidiu fechar as operações porque o governo chinês estava mais interessado na promoção de um avião com tecnologia nacional e criou um conjunto de circunstâncias comerciais e institucionais que tornavam não competitivos os custos de produzir os aviões da Embraer no país. Um outro exemplo fundamental: a China é talvez o maior produtor das terras raras do mundo. Já nos anos 1990, Deng Xiaoping observou que o país não tinha petróleo, mas tinha esse recurso estratégico composto por diversos minerais utilizados em painéis solares, motores elétricos, semicondutores, aviônicas e afins. No início, a China se tornou um grande exportador, mas posteriormente reduziu substancialmente as exportações, desenvolvendo o downstream de toda a cadeia com a produção de células fotovoltaicas e painéis solares. Recentemente, a Indonésia proibiu a exportação de cobalto e, com isso, atraiu diversas firmas chinesas para produzir baterias no país. Nas últimas décadas, a Índia também adotou um grande programa de estímulo à aviação doméstica por meio de compras governamentais de aviões de guerra, estabelecendo condicionalidades que favorecem fornecedores locais e estimulando a exportação de partes, componentes e aviões acabados. A partir desta política, a Índia se transformou num significativo exportador de aviões. 

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    A evolução da política industrial nos EUA e na Europa e as políticas nacionais-desenvolvimentistas voltadas à inovação, industrialização e diversificação produtiva na Ásia contrastam fortemente com a direção de política econômica que se consolidou no Brasil. O país se tornou um grande exportador de petróleo, soja, carne, ferro e diversos outros minerais, e um grande importador de bens de capital e eletrônicos procedentes da China.5

    No Brasil, a discussão predominante sobre a desindustrialização se baseia essencialmente na parcela do valor da transformação industrial no PIB. Mas essa é uma medida imprecisa se não se controlar as outras variáveis relevantes que afetam esta razão, como as transformações em outros setores e a dinâmica do crescimento da economia mundial. Em quase todos os países ricos em recursos naturais, houve tanto uma queda na parcela da manufatura quanto um aumento na parcela das exportações primárias em relação à de manufaturados. Medidas como a participação do valor adicionado do setor manufatureiro nacional no setor manufatureiro mundial são menos ambíguas: no Brasil, entre 2012 e 2022, houve um declínio de 0,73% ao ano.6

    Embora a questão da desindustrialização tenha sido amplamente discutida no país, há pouca ênfase sobre o processo da desnacionalização. Na última década, o Brasil figurou como um dos maiores recipientes mundiais de investimento direto estrangeiro (IDE). Em todo o mundo, esse processo de desnacionalização tem implicações sobre os limites das políticas industriais destinadas a promover as empresas nacionais. A baixa presença dessas empresas nas áreas mais distantes dos recursos naturais dificulta, no plano político, a adoção de políticas industriais voltadas aos novos setores e ao processo de inovação. 

    A retomada de um programa industrializante é, portanto, um desafio central, e enfrenta velhos e novos obstáculos. Em primeiro lugar, integrar as velhas cadeias produtivas que foram desfeitas e reduzir o déficit de infraestrutura básica constitui uma antiga tarefa desenvolvimentista, mas que se afirma hoje num contexto bastante distinto. O Brasil está comprometido no Acordo de Paris e estabeleceu uma meta de emissão líquida zero até 2050. Ao mesmo tempo, precisa resgatar o atraso tecnológico no setor manufatureiro. Face a estes desafios, o país conta com alguns ativos muito positivos, como a matriz energética limpa. Com efeito, para os grandes países que mais crescem no mundo, como a China e a Índia, reduzir a dependência do carvão na matriz energética já teria significativo impacto para a redução da emissão de CO2. O Brasil, com sua base hidrelétrica maior, e agora contando uma forte expansão de parques eólicos e energia solar, pode viabilizar um aumento da produção industrial com uma energia muito mais limpa.7 A questão da eletricidade no país, no entanto, é não apenas relacionada à expansão da oferta, mas ao preço. A energia no Brasil é cara e a política de preços é complexificada diante dos processos de privatização da Eletrobras e do tipo de diversificação e composição atual da oferta, com a presença significativa, para além da energia hídrica, da eólica e da solar e das fontes baseadas em gás que as complementam. Dado os limites da hidroeletricidade, a expansão da oferta demandará mais investimentos nas fontes renováveis, e reduzir o preço da tarifa é um desafio distributivo fundamental.8

    Ainda assim, o país reúne boas possibilidades na produção de veículos elétricos, principalmente de motores híbridos. Hoje, o Brasil exporta para a China manganês, nióbio, níquel, lítio, grafite e bauxita. A questão relevante é internalizar segmentos importantes das cadeias produtivas destes veículos. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) de 2023 e a Nova Indústria Brasil (2024) já incluem uma política de industrialização do lítio. Embora em pequenas dimensões, a chinesa BYD começou a produzir baterias na zona franca de Manaus, sinalizando perspectivas para um programa de produção industrial combinando motores elétricos com o etanol e o biodiesel.

    No entanto, para além da questão industrial, o desafio ambiental principal do país não é representado pelas emissões relacionadas à matriz energética, mas por aquelas provenientes do desmatamento. O Brasil é um razoável emissor de gases de efeito estufa. Do ponto de vista setorial, a agricultura e a pecuária são os grandes responsáveis, e o uso e manejo de terras e o desmatamento constituem as principais externalidades de sua expansão. O forte desmatamento ocorrido no governo de Jair Bolsonaro deveu-se à desregulação que favoreceu uma expansão selvagem. Com o novo mandato de Lula, em 2023, houve redução do desmatamento e uma retomada de mecanismos de fiscalização. Esta evolução positiva, entretanto, é insuficiente e tende a ser cada vez menos significativa se as trajetórias de expansão e acumulação predominantes permanecerem inalteradas. A dificuldade desta questão é que o seu enfrentamento confronta o poder político dos grandes proprietários do agronegócio. O Brasil já aprovou a criação de um mercado de carbono, mas, em razão da força do agro no Congresso, o sistema “cap and trade” proposto exclui a agricultura, responsável pela maior emissão de gases.9

    O que distingue hoje a experiência dos EUA, da China e de diversos países asiáticos face aos desafios comerciais e tecnológicos é um comprometimento forte do governo e de seus órgãos de planejamento com uma política industrial voltada à inovação e à mudança estrutural. Nesses países, a política industrial se afirmou como política econômica prioritária. No Brasil, o PAC, a Nova Indústria Brasil e o Plano de Transformação Ecológica (2023), bem como as cartas de intenção visando a cooperação tecnológica com a China assinadas em 2024, procuram responder a estes desafios a partir de uma realidade econômica caracterizada pela desindustrialização e pela forte dependência de commodities na pauta exportadora. Esses programas priorizam e elegem a infraestrutura, o desenvolvimento produtivo, a reindustrialização a diversificação exportadora, a digitalização, a inteligência artificial, o complexo industrial da saúde, a descarbonização e a bioeconomia como áreas prioritárias para a alocação de investimentos e esforços de pesquisa e desenvolvimento. A questão fundamental é que, para serem eficazes e se transformarem em projetos de investimento com impactos sobre a estrutura produtiva, além de coordenação, esses programas requerem escala, recursos fiscais, créditos direcionados, políticas comerciais estratégica e mecanismos de indução, como compras governamentais voltadas para a inovação. 

    Ao longo dos governos anteriores do PT, existiram nominalmente diversas políticas industriais voltadas à mudança estrutural. Entretanto, implementadas em um período caracterizado por elevada expansão do agronegócio exportador, essas políticas se revelaram muito frágeis para confrontar os processos de desindustrialização e regressão da estrutura industrial. Os investimentos em infraestrutura—base essencial para a produtividade sistêmica do país—, objetivo central do novo PAC, iniciara, alguma retomada, mas em patamar estruturalmente baixo face às necessidades brasileiras (tendo em vista sua longa estagnação), especialmente se comparados com os países em transformação. Se, nos anos 1970, esses investimentos atingiram cerca de 10% do PIB, hoje, representam aproximadamente 2,6%, e a expectativa de expansão depende em grande parte de incertas iniciativas baseadas em regime de parcerias público-privadas. Sem uma elevação da capacidade de investimento do Estado (os da União se mantêm estagnados há anos), qualquer processo de transformação estrutural ou não inicia ou ocorre de forma desequilibrada e assimétrica.

    A inclusão dos investimentos públicos em infraestrutura estratégica—como os do PAC—em metas fiscais sobre despesas primárias—como a que vigora no país—é um limite que torna a expansão de gastos dessa natureza dependente de fluxos privados de investimentos e IDEs que dificilmente atendem, em termos de volume ou direção, o processo de transformação desejada. É indiscutível que o BNDES, após uma sequência de governos na qual perdeu o seu foco histórico na indústria e reduziu sua importância como emprestador de longo prazo, assumiu no terceiro mandato de Lula um novo protagonismo, com forte comprometimento com a industrialização e com a mudança estrutural, desenvolvendo iniciativas financeiras em linha com as prioridades estabelecidas pela Nova Indústria Brasil e pelo Plano de Transformação Ecológica. Ainda assim, sua expansão como investidor de longo prazo encontra limites em relação à dependência do Tesouro Nacional. De toda forma, o impacto do banco de desenvolvimento sobre o processo de mudança depende não apenas de novos mecanismos de financiamento que permitam uma expansão do crédito, mas também das decisões de investimento privado e de empresas estatais.

    Além disso, a retomada da política industrial requer maior interdependência público-privada, de forma a viabilizar uma articulação maior entre governo, empresas de tecnologia, universidades e laboratórios de pesquisa. Existem importantes iniciativas de negociação com empresas estrangeiras, a  exemplo da parceria da BYD com laboratórios da Universidade de Campinas para o desenvolvimento de tecnologias de painéis solares.10 O Brasil é hoje um grande importador de painéis solares que, por sua vez, constituem o principal produto exportado pela China. A produção local destes equipamentos e a internalização de parte desta cadeia produtiva, assim como a produção de baterias e de parte da cadeia produtiva de veículos elétricos e híbridos, são oportunidades que o Brasil pode aproveitar utilizando instrumentos como tarifas, financiamento e compras governamentais. Há também perspectivas relacionadas a investimentos da firma chinesa em big data e inteligência artificial, com importante potencial de impacto na infraestrutura da tecnologia da informação e comunicação (TIC).

    Outra oportunidade para o Brasil é a produção em grande escala de bioetanol, biodiesel, biocombustível de aviação e hidrogênio verde, tendo em vista a demanda mundial e as capacitações tecnológicas já existentes. Em geral, as áreas prioritárias destacadas nos memorandos de entendimento de cooperação tecnológica com a China, especialmente a bioenergia e a TIC, poderiam reforçar a articulação entre pesquisa e investimento no país. Tendo em vista a crescente rivalidade entre os EUA e a China, o Brasil poderia aumentar sua capacidade de negociação comercial e diplomática para atrair projetos de alta tecnologia das potências rivais e aumentar o conteúdo local dos investimentos das empresas chinesas e norte-americanas, numa direção semelhante à seguida pelos próprios EUA, China e outros países asiáticos. A expansão desses projetos, entretanto, depende não apenas da capacidade de negociação, mas das iniciativas e contrapartidas financeiras internas, da ampliação dos recursos disponíveis no BNDES e na Finep11 e daqueles destinados aos laboratórios de pesquisa das universidades. 

    Por fim, há uma questão institucional sobre a relação entre Estado e mercado. Como se discutiu anteriormente, a política industrial nos EUA, na China e nos países asiáticos incluiu não apenas a discriminação seletiva de setores e atividades, mas também a política de compras públicas voltadas para as inovações. No Brasil, as compras públicas foram  historicamente importantes em diversas áreas, a exemplo do setor petroquímico nas compras relacionadas à saúde pública. Mas, nos últimos tempos, têm sido uma política fortemente dominada por questões de eficiência e de transparência,12 visando essencialmente a obtenção menores preços, sem maiores considerações de médio prazo para o desenvolvimento tecnológico. Em síntese, o problema central percebido há algum tempo por Maria da Conceição Tavares13 para um renovado Estado Desenvolvimentista parece ainda bastante atual:

    A questão é o próprio poder do Estado, […] não basta uma burocracia de planejamento, não bastam bancos e empresas estatais. Para que um plano de desenvolvimento funcione é necessário que haja um grau de articulação econômica estrutural e um controle sobre os investimentos e as políticas públicas globais que, por sua vez, implicam um elevado grau de articulação política no seio do Estado e alguma forma de pacto social.

     

  6. Deslegitimado pela lei, abandonado pela base?

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    A reforma trabalhista de 2017 no Brasil se insere em um movimento de rebaixamento de direitos trabalhistas verificado em escala internacional nas duas primeiras décadas do século XXI e, especialmente, após a crise financeira de 2008.1 Esse movimento representou um retorno à agenda dos anos 1990, quando a ascensão de governos neoliberais colocou na ordem do dia políticas de flexibilização e desregulamentação das relações de trabalho sob o pretexto de que seriam imprescindíveis para combater o desemprego e a informalidade. Apesar da ineficácia das medidas então adotadas, elas vêm sendo, há mais de quatro décadas, reiteradamente apresentadas como forma de estimular o crescimento econômico e de solucionar os problemas do mercado de trabalho em diferentes países.

    Há uma série de pesquisas que mostram o equívoco dessas teses e os impactos negativos de políticas que reduzem o papel da regulação pública e das instituições encarregadas de proteger os trabalhadores e as trabalhadoras.2 As reformas aprofundaram a precarização do trabalho devido à proliferação de contratos instáveis e que garantem menos direitos, geraram insegurança para quem trabalha e aumentaram as desigualdades sociais afetando, consequentemente, a organização e a representação sindical. O caso brasileiro não fugiu a essa regra. Cinco anos após a implementação da reforma, as taxas de sindicalização no país se reduziram para 8,4%, o que equivale a 8,4 milhões de pessoas sindicalizados em 2023, em um universo de 100,7 milhões de ocupados. É o menor percentual da série iniciada em 2012, quando a taxa de sindicalização era quase o dobro (16,1%).3

    Vários fatores, simultâneos e interrelacionados, atuam para produzir esse resultado, que não pode ser atribuído exclusivamente à reforma trabalhista. São fatores de ordem econômica, política e ideológica, que contribuem para deslegitimar e desacreditar os sindicatos, levando à indiferença, quando não ao afastamento, dos trabalhadores em relação às organizações constituídas para representá-los. Mas ainda que a reforma não seja um fenômeno isolado, nem se limite às medidas adotadas em 2017, ela constitui um marco e uma dimensão fundamental desse processo. A taxa de sindicalização caiu de 16% para 14,4% entre 2012 e 2017 e para 11% em 2019, o que indica o impacto decisivo da reforma nessa trajetória de queda.4 O número dos sindicalizados diminui em todos os setores de atividade econômica, inclusive no setor público, onde a sindicalização é tradicionalmente mais elevada, passando de 28,1% para 18,3% entre 2012 e 2023. A situação é mais dramática entre os trabalhadores precários, pois a fragilidade das ocupações, embora não impeça a sindicalização, a torna mais difícil: os empregados no setor privado sem carteira de trabalho assinada registram uma taxa de sindicalização de 3,7%, os conta própria de 5,0% e os empregados em serviços domésticos de 2,0% em 2023.5

    A redução na taxa de sindicalização é mais expressiva entre os jovens: em 2022, a sindicalização da população situada na faixa etária entre 15 e 29 anos encontrava-se em 5,0%.6 Muitos jovens ingressam no mercado de trabalho em ocupações precárias e não conseguem se inserir em vínculos mais estáveis e protegidos com o passar dos anos. Isso os torna suscetíveis à ideologia do empreendedorismo e refratários à organização coletiva, impondo desafios de monta ao movimento sindical.

    A reforma trabalhista contribuiu para esse cenário de diversas maneiras. Em primeiro lugar, porque os contratos precários inibem a organização do trabalhador, dados os baixos salários, a maior rotatividade no emprego e a baixa cobertura de direitos a eles associados. Em segundo lugar, porque a multiplicação de formas contratuais dificulta a percepção de um sentido de pertencimento comum e, portanto, a criação de uma identidade coletiva. Em terceiro lugar porque, embora o foco da reforma de 2017 sejam os direitos trabalhistas, ela tem uma dimensão claramente anti-sindical, com várias medidas que visam contornar o papel dos sindicatos.

    De volta aos anos 1990?

    As mudanças aprovadas no governo Temer em 2017 retomaram, em grande medida, projetos formulados nos anos 1990 e argumentos disseminados desde então para promover a perspectiva de flexibilização de direitos. A lei 13.467 (que instituiu a reforma) foi antecedida pela lei 13.429, que autorizou a ampliação das possibilidades de terceirização, complementando o pacote de mudanças adotadas em 2017. Ambas fundamentam-se na premissa de que a CLT é ultrapassada e arcaica, caracterizada por um excesso de leis que “engessam” a liberdade patronal, restringem a livre iniciativa e desincentivam a contratação.

    Partindo de dados concretos, relacionados às transformações do capitalismo, às mudanças na estrutura produtiva e às inovações tecnológicas -intensificadas com a uberização e o desenvolvimento da inteligência artificial -constroem-se mistificações, a exemplo da necessidade imperiosa de “modernizar” as relações de trabalho, expressão frequente entre empregadores, políticos e articulistas da grande imprensa em suas manifestações favoráveis à reforma. O discurso da modernização é uma forma de justificar a diferenciação de direitos e a adaptação das normas trabalhistas às condições econômicas dos distintos setores de atividade. Ele se associa à tese da segurança jurídica, invocada como um mantra para atacar uma legislação trabalhista supostamente promotora de injustiças, e para denunciar o “ativismo” dos tribunais que, conforme a visão dos empregadores, desrespeitariam a lei e a intenção dos legisladores ao proferir suas decisões. O pressuposto de que o entendimento direto entre as partes interessadas possibilitaria às empresas “empreender com segurança”, “atendendo as vontades e as realidades das pessoas”7 nada mais é do que uma forma de legitimar a substituição da lei pelo contrato -um contrato a ser celebrado, se possível, de modo individual e não coletivo -desresponsabilizando as empresas pelo conjunto da força de trabalho que emprega e o Estado pelo bem-estar dos cidadãos.

    Todos esses argumentos foram sustentados pelo ministro Ives Gandra Martins Filho, ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST) por ocasião das mudanças introduzidas em 2017. Segundo ele, a reforma asseguraria “prestígio à negociação coletiva” e “quebra[ria] a rigidez da legislação”. Além disso, a máxima de que “é preciso flexibilizar direitos sociais para haver emprego” foi novamente entoada, sob a justificativa de que “nunca vou conseguir combater desemprego só aumentando direitos”. Sem Estado e sem direitos, o que resta ao indivíduo é a capacidade de empreender e competir, conforme a lógica da concorrência e as regras do mercado.

    Dimensões da precarização

    A reforma de 2017 atacou as instituições públicas de regulação do trabalho, para evitar ou minimizar sua intervenção nas relações de trabalho. Assim, as normas relativas à saúde e à segurança do trabalhador foram afrouxadas, a fiscalização das empresas reduzida e o acesso à Justiça do Trabalho dificultado. Ela também legalizou práticas outrora consideradas ilegais, reconhecendo novas modalidades de contratação precárias. Algumas dessas modalidades possibilitam a formalização do trabalho, mas expõem o trabalhador à insegurança e à vulnerabilidade. Esse é o caso do contrato intermitente, por meio do qual o empregador é autorizado a utilizar o tempo de trabalho de acordo com suas necessidades, sem que seja obrigado a garantir a seus empregados uma jornada definida e de lhes assegurar uma remuneração correspondente ao salário mínimo vigente. Por outro lado, algumas dessas formas de contratação fragilizam o vínculo de emprego. A possibilidade de contratar prestadores de serviços, como autônomos permanentes estimula a burla, pois permite a substituição de assalariados por falsos autônomos e transfere para o trabalhador, convertido em empreendedor de si mesmo, o ônus de assegurar sua proteção social.8

    Os contratos precários promovem a despadronização da jornada e da remuneração, uma vez que buscam eliminar os tempos mortos, considerados “não produtivos” na medida em que não contribuem para a valorização de capital. Ampliam-se as incertezas na vida de quem trabalha quanto às horas de trabalho, de repouso e ao rendimento a ser auferido ao final do tempo disponibilizado à empresa, já que a remuneração pode variar conforme a demanda por trabalho e o modo de se contabilizar a jornada. Assim, estar à disposição da empresa deixa de ser considerado tempo de trabalho, pois o relógio de ponto só começa a girar se as horas trabalhadas geram lucro ao empregador. Trata-se, portanto, de uma forma de aumentar a produtividade em detrimento das garantias e da proteção ao trabalhador.

    O rebaixamento da remuneração, de um lado, e a substituição de assalariados por autônomos, MEIs ou PJ, de outro, reduzem as contribuições previdenciárias, impactando as receitas da seguridade social. Nesse sentido, esses contratos afetam tanto os indivíduos contratados quanto a coletividade, já que o Estado perde recursos destinados ao financiamento de políticas públicas, o que fortalece o discurso em prol da austeridade. Desencadeia-se, assim, um processo contínuo de reformas no campo trabalhista e previdenciário, e de corte de gastos, especialmente no campo da saúde e da educação, restringindo os direitos sociais de gerações futuras. Além dos contratos precários diminuírem a arrecadação, os trabalhadores com vínculos precários têm dificuldades para contribuir de forma contínua e, sem acumular o tempo de contribuição necessário, não conseguem exercer seu direito à aposentadoria.

    A reforma também autorizou a inversão da hierarquia dos instrumentos normativos, permitindo que a norma menos favorável aos trabalhadores se imponha sobre as demais. Ao invés de fortalecer os sindicatos, essa medida possibilita a redução de direitos garantidos em lei com a anuência sindical. Isto porque a derrogação da lei pela negociação, que estava no horizonte dos “reformadores” desde a década de 1990, foi, finalmente, autorizada. Assim, a prevalência do negociado sobre o legislado não passa de artifício para ocultar o verdadeiro objetivo da reforma: reduzir os custos do trabalho, uma vez que até 2017 os acordos e convenções prevaleciam sobre a lei, desde que fossem mais favoráveis do que os patamares estabelecidos pela legislação. A descentralização da negociação passa a ser atrativa para os empregadores, já que os acordos não mais precisam necessariamente melhorar as condições de trabalho. Nesse sentido, o argumento do estímulo à negociação coletiva dissimula o alvo a ser alcançado com a negociação: a renúncia de direitos.

    Obstáculos à ação sindical

    A reforma esvazia as prerrogativas sindicais ao possibilitar a homologação da rescisão contratual sem a intermediação sindical. Ora, o acompanhamento dos sindicatos é fundamental para que o trabalhador não seja lesado e não abra mão de direitos no momento da demissão. O mesmo ocorre ao facultar, aos trabalhadores cujos salários são duas vezes superiores ao teto da previdência, a possibilidade de negociarem individualmente alguns direitos, supondo que são capazes de negociar em pé de igualdade com seus empregadores. A individualização da negociação promove a diferenciação entre os trabalhadores conforme seu poder de barganha e torna os sindicatos dispensáveis aos olhos do trabalhador. O deslocamento do lócus da definição das regras que regem a relação de emprego para o mercado, para âmbitos inferiores de negociação, como o interior da própria empresa ou até mesmo para indivíduos, reduz o poder dos sindicatos. Além disso, a possibilidade de se criar comissões destinadas a representar os trabalhadores no local de trabalho e a negociar em seu nome não apenas introduz uma concorrência com os sindicatos como amplia o poder do empregador de determinar unilateralmente as condições de contratação, uso e remuneração do trabalho.

    Ainda que algumas dessas formas de contratação, como o contrato intermitente, tenham pouca incidência no mercado de trabalho, o que demonstra a falácia de seu potencial de geração de empregos, elas trazem desafios significativos à organização sindical. A diversificação contratual -que ocorre inclusive no setor público, anteriormente protegido por um regime próprio de contratação-e a liberalização da terceirização de qualquer tipo de atividade minam as bases de representação, pois fragmentam e pulverizam os coletivos de trabalhadores. Ser assalariado, autônomo ou terceirizado altera as condições objetivas em que se trabalha e afeta as condições subjetivas dos sujeitos, incidindo sobre a forma pela qual eles se vêem (ou não se vêem) enquanto trabalhadores e trabalhadoras, as relações que estabelecem com seus colegas e sua disposição a aderir aos sindicatos. Enquanto os assalariados formais têm direitos assegurados, os autônomos em uma relação de emprego disfarçada trabalham sem direitos e sem proteção sindical e os tercerizados, via de regra, recebem salários mais baixos e menos benefícios que os assegurados pela empresa tomadora de serviços. Além disso, a terceirização fragmenta coletivos de trabalho em categorias profissionais distintas, o que, segundo a legislação sindical brasileira, faz com que sejam representados por sindicatos diferentes. Estes, via de regra, são mais frágeis do que aqueles que representam os não terceirizados e negociam convenções coletivas menos protetivas.

    O teletrabalho e outras formas de trabalho remoto -modalidades pouco praticadas nos primeiros anos pós-reforma, mas que se expandiram durante a pandemia da Covid 19 devido às exigências de isolamento social - acrescentam uma dificuldade adicional à capacidade dos sindicatos de organizar trabalhadores submetidos a diferentes formas de contratação: a dispersão territorial. O trabalho por plataforma também contribui para isso, bem como para o distanciamento dos trabalhadores em relação ao sindicato, uma vez que não estão reunidos em um mesmo local de trabalho, o que repercute sobre as formas de sociabilidade e a construção de redes de solidariedade, impondo obstáculos à organização e à ação coletiva.

    Outro aspecto a ser destacado é que a ideologia neoliberal sobre a qual a reforma está alicerçada difunde-se entre os trabalhadores, fomentando ilusões quanto ao poder das capacidades e liberdades individuais, alimentando expectativas de autossuficiência e o sonho de ter seu próprio negócio. Ao apregoar as vantagens do trabalho autônomo, a ideologia do empreendedorismo distancia o trabalhador da organização coletiva e da luta por direitos. Isso fragiliza o sindicalismo de duas formas: pelo estímulo ao individualismo e à competitividade, e pelo enfraquecimento da solidariedade, afinal, trata-se de assumir os riscos inerentes à livre iniciativa para conquistar uma posição no mercado. O empreendedorismo vem sendo usado para justificar a precariedade e o rebaixamento de direitos, e isso produz um efeito desmobilizador. Além disso, o culto à meritocracia torna os sindicatos, bem como qualquer forma de associação, supostamente desnecessários, já que tudo passa a depender do esforço e da competência dos indivíduos. Também é importante mencionar as campanhas de difamação dos sindicatos, as práticas antissindicais promovidas pelas empresas, bem como o próprio ambiente político-ideológico que se conformou a partir do crescimento do conservadorismo e da extrema direita, sobretudo durante o mandato de Jair Bolsonaro (2019-2022), marcado por posicionamentos contrários ao movimento sindical e a movimentos sociais progressistas.

    Mas nenhuma hegemonia é absoluta. Há rachaduras, fissuras, por meio das quais se constroem organizações e se realizam ações em defesa de direitos, embora não sem conflitos e contradições. Ao mesmo tempo em que sofrem o impacto da ideologia neoliberal, os trabalhadores vivenciam cotidianamente situações de exploração e precarização, o que lhes mostra a necessidade de se organizar para se manter no mercado de trabalho e reduzir sua vulnerabilidade. Ocorre que essa organização não se dá necessariamente sob a forma sindical. Os trabalhadores mais fortemente expostos ao trabalho precário, como os informais e falsos autônomos, vêm constituindo organizações alternativas aos sindicatos, como associações, cooperativas e coletivos. De um lado, há uma crença bastante difundida no Brasil de que os informais e autônomos não “têm direito” de se sindicalizar. De outro, verifica-se um movimento de deslegitimação e de rejeição da forma sindicato pois, dadas as suas condições de trabalho, os trabalhadores precarizados,      via de regra, não se sentem representados pelo sindicato. As próprias características da estrutura sindical brasileira contribuem para essa percepção, pois as regras que regem a organização sindical no Brasil facilitaram a existência de entidades cartoriais e burocratizadas,      ao assegurar o monopólio da representação na base e fontes seguras de financiamento, dos quais o mais importante era o chamado “imposto sindical”. Conforme visão bastante disseminada, os sindicatos seriam ineficientes, só estariam interessados em cobrar taxas dos filiados e em preservar sua estrutura burocrática, sem defender os interesses desses setores. 

    Mas quais seriam esses interesses e a quem devem ser apresentados? Não há consenso a esse respeito. Enquanto a experiência de uma parcela dos informais e falsos autônomos lhes permite desmistificar o discurso da autonomia e da liberdade de empreender, reivindicando seu reconhecimento como trabalhadores junto ao Estado e ao patronato, outros mantêm-se presos a essa perspectiva, constituindo associações não para defender direitos trabalhistas, mas para melhorar sua situação “no mercado”, em um modelo semelhante ao de um clube de vantagens e benefícios para produtores e consumidores: no caso de parcela dos entregadores e motoristas de aplicativos, por exemplo, trata-se de obter descontos na compra de motos e automóveis, no preço da gasolina, além de seguros de automóvel, motocicleta, de vida e para as mercadorias transportadas. Para outras categorias, como as cuidadoras de idosos e crianças, destacam-se iniciativas voltadas para promover a valorização profissional, a prestação de serviços ou até mesmo a intermediação da força de trabalho.9 Ou seja, há uma diversidade muito grande de situações e perspectivas a serem consideradas, que compreendem tanto os valores da solidariedade quanto os benefícios individuais como razões para a organização coletiva. Do mesmo modo que há sindicatos mais ou menos representativos, mais ou menos atuantes e com perfis político-ideológicos distintos, há diferentes tipos de associação, sendo que algumas inclusive não descartam a possibilidade de vir a se transformar em sindicatos para melhor exercer a tarefa de organizar, representar e mobilizar os trabalhadores.  

    As mudanças na estrutura ocupacional e a ampliação de modalidades de contratação autorizadas pela reforma trabalhista, associadas à concorrência advinda de outras formas de organização, contribuem para reduzir a taxa de sindicalização, o que ilustra parte das dificuldades enfrentadas pelos sindicatos. Outros obstáculos se expressam na redução dos acordos e convenções coletivas. A despeito da retórica de que a reforma representaria um estímulo à negociação coletiva, diversas pesquisas realizadas a partir do Mediador, sistema de registro dos instrumentos coletivos mantido pela Secretaria de Relações de Trabalho do governo federal, demonstram que o número de instrumentos normativos negociados diminuiu após a reforma, perfazendo uma queda de 19% no caso dos acordos e de 10% no caso das convenções coletivas, entre 2012 e 2022.10

    Além das dificuldades para fechar acordos, seus resultados tendem a ser piores. O processo de negociação é marcado por uma maior pressão patronal para instituir cláusulas que rebaixam as condições de trabalho, nos termos das mudanças introduzidas na legislação após a reforma. Observa-se a intensificação da negociação de temas de interesse patronal, com a retirada de cláusulas de interesse dos trabalhadores e a introdução de cláusulas desfavoráveis a eles. Ganham proeminência os temas relativos às formas de contratação, especialmente a terceirização, e à jornada de trabalho, com destaque para a introdução da jornada 12×36, a redução do intervalo intrajornada e facilidades para a implantação de banco de horas, inclusive por acordo individual, possibilidade assegurada pela reforma.11

    Por outro lado, muitos acordos e convenções coletivas passaram a prever taxas, a serem cobradas de todos os trabalhadores beneficiados pelo processo de negociação, como uma espécie de contrapartida pelo trabalho realizado pelos sindicatos. A chamada taxa negocial tornou-se uma estratégia para tentar compensar a perda de receita, pois a reforma condicionou a cobrança do imposto sindical- uma das três contribuições previstas na legislação brasileira- à anuência prévia por parte do trabalhador. Essa medida seguiu as diretrizes de decisões do judiciário que, desde 1998, no âmbito do TST, e a partir de 2003, no STF, restringiu a cobrança das duas outras contribuições compulsórias (a confederativa e a assistencial) aos trabalhadores filiados, por entender que sua obrigatoriedade fere a liberdade de sindicalização. A decisão do STF foi revista em 2023, pois com o fim da obrigatoriedade do imposto a partir da reforma, os sindicatos perderam praticamente todas as fontes de financiamento anteriormente garantidas, só lhes restando a mensalidade paga voluntariamente por um número cada vez mais reduzido de sindicalizados.12A partir dessa revisão, os sindicatos podem cobrar contribuições de todos os trabalhadores, mesmo dos não filiados, desde que aprovadas em assembleias de base.

    A redução de recursos afetou a capacidade do sindicalismo promover ações junto a sua base e apoiar movimentos sociais na defesa de direitos de cidadania. Os sindicatos passaram a reduzir suas despesas, demitindo funcionários, vendendo patrimônio, cortando serviços e gastos com comunicação, ao mesmo tempo em que adotaram iniciativas visando aumentar sua receita, a exemplo de campanhas de sindicalização. Contudo, a filiação de novos trabalhadores esbarra em vários obstáculos, como a proliferação de diferentes tipos de contrato e as questões de ordem subjetiva anteriormente apontadas, que levam à indiferença ou à uma visão negativa sobre os sindicatos.13

    Como enfrentar a reforma e os desafios que se apresentam ao movimento sindical?

    Desde 2017, a reforma tem suscitado críticas por parte do movimento sindical. Embora uma parcela não desprezível dos dirigentes sindicais tenha assumido o discurso da modernização das relações de trabalho e se iludido com a ideia de que a prevalência do negociado sobre o legislado pudesse fortalecer os sindicatos, a revogação da reforma foi uma proposta assumida por ampla maioria.14

    A proposta de revogação consta na Agenda Prioritária da Classe Trabalhadora: democracia, soberania e desenvolvimento com justiça social, documento assinado por sete centrais sindicais15 e apresentado aos candidatos às eleições de 2018. O documento em questão defende a revogação dos aspectos negativos da reforma, o que sugere duas possibilidades: a existência de aspectos positivos na mesma ou a ausência de consenso entre as centrais com relação ao que deve ser revogado.

    A posição favorável à revogação dos “marcos regressivos” da reforma foi retomada em plena pandemia, durante a Conferência Nacional da Classe Trabalhadora (CONCLAT), organizada pelo Fórum das Centrais Sindicais para debater Emprego, Direitos, Democracia e Vida.16 A bandeira da revogação ressurgiu com força na campanha presidencial de 2022. Depois de ter acenado com a possibilidade de incluir a revogação em seu programa de governo, Lula recuou, passando a falar em rever pontos da reforma, para contemplar os setores do movimento sindical que defendiam essa posição.17 Depois de assumir o governo, Lula criou um grupo de trabalho tripartite para debater um novo marco regulatório para as relações de trabalho, mas a discussão não avançou. A revogação continua a ser um projeto distante, pois nenhuma medida prática foi adotada nesse sentido.

    Enquanto isso, além da queda na sindicalização, os sindicatos continuam enfrentando dificuldades para mobilizar sua base. Isso é mais evidente quando se trata de direitos e pautas políticas mais amplas, já que a participação em manifestações tem sido muito pequena, o que revela um baixo engajamento em torno de demandas que extrapolam a esfera econômico-corporativa e uma tendência à despolitização. O fiasco do 1º de maio de 2024 foi expressão disso. A marcha a Brasília em defesa da pauta da classe trabalhadora, realizada no mesmo mês, também não empolgou, tendo reunido principalmente dirigentes e militantes sindicais. Mas a própria capacidade de mobilizar em torno de pautas diretamente relacionadas à categoria foi afetada. As greves, que haviam aumentado significativamente entre 2011 e 2016, passando de 555 a 2.114 ao ano, se reduziram drasticamente a partir de então, chegando a 649 em 2020, no auge da pandemia. Esse resultado está relacionado a uma série de fatores, como as mudanças estruturais no mercado de trabalho, agravadas pela crise econômica e pela própria crise sanitária, mas o aumento da informalidade e de vínculos de emprego disfarçados, potencializados após a reforma trabalhista, não pode ser desconsiderado nesse processo, uma vez que deixa os trabalhadores em uma condição mais frágil e vulnerável para aderir à luta reivindicativa. É claro que isso não os impede de fazer greve, como demonstra o “breque dos apps” realizado pelos entregadores em 2020, mas impõe desafios à sua organização. Apesar da recuperação dos indicadores de greve no pós-pandemia, eles ainda estão abaixo dos registrados entre 2013 e 2018: foram 1.132 greves em 2023.18 As greves mantêm a tendência de prevalência de pautas defensivas, em prol da manutenção das condições de trabalho vigentes na categoria ou contra o descumprimento de direitos. A intensificação da precarização do trabalho repercute no conteúdo das reivindicações apresentadas, bem como na duração das greves, que tendem a ser mais curtas, a maioria se encerrando no mesmo dia de sua deflagração.

    Outra questão a ser considerada diz respeito aos diferentes sentidos das mobilizações realizadas. As disputas em torno da regulação do trabalho por aplicativos nos permitem ilustrar as diferentes posições assumidas por sindicatos e associações constituídas para representar esses trabalhadores, divididas entre a defesa da CLT, do trabalho autônomo e de uma terceira via, que garanta algum nível de direitos. Depois de ter instituído um grupo de trabalho tripartite para elaborar propostas destinadas a regulamentar o transporte de bens, de pessoas e “outras atividades executadas por intermédio de plataformas tecnológicas”, o governo apresentou um Projeto de Lei Complementar (PLP 12/2024) restrito ao transporte de passageiros em veículos de quatro rodas e bastante controverso. Um contingente expressivo de trabalhadores tem recusado a regulamentação proposta, considerando que o modelo de “autonomia com direitos” defendido pelo governo representa um atentado à sua liberdade de empreender. Motoristas e entregadores, temerosos de que as regras propostas sejam estendidas a eles, promoveram manifestações em diversas capitais do país contra o projeto. Chama a atenção, nessas manifestações, não apenas as críticas àquilo que é considerado uma intervenção indevida do governo como também um rechaço aos sindicatos e centrais sindicais,19 que se apresentam como representantes desses trabalhadores na mesa de negociação, apesar da base não ser sindicalizada.

    É nesse sentido que afirmamos que o movimento sindical foi fragilizado pela legislação, mas também, de uma certa maneira, abandonado pelos trabalhadores que se propõe a organizar. Sucessivos movimentos de flexibilização e precarização do trabalho, cujo ápice foi a reforma trabalhista de 2017, enfraqueceram os sindicatos, que têm mostrado dificuldades para se reaproximar das bases, especialmente nos segmentos mais precarizados. Mas, apesar das dificuldades, os sindicatos não estão fadados ao desaparecimento. A julgar por uma pesquisa recente, parece haver espaço para a sindicalização crescer, pois 19% dos trabalhadores entrevistados “nunca participaram, mas gostariam de participar de algum sindicato”,20 o que revela um potencial de recuperação nos indicadores atuais. Além disso, a campanha contra a escala de trabalho 6 X 1, lançada pelo movimento Vida Além do Trabalho (VAT)21 pode ser uma oportunidade para o movimento sindical incorporar uma demanda que interessa aos setores precários, melhorando sua imagem junto a esses trabalhadores. Não se pode esquecer que a redução da jornada é uma bandeira histórica do movimento sindical e que a luta pela redução da jornada para 40 horas semanais sem redução salarial esteve presente na pauta das centrais desde o primeiro governo Lula. Não ter o protagonismo na condução da campanha deflagrada pelo VAT impedirá o sindicalismo de se somar a esse movimento?

    Este artigo retoma e atualiza argumentos desenvolvidos em outros textos, especialmente: Galvão, Andréia; Krein, José Dari. A contrarreforma trabalhista e a fragilização das instituições públicas do trabalho. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região. v.53, p.89-106, 2018. Galvão, Andréia.Reforma trabalhista: efeitos e perspectivas para os sindicatos In: José Dari Krein et al., (Org.) Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas: Curt Nimuendajú, 2019, p. 199-223.

  7. Transferência e transição

    Comentários desativados em Transferência e transição

    Nos últimos anos, a escalada das disputas comerciais com a China fez com que os Estados Unidos condenassem repetidamente a obrigatoriedade de que suas empresas transfiram tecnologia às parceiras chinesas se quiserem atuar no país asiático. A exigência enfrentou veemente oposição de Donald Trump e foi rotulada como “injusta” por Joe Biden. Do outro lado do Atlântico, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, declarou que a adoção de práticas dessa natureza ameaça a “segurança econômica e nacional” dos Estados europeus e alertou para a necessidade de medidas de “redução de riscos” para desvincular a economia europeia da chinesa. Segundo essa perspectiva, transferências tecnológicas são “imposições” feitas por um concorrente de peso.

    A exigência de que investidores estrangeiros ajudem países com níveis de renda mais baixos a reduzir a distância da fronteira tecnológica em troca de espaço para instalações ou acesso a mercados de trabalho, no entanto, não é nova. Na verdade, muitos dos países hoje industrializados empregaram precisamente essa estratégia quando se encontravam em patamares inferiores de industrialização. No momento em que o mundo todo se esforça (ainda que de forma desordenada) para reorientar práticas econômicas e frear a mudança climática, a crítica indiscriminada às transferências tecnológicas é particularmente equivocada.

    No Norte global, o novo consenso formado em torno da ação climática implicou o desenho de novas políticas industriais—consistentes essencialmente de incentivos e subsídios estatais—voltadas a estimular o desenvolvimento tecnológico e produtivo necessário para descarbonizar a economia. A maior parte do Sul global, entretanto, não tem capacidade financeira para adotar estratégias industriais semelhantes. A alternativa para esses países é apostar em uma abordagem regulatória que acolha o investimento estrangeiro e garanta que esse investimento transfira o conhecimento necessário para que os agentes econômicos domésticos inovem e galguem posições nas cadeias de valor. No século XX, foi precisamente essa a abordagem adotada por algumas das economias que registraram os processos mais acelerados de desenvolvimento, como Japão, Coreia e Taiwan: regulamentar a atividade das multinacionais para garantir transferências tecnológicas e ciclos virtuosos de transbordamento dessas tecnologias para outras atividades produtivas.

    A oposição do Norte global às transferências tecnológicas põe em xeque justamente essa alternativa. O argumento é que, ao se abrirem ao comércio internacional por meio da adesão à Organização Mundial de Comércio (OMC) e da assinatura de diversos tratados comerciais, os países do Sul se comprometeram a respeitar direitos de propriedade intelectual instituídos para garantir que os inovadores sejam beneficiados por suas invenções e, assim, incentivar o desenvolvimento tecnológico. Sob essa ótica, a “imposição” de qualquer forma de transferência tecnológica constitui uma prática “anticoncorrencial” que deve ser penalizada. O atual regime de direitos de propriedade intelectual consagra um sistema que inibe o desenvolvimento, em vez de impulsioná-lo.

    Propriedade intelectual e limites ao desenvolvimento tecnológico

    Os países do Sul global têm criticado esse regime comercial que interdita seu avanço tecnológico, formalizado pelo Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS, na sigla em inglês), assinado em 1995 e fiscalizado pela OMC. O acordo estabeleceu um programa ambicioso de alinhamento das proteções nacionais à propriedade intelectual aos padrões de referência mundiais. Esse sistema—apoiado pelo Norte—é amplamente bem-sucedido em difundir tais proteções mundo afora, mas também em barrar a atualização tecnológica do Sul ao aumentar os custos de aquisição de tecnologia. Em razão disso, o Sul denuncia as restrições provocadas pelos direitos de propriedade intelectual e reivindica acesso igualitário a inovações transformadoras.

    A campanha de “acesso a medicamentos” foi talvez o mais importante e bem-sucedido exemplo desse movimento contestatório. A rápida propagação do HIV na África subsaariana entre o final da década de 1990 e o início da década de 2000 mostrou que, na prática, o sistema de direitos de propriedade intelectual impedia o acesso de uma miríade de pessoas a caríssimos medicamentos antirretrovirais patenteados. Uma série de campanhas encabeçadas tanto por governos quanto pela sociedade civil expuseram essa situação e deram início a uma mobilização para reivindicar o amplo acesso a esses medicamentos, explorando a flexibilidade permitida pelas leis de comércio internacional em favor da saúde pública. Os mecanismos de licenciamento compulsório, que possibilitam aos governos obrigar um detentor de propriedade intelectual a licenciá-la, permitiram a quebra de patentes para a produção de medicamentos. Países em desenvolvimento continuam fazendo uso esse instrumento: em abril de 2024, a Colômbia emitiu sua primeira autorização de quebra de patente para medicamentos destinados ao tratamento de portadores do HIV.

    Para os países do Sul, a flexibilização dos direitos de propriedade intelectual e de tecnologia não só evitou mortes e poupou dinheiro, mas também contribuiu para o progresso da inovação e para o desenvolvimento industrial. A Índia, por exemplo, utilizou seu período de implementação gradual da conformidade com o direito comercial para se tornar uma potência mundial na produção de medicamentos genéricos e, dessa maneira, estimulou investimentos e subsequentes inovações, mesmo depois dessa fase. A indústria farmacêutica da África Oriental se baseou na mesma flexibilização do direito comercial internacional para fabricar genéricos e se tornar competitiva globalmente.

    As críticas ao sistema TRIPS e a eficácia da campanha de acesso a medicamentos ganham um novo significado à luz da ameaça existencial representada pela crise climática. A Declaração de Havana assinada em 2023 por grupo de 77 países em desenvolvimento e pela China destacou que “as barreiras tecnológicas (…) limitam a adaptação às alterações climáticas e a implementação das Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs, na sigla em inglês) dos países em desenvolvimento”, reivindicando o urgente aumento das transferências tecnológicas e a exploração das “flexibilidades” do regime de direitos de propriedade intelectual.

    Assim como medicamentos que salvam vidas são essenciais para a saúde pública, tecnologias verdes são vitais para a sustentabilidade ambiental e o bem-estar da população global. O conhecimento necessário para a produção de células de baterias, veículos eléctricos, células fotovoltaicas e turbinas eólicas é fundamental para viabilizar a industrialização verde. O princípio da suspensão dos direitos de propriedade intelectual—a quebra de patentes—para facilitar o acesso a bens essenciais pode ser estendido às tecnologias verdes para dar suporte à transição ecológica no Sul global.

    A fronteira tecnológica do clima

    As mudanças climáticas apresentam desafios distintos quanto ao modo de pensar o papel da tecnologia no desenvolvimento. O apelo urgente pela redução das emissões de carbono exige a rápida expansão das tecnologias que a possibilitam—nesse sentido, as alterações climáticas ampliam a fronteira tecnológica da economia global. A consequência é que agora todos os países estão em desenvolvimento, tentando “recuperar o atraso” em relação à vanguarda tecnológica.

    As premissas de vantagens comparativas adotadas pela economia neoclássica convencional implicam uma atitude neutra quanto ao local de produção dessas tecnologias verdes. De acordo com essa visão, que dominou o debate global sobre a política climática, o instrumento político mais importante a ser acionado é o dos preços. Segundo essa lógica, a manipulação dos preços por meio da taxação do consumo de tecnologias emissoras de carbono ampliará a oferta de tecnologias verdes que possam substituir a matriz antiga.

    A recente expansão das políticas industriais, no entanto, particularmente no Norte global, parte do reconhecimento de que as tecnologias cruciais para a descarbonização não podem ser difundidas através do mero incentivo a certas preferências de consumo. Ainda assim, mesmo para as nações do Norte, isso não significou uma virada em direção ao planejamento industrial em larga escala, mas novos regimes de tarifas e subsídios estão sendo utilizados para ajudar novas tecnologias, muitas vezes pendentes de comprovação, a atingirem a maturidade comercial. Há um crescente consenso entre os governos do Norte de que isso faz parte de seu papel na tarefa da descarbonização. De qualquer forma, o próprio desenvolvimento de algumas das principais tecnologias de energia verde expõe os limites do conjunto de políticas quase protecionistas que têm surgido—além de demonstrar a importância crucial da existência de direitos de propriedade intelectual flexíveis e das transferências de tecnologia para a expansão desse tipo de energia.

    Talvez o exemplo mais destacado seja o aumento da produção de painéis solares na China, que atualmente representa mais de 80% do total mundial. Embora outras economias tecnologicamente avançadas do Norte interpretem esse crescimento como uma ameaça, ele é, em muitos aspectos, um exemplo de sucesso de cooperação global. Jonas Nahm, cientista político e ex-membro do Conselho de Assessores Econômicos da Casa Branca, descobriu que, embora grande parte dos projetos de pesquisa e desenvolvimento na área de tecnologia solar fotovoltaica tenha sido realizada nos Estados Unidos, foram empresas alemãs que traduziram tais estudos em técnicas de produção modular e que, em última análise, foram as empresas chinesas que conseguiram transformar tanto os estudos como o conhecimento técnico da produção modular em fabricação em massa. Joanna Lewis, especialista em energia, também documentou como as parcerias de pesquisa entre instituições estadunidenses e chinesas tiveram o papel de possibilitar a dinâmica expansiva das tecnologias de energias renováveis. Uma das principais consequências desse processo de compartilhamento de tecnologia é o fato de que a China foi capaz de concentrar a pesquisa básica e o desenvolvimento em torno de tecnologias cruciais para a descarbonização.

    A experiência chinesa de crescimento econômico acelerado é vista como um modelo para os países em desenvolvimento. A formulação da antiga demanda por desenvolvimento no âmbito da política climática global foi sistematizada pela Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, que articulou o princípio de “responsabilidades comuns, mas diferenciadas”. No futuro, os países do Sul global representarão a maior parte do fluxo das emissões de carbono, especialmente se quiserem fazer com que suas economias e rendas cresçam. O objetivo já antigo de que o desenvolvimento se dê a partir do avanço da posição nas cadeias de valor globais tem maior relevância, já que essas cadeias estão sendo remodeladas com o aumento da produção em massa de tecnologias verdes.

    Por isso, é justificável que, no campo das tecnologias verdes, o modelo de pesquisa transnacional e as parcerias para iniciativas conjuntas que possibilitam o dinamismo econômico da China atraiam a atenção de grande parte do mundo. Além disso, os componentes de maior valor nas cadeias de suprimentos globais concentram-se no conhecimento dessas tecnologias; mais precisamente, nas competências para pesquisa, desenvolvimento e design que têm se concentrado na China por meio de parcerias estratégicas com países ricos, como os Estados Unidos e a Alemanha. Esses fatores sugerem que a transferência de tecnologias verdes tem um papel crucial na formulação de um plano significativo de desenvolvimento global. Em uma era de política industrial verde, parcerias voltadas ao desenvolvimento exigirão empreendimentos corporativos conjuntos e cooperação para pesquisa.

    Barrar o progresso da fronteira tecnológica é barrar o desenvolvimento

    Antes da China, quase todos os casos de desenvolvimento acelerado se basearam em parcerias para a troca de conhecimentos visando à ascensão nas cadeias globais de valor. As experiências dos engenheiros coreanos e taiwaneses em empresas europeias e estadunidenses são parte fundamental da história do desenvolvimento dos “tigres asiáticos”. Tais casos sugerem que a intervenção estatal ativa orientada para o crescimento em escala da produção é fundamental para uma expansão exponencial dos mercados para bens que impulsionem uma rápida transição energética.

    O crescimento da chinesa BYD, uma das maiores vendedoras de veículos eléctricos do mundo (ou a maior, dependendo do trimestre financeiro), é um dos casos mais famosos e politicamente explosivos desse processo nos dias atuais. A empresa se tornou o exemplo mais conhecido dos novos esquemas tarifários que os Estados Unidos e a União Europeia adotaram nos últimos meses para proteger suas indústrias contra os veículos elétricos chineses de baixo custo e alta qualidade que estão sendo fabricados graças a uma capacidade produtiva aparentemente inigualável.

    O sucesso da BYD está enraizado nas transferências tecnológicas voltadas à descarbonização. Como demonstrou o sociólogo Kyle Chan, que documentou a história da fábrica da Tesla em Xangai, a companhia estadunidense trabalhou com uma empresa chinesa de equipamentos e uma fábrica italiana de máquinas de fundição para produzir a maior máquina de fundição do mundo—máquina esta que permite à Tesla “fabricar um componente automotivo que é uma grande peça única e contínua, em vez de dezenas de peças menores unidas por solda”. A colaboração gerou um ecossistema de empresas que difundiu essa inovação entre todos os principais fabricantes chineses de veículos eléctricos.

    Algumas das mais bem-sucedidas empresas chinesas do ramo de veículos elétricos estão agora se instalando fora do país. A BYD, por exemplo, está em fases diferentes de instalação de grandes projetos de produção no Brasil, na Indonésia, no México e na Hungria. No evento de inauguração da nova fábrica da BYD na Bahia, a CEO da empresa para as Américas, Stella Li, destacou que há a intenção de criar o “vale do silício do Brasil” a partir da fundação de um centro de pesquisa e desenvolvimento no estado. Em março de 2024, Li já havia anunciado novos investimentos no complexo industrial baiano para garantir que pelo menos 25% dos componentes dos veículos fossem produzidos no Brasil. O simbolismo do evento era marcante: o complexo da BYD na Bahia ocupará um espaço anteriormente utilizado pela norte-americana Ford, que operou ali até sair do país em 2021.

    Os países em desenvolvimento com potencial de produção elevado querem ter acesso aos componentes de conhecimento de alto valor agregado das tecnologias verdes. Nas áreas em que a China está assumindo uma posição de liderança no campo dessas tecnologias, como a de veículos eléctricos, suas empresas estão, pelo menos, dando os primeiros passos para possibilitar a produção local, ao mesmo tempo em que expandem suas operações para os principais mercados dos países em desenvolvimento.

    A tendência dos Estados Unidos e da União Europeia de imposição de tarifas proibitivas sobre os veículos eléctricos chineses sugere uma potencial distorção dos objetivos de sua própria política industrial verde. Se as empresas chinesas estiverem mais à frente na fronteira tecnológica para esses bens cruciais, Estados Unidos e União Europeia podem inviabilizar até o próprio acesso a tecnologias verdes de ponta. Recentemente, Zhu Min, membro do comitê do plano quinquenal da China e ex-diretor adjunto do FMI, expôs claramente os planos chineses em termos de tecnologias verdes: “É hora da China exportar tecnologia”, afirmou ao Financial Times, citando como exemplos os setores de veículos elétricos e baterias, nos quais o país é líder.

    O que vem pela frente

    Uma vez que transferências tecnológicas globais consistem na redistribuição do conhecimento, sua efetivação é altamente política. Os países do Norte querem proteger a propriedade intelectual de suas empresas que, por sua vez, fazem lobby para garantir esse apoio de alto nível. Mas a política de impedir as transferências colide com o objetivo declarado da maioria dos países do mundo, desenvolvidos ou em desenvolvimento: introduzir e difundir políticas de transição verde para garantir uma economia global descarbonizada.

    As transferências tecnológicas verdes podem ajudar a estimular a inovação e a adoção de processos de produção mais limpos no mundo todo. No entanto, são sistematicamente bloqueadas por não só por um regime de direitos de propriedade intelectual que não reconhece as alterações climáticas como uma ameaça existencial, mas também pela resistência dos governos do Norte, que querem manter sua vantagem competitiva em relação a potenciais concorrentes. O “equilíbrio” de soma zero que daí resulta se traduz em transferências limitadas, guerras comerciais e acusações que degradam as instituições de governança global e acirram conflitos globais.

    Em termos de atualização tecnológica verde, as necessidades do Sul global são amplamente ignoradas. Washington tem começado a reconhecer cada vez mais este padrão. Por exemplo, o ex-diretor do Conselho Econômico Nacional, Brian Deese, escreveu recentemente sobre a necessidade de um “Plano Marshall Verde” para estimular o desenvolvimento global. As transferências de tecnologia verde podem, simultaneamente, ajudar na disseminação do conhecimento que facilitará a descarbonização, introduzir medidas de atenuação das mudanças climáticas, estimular o desenvolvimento industrial e, assim, reduzir as desigualdades internacionais e o custo das tecnologias verdes em todo o mundo.

    Durante o governo Biden, a opção crescente dos Estados Unidos por uma política industrial verde estava imbuída de um impulso paroquial e contraditório de tornar o país globalmente competitivo e, ao mesmo tempo, pregar que os países estrangeiros mais pobres reduzissem suas emissões. O regresso de Trump à Casa Branca deve preservar a orientação geral para a política industrial de seu primeiro mandato, marcada pelo desrespeito explícito às perspectivas de desenvolvimento do resto do mundo—e, ao mesmo tempo, deixando de lado grande parte do enfoque verde. Mas, no momento atual, que é de repensar o sistema de comércio global, a ampliação das flexibilidades já existentes—como os mecanismos de licenciamento obrigatório—para a defesa da política ambiental é um passo no sentido de garantir que as transferências de tecnologia verde sejam institucionalizadas e contribuam para soluções climáticas de soma positiva.

    Tradução: Heci Regina Candiani

  8. Ramificações Energéticas

    Comentários desativados em Ramificações Energéticas


    A Petróleos de Venezuela (PDVSA) é um elemento fundamental para o governo de Nicolás Maduro e para o projeto chavista em sentido amplo. Apesar de controlar as maiores reservas de petróleo bruto no mundo, a capacidade de produção da estatal venezuelana caiu drasticamente desde 2014. Em 2013, quando o petróleo correspondia a 96% das exportações do país, a Venezuela produzia 3 milhões de barris por dia. Desde então, a produção diária caiu mais de 70% e, atualmente, não passa de 800 mil barris, afetando gravemente o financiamento dos programas sociais do Estado venezuelano. Somando-se a isso, a hiperinflação desencadeou uma crise em todos os setores, exacerbada ainda mais pela turbulência política que marcou a última eleição.

    A dimensão da crise reflete o papel central do setor de petróleo e gás no modelo de desenvolvimento venezuelano. Dependente do petróleo como principal exportação, a economia do país está sempre vulnerável a choques externos que têm potencial imediato de afetar os programas sociais e os índices de desemprego. Desde o mandato inaugural de Chávez, em 1999, as transformações na relação entre o Estado e o setor de petróleo e gás têm se baseado no controle direto do setor pelo governo. Mas, na medida em que os investimentos e a produção caíam ao longo dos anos 2000, a promessa do modelo chavista, fundamentada na combinação de um maior controle sobre a indústria financeira com a ampliação do Estado de bem-estar social, já dava sinais de problemas.

    Mais recentemente, transformações geopolíticas em torno da indústria do petróleo têm imposto restrições à política venezuelana. Os Estados Unidos começaram a impor sanções ao governo de Maduro em 2014 e, cinco anos depois, impuseram medidas adicionais contra a PDVSA e o Banco Central da Venezuela. Essas sanções prejudicaram as finanças da PDVSA, levando Maduro a procurar garantir a sobrevivência do governo estreitando relações com outros parceiros, como a China, a Rússia e o Irã. A estratégia de realinhamento geopolítico, no entanto, não alterou o modelo de desenvolvimento do país, e o futuro do governo Maduro segue atrelado à dependência da Venezuela no petróleo.

    Desenvolvimento e dependência

    Desde a perfuração do poço Barroso II em 1922, que revelou o potencial petrolífero do país, a indústria do petróleo tornou-se o principal eixo da economia e da política venezuelanas. O boom petrolífero transformou profundamente a república. Com o fim das ditaduras e o advento da democracia, a segunda metade do século XX foi caracterizada pela rápida urbanização e modernização, quase exclusivamente financiadas pelas receitas do petróleo. Entre as décadas de 50 e 70, a expansão econômica foi notável, com altas taxas de crescimento do PIB e melhorias substanciais na qualidade de vida dos cidadãos. A PDVSA foi fundada em meio a este contexto, em 1976.

    Resumidamente, o boom do petróleo permitiu a expansão da infraestrutura e dos serviços públicos e, pela primeira vez, possibilitou a ascensão da classe média. Além disso, a nacionalização da indústria petrolífera com a criação da PDVSA garantiu o controle estatal sobre as receitas do setor, incentivando o aumento dos gastos públicos mesmo na ausência de uma base fiscal sólida. O Estado tornou-se o principal fornecedor de bens e serviços, enquanto o setor privado ficava para trás. Esse modelo lançou as bases de um estado rentista, sustentado pelas receitas petrolíferas, que inspiraria e sustentaria o chavismo nos anos vindouros.

    A crescente dependência de petróleo deixou o país cada vez mais vulnerável às flutuações do mercado internacional, como as crises da década de 1970 evidenciaram. Ao assumir a presidência pela segunda vez, em 1994, Rafael Caldera enfrentou uma crise bancária que devastou o sistema financeiro. Em resposta, Caldera recorreu ao FMI para implementar a chamada “Agenda Venezuela”. Com o objetivo de estabilizar a economia, seu governo forçou uma liberalização do setor de petróleo, permitindo à PDVSA liderar os investimentos e recuperar seu crescimento em 1997.

    Entre 1989 e 1998, a PDVSA posicionou-se como uma das cinco maiores empresas petrolíferas do mundo, com crescimento de 7,5% ao ano, e a produção atingiu a marca de 3,3 milhões de barris por dia. Desde sua criação até 1999, a empresa destacou-se como uma líder global de inovação na indústria de hidrocarbonetos. 1

    A queda nos preços de petróleo durante a crise financeira asiática de 1997-1998 forçou o país a criar um Fundo de Estabilização Macroeconômica e a privatizar estatais para mitigar a volatilidade. Apesar dos esforços, a deterioração institucional persistiu, e a insatisfação social generalizada preparou o terreno para a vitória eleitoral de Hugo Chávez em 1998.

    Estado petroleiro de bem-estar

    Com a ascensão de Chávez em 1999, o controle sobre o setor de petróleo tornou-se uma ferramenta política, financeira e geopolítica essencial para o governo. Chávez intensificou o controle do governo sobre a PDVSA e, na medida em que utilizava as receitas da estatal para expandir as proteções sociais, foi levando o modelo de estatismo petrolífero do século XX ao extremo. O resultado foi a consolidação da dependência nacional dos controles cambiais e das receitas de petróleo.2

    A mudança nas relações entre o Estado e a PDVSA foram baseadas em duas inovações jurídicas: a Constituição da República Bolivariana da Venezuela, promulgada em 1999, e a Lei dos Hidrocarbonetos Orgânicos de 2001. A Constituição marcou o início do que o chavismo nomeou “Quinta República”, enfatizando o princípio da soberania nacional sobre os recursos do subsolo. Na prática, as mudanças determinaram que as reservas de hidrocarbonetos são propriedade do Estado. Embora essa regulação já tivesse sido estipulada em leis anteriores, a nova Constituição enfatizava o papel do Estado para evitar que o poder executivo fosse excluído das decisões sobre o setor.

    As mudanças legais também transformaram a relação entre a PDVSA e o modelo de bem-estar social. Em 2003, a PDVSA passou a financiar projetos sociais no valor de US$549 milhões ao ano. Dois anos depois, foi criado o Fundo Nacional do Desenvolvimento (FONDEN), financiado por holdings do setor petrolífero. A PDVSA, agora pressionada por maiores compromissos financeiros, ainda fazia frente ao custo crescente dos programas sociais.

    A chegada de Nicolás Maduro à presidência em 2013 não trouxe nenhuma mudança expressiva na gestão da empresa. Em julho de 2014, os preços do petróleo caíram 76%, acelerando a queda na produção e nos investimentos do setor. Consequentemente, os programas sociais financiados pela atividade da estatal sofreram cortes significativos: o orçamento foi reduzido de US$13 bilhões em 2013 para US$5,3 bilhões em 2014.

    Dependentes das receitas do petróleo, os programas sociais colapsaram diante da queda dos preços. A crise social que se seguiu em meio ao aumento das taxas de pobreza resultou na escassez de bens e serviços e no maior êxodo populacional na história moderna da região. Durante o primeiro mandato de Maduro, as exportações de petróleo correspondiam a 90% do total do país, mas o valor das receitas caiu drasticamente.3 Em 2019, a produção de petróleo foi apenas um sétimo do que havia sido em 1976.

    O impacto das sanções

    As sanções econômicas impostas à Venezuela deterioraram ainda mais a produção da PDVSA. O objetivo das sanções era reduzir drasticamente as receitas da petroleira para forçar uma alteração na relação do governo com a gestão da estatal. Até 2017, os Estados Unidos eram o principal destino do petróleo venezuelano. Mesmo em 2015, quando as sanções já haviam começado, a Venezuela ainda era o terceiro mais importante fornecedor de petróleo do mercado dos EUA, atrás do Canadá e da Arábia Saudita. O efeito prático das sanções foi forçar o realinhamento geopolítico da Venezuela.

    No geral, as sanções reduziram drasticamente a capacidade do Estado venezuelano de operar nos mercados globais, bem como as receitas do petróleo, agravando ainda mais a crise interna. A possível reativação ou intensificação das sanções existentes no futuro próximo pode dificultar qualquer tentativa de revitalização do setor energético nacional, crucial para um país cuja economia ainda luta para se recuperar de anos de má gestão e isolamento internacional.

    As sanções de 2017 afetaram diretamente o setor petrolífero, proibindo a PDVSA de acessar os mercados financeiros dos Estados Unidos. Assim, ao mesmo tempo em que enfrentava restrições à venda de petróleo bruto, a estatal também perdia a capacidade de refinanciar dívidas. Em janeiro de 2019, em paralelo à autoproclamação de Juan Guaidó como presidente interino, os Estados Unidos congelaram cerca de US$7 bilhões em ativos da PDVSA, além de bloquear mais de US$11 bilhões em receitas previstas.

    Para garantir receitas adicionais, Maduro recorreu à exploração de fontes não-convencionais de recursos e à venda de ativos estratégicos. Dois novos projetos foram introduzidos: a exploração do Arco Mineiro do Orinoco e a introdução do “petro”, uma criptomoeda lastreada nas reservas de petróleo. Ambos os projetos fracassaram, sem conseguir atrair a confiança dos investidores ou oferecer uma solução sustentável para a crise de liquidez do país.4

    O “petro” fracassou devido à desconfiança generalizada na moeda, agravada pelas restrições que encontrou após seu lançamento.5 Enquanto isso, a exploração do Arco Mineiro do Orinoco beneficiou principalmente os altos escalões do governo e das forças armadas, além de aliados internacionais como os grupos rebeldes Exército de Libertação Nacional (ELN) e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC)6, bem como a companhia militar privada russa conhecida como Grupo Wagner.7

    Em 2021, o valor das exportações venezuelanas atingiu um mínimo histórico: US$3,2 bilhões, dos quais US$104 milhões correspondiam à exportação de ouro. O petróleo foi removido do registro de exportações legais e passou a ser vendido em mercados clandestinos através de triangulações com navios-tanque russos que cruzavam o oceano para enviar petróleo bruto à Índia. De lá, o petróleo era reexportado para outros países asiáticos, especialmente a China, a preços substancialmente descontados. Essas operações—que não são contabilizadas nos números oficiais—foram prejudicadas pela invasão russa à Ucrânia e pelas sanções ao petróleo russo, que impactaram indiretamente a Venezuela.

    Realinhamentos geopolíticos

    Em um contexto de isolamento internacional e colapso econômico, Maduro teve que recorrer às alianças estratégicas forjadas por Chávez, apoiando-se em um bloco geopolítico que permitiu que a Venezuela contornasse parcialmente as sanções, mantendo uma receita mínima de petróleo e, acima de tudo, garantindo a sobrevivência do chavismo em meio a um ambiente internacional hostil. Na busca por novos parceiros, o principal trunfo de Maduro continua sendo o setor petrolífero nacional.

    Sob Chávez, o governo venezuelano utilizou os recursos da estatal de petróleo para fortalecer laços com determinados países da América Latina, Caribe, Eurásia e África. Um exemplo notável é a iniciativa Petrocaribe, que buscou coordenar políticas energéticas na América Central e no Caribe. A Venezuela fornecia petróleo à região com taxas de juros baixas e planos de pagamento de até 25 anos, recebendo commodities e produtos agrícolas em troca. No entanto, a iniciativa foi criticada por sua falta de transparência e pela desconfiança nas transações. A maior parte dos países membros quitou boa parte de suas dívidas entregando produtos com valor de difícil mensuração.8

    A China tem sido um importante parceiro estratégico para a Venezuela. O pilar da relação entre os dois países é um acordo de troca de fundos financeiros por petróleo, iniciado durante o governo Chávez. A partir de 2007, a Venezuela começou a receber empréstimos chineses respaldados por acordos de dívida lastreados em petróleo, e o Fundo Conjunto China-Venezuela é um exemplo paradigmático. No total, a China forneceu cerca de US$67 bilhões em empréstimos para a Venezuela, que foram pagos sobretudo com remessas de petróleo bruto. Entretanto, com a queda da produção de petróleo ao longo dos anos 2010, esses acordos têm se tornado cada vez mais insustentáveis. Ainda que os acordos tenham sido mantidos sob Maduro e Xi, seu conteúdo têm se tornado cada vez menos relevante devido às mudanças no setor. O volume de petróleo enviado à China despencou, forçando Caracas a renegociar as dívidas em mais de uma ocasião. Apesar desses desafios, Pequim continua apoiando Maduro, ainda que de forma mais cautelosa. Em vez de novos empréstimos, a China tem oferecido investimentos em projetos de infraestrutura e tecnologia, além de vendas de equipamentos militares, mas sob condições mais restritivas que anteriormente.9

    Em 2023, a China e a Venezuela assinaram um acordo mútuo para promover e proteger os investimentos. Três anos antes, a estatal China Aerospace Science and Industry Corporation (CASIC) assumiu o transporte de petróleo bruto venezuelano como forma de compensar parte da dívida do país sul-americano. Mas a relação entre ambos não se limita à mera transferência de recursos—há uma estratégia mais ampla em jogo. Ao participar de projetos de infraestrutura, mineração e telecomunicações, a China adquiriu uma presença significativa em setores-chave da economia venezuelana, como o setor militar e o de telecomunicações, com empresas como Huawei e ZTE.

    A Rússia também tem sido um aliado-chave na sobrevivência do governo Maduro, não só apoiando seu setor energético mas também fornecendo assistência diplomática e militar. A relação entre Moscou e Caracas se intensificou em resposta às pressões dos Estados Unidos e da União Europeia. Para a Rússia, a Venezuela representa uma oportunidade estratégica de desafiar a influência dos Estados Unidos em seu próprio hemisfério.

    A estatal petrolífera russa Rosneft desempenhou um papel fundamental na comercialização do petróleo bruto venezuelano, especialmente após a imposição das sanções dos Estados Unidos. Em 2020, a Rosneft vendeu sua parcela venezuelana à companhia de segurança RN-Okhrana-Ryazan, que é controlada pela Roszarubezhneft, do governo russo. Essa transação permitiu que a Rússia continuasse a explorar os campos petrolíferos venezuelanos por meio do órgão que reúne as petroleiras russas, o Consórcio Petroleiro Nacional (CPN). Empresas afiliadas da Rosneft, como a Rosneft Trading e a TNK Trading International, sofreram sanções por facilitar o comércio de petróleo venezuelano,10 em uma clara tentaiva dos EUA de evitar que ambos os governos se beneficiassem dessas transações.11

    Através de uma extensa rede de empresas e transações, a Rosneft ajudou Maduro a contornar as sanções, garantindo um fluxo constante de exportações de petróleo. Os principais destinos foram os mercados asiáticos, que correspondiam a 64% do total exportado em 2023, antes do governo Biden aliviar temporariamente as sanções.12

    Para além de Rússia e China, uma das alianças geopolíticas mais surpreendentes foi aquela com o Irã. Com suas refinarias em frangalhos e sob a pressão das sanções, Maduro buscou regularizar o suprimento de combustível com a ajuda do Irã, que também enfrenta um severo regime de sanções internacionais. Desafiando as restrições impostas pelos Estados Unidos, o Irã enviou vários carregamentos de combustível para a Venezuela, inaugurando uma nova fase de cooperação entre dois governos isolados pelo Ocidente. Em troca, a Venezuela concedeu ao Irã acesso a ouro e outros recursos estratégicos.

    A cooperação entre Caracas e Teerã vai além dos carregamentos: o Irã tem fornecido assistência técnica, peças e materiais para a reativação das refinarias venezuelanas, em uma tentativa de atenuar o colapso da indústria petroquímica do país. As relações com a Rússia e o com o Irã também carregam um peso simbólico importante. Ao se apresentar como um aliado de potências euroasiáticas em oposição à hegemonia dos EUA, Maduro garante ao seu governo uma imagem de resistência no cenário internacional, perpetuando a narrativa multipolar promovida por Chávez.

    Nesse processo de realinhamento político impulsionado pelas sanções, a Venezuela adotou um circuito de evasão sofisticado, vendendo petróleo através de frotas não reguladas e com transações liquidadas na moeda chinesa, o renminbi. Esse arranjo permitiu à Venezuela continuar exportando petróleo bruto apesar das restrições, contando com sistemas financeiros alternativos que, alheios ao controle ocidental, minam a efetividade das sanções.13

    Horizontes incertos

    Em 2023, o governo Biden suspendeu temporariamente algumas sanções para incentivar eleições livres. Após longas negociações e ao menos seis encontros em Doha, o Acordo de Barbados foi celebrado entre o governo de Maduro e a coalizão de oposição. Entretanto, as sanções voltaram a ser aplicadas em meados de 2024 em resposta à decisão do Tribunal Supremo de Justiça de ratificar a cassação dos direitos políticos de María Corina Machado, que liderava as primárias da oposição para a eleição presidencial.

    A ameaça da reimposição das sanções ronda a continuidade do projeto chavista. As negociações em andamento poderiam atingir um ponto crítico no dia 10 de janeiro de 2025, quando Nicolás Maduro deve assumir seu próximo mandato como presidente. A reeleição de Donald Trump nos Estados Unidos também aumenta as incertezas, já que ele pode optar por restabelecer as sanções que foram suspensas e aumentar ainda mais a pressão de Washington sobre Caracas.

    Paralelamente, o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos renovou a Licença Geral 41, permitindo que a Chevron continue suas operações na Venezuela até abril de 2025, com algumas restrições. Isso sugere que Washington adota uma estratégia ambígua: enquanto mantém alguns canais econômicos abertos para empresas estadunidenses, exerce pressão política e econômica sobre o governo venezuelano. Essa dinâmica inevitavelmente influenciará as decisões políticas em Caracas.

    À luz da situação geopolítica, a necessidade urgente de revitalizar o setor energético em meio ao colapso econômico se impõe diante do governo venezuelano. A exploração de novos poços no Cinturão do Orinoco—que abriga as maiores reservas de petróleo no mundo, historicamente subexploradas—é o pilar da atual tentativa de reverter a tendência de queda da produção. A colaboração com a Chevron, autorizada pelo Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros dos Estados Unidos em 2022, viabilizou a retomada dos planos de perfurar trinta novos poços na região até 2025. Quando concluída, a expansão poderá aumentar em 35% a capacidade produtiva conjunta da Chevron e da PDVSA, atingindo 250 mil barris por dia. Ainda assim, as sanções impõem algumas restrições à Chevron, que não pode expandir as operações para novos campos nem distribuir dividendos para a PDVSA. Essas limitações preservam a influência de Washington nas decisões estratégicas, enquanto a PDVSA tenta buscar maior autonomia.

    Além disso, a exportação de gás natural da Venezuela para a Colômbia e a descoberta de petróleo na Guiana também se tornaram questões cruciais. As exportações de gás natural para a Colômbia são significativas não apenas do ponto de vista econômico, mas também do ponto de vista político, já que a Colômbia se ofereceu para mediar a crise de legitimidade do governo venezuelano, enquanto a Venezuela atua como garantidora dos diálogos de “Paz Total” do presidente colombiano Gustavo Petro. Contudo, o papel duplo como mediadores e garantidores também desgasta as relações entre os dois países, intensificando pressões políticas internas e externas que ameaçam o projeto de comércio internacional. Além disso, a capacidade de produção de gás da Venezuela e o estado de seus gasodutos levantam dúvidas sobre a viabilidade do projeto.14

    Enquanto isso, a recente descoberta de petróleo na Guiana e o aumento de sua produção petrolífera intensificou uma disputa territorial de longa data entre os dois países, especificamente na região de Esequibo, rica em recursos e dotada de uma zona econômica exclusiva para exploração de reservas em alto mar. Enquanto a Guiana deu início à exploração desses campos com o apoio de multinacionais como ExxonMobil e Chevron, a Venezuela intensificou suas reivindicações sobre a região, criando mais uma fonte de instabilidade regional e risco geopolítico.

    Por enquanto, Maduro segue apostando no petróleo. Em um ambiente internacional adverso, o governo ainda vê o petróleo e a PDVSA como meios de sobrevivência, utilizando esses ativos para manter alianças e explorar novos mercados que possam gerar receitas essenciais para a manutenção do poder em meio à pressão externa e à crise interna.

    Tradução: João Marcolin


  9. O “greenwashing” dos ajustes estruturais

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    Em um sistema financeiro global sustentado pelo dólar, aumentos na taxa de juros do Fed podem deixar grande parte dos países do Sul global à beira de impetuosas crises de dívida. O elevado nível de exposição dos países do Sul a riscos externos e a necessidade de que contraiam dívidas denominadas em dólar são resultado de uma arquitetura financeira internacional corrompida e desigual—diante da crise climática, tamanha assimetria na inserção internacional pode gerar consequências de longo prazo para uma transição energética global. A nível doméstico, a dívida soberana limita severamente a capacidade de financiamento de uma agenda climática ambiciosa e, a nível internacional, torna o Fundo Monetário Internacional (FMI), instituição que costuma estar no centro das negociações de dívida, cada vez mais relevante para a política climática global. 

    Países do Sul global têm poucas opções para lidar com o sobreendividamento. A busca por alívio geralmente obriga a nação devedora a firmar um acordo com o FMI, e a negociação da reestruturação é amplamente moldada pelas análises de sustentabilidade da dívida do próprio Fundo. O apoio do FMI não vem sem amarras: a imposição de rigorosas condicionalidades sobre a execução da política econômica doméstica e de severas medidas de austeridade costumam ser parte do conteúdo dos “ajustes estruturais” que o Fundo exige de sua clientela. 

    Atualmente, 44 países têm um acordo vigente com o FMI e, considerando que cerca de dois terços dos países de renda baixa e média estão sob ameaça de sobreendividamento, é possível que o número aumente ainda mais. É um cenário que ampliaria o grau de influência do FMI sobre a condução da política econômica de países do Sul global para patamares não vistos há décadas. A adoção de condicionalidades e recomendações ligadas à política climática pelo FMI visa consolidar um novo papel para o Fundo, agora, na linha de frente da política climática global, ditando o ritmo da transição ecológica com consequências que vão muito além de seus devedores. 

    Os choques de Volcker e a crise de dívida soberana dos anos 1980 estabeleceram as condições para que o FMI inaugurasse uma era de ajustes estruturais compulsórios que disseminaram as prescrições do “Consenso de Washington” pelo mundo, prejudicando seriamente as perspectivas de desenvolvimento de longo prazo para uma miríade de países. Ainda que a retórica do FMI tenha mudado nos últimos anos, em termos práticos, houve poucas alterações nas imposições vinculadas a seus programas de empréstimos, bem como nos marcos regulatórios que as sustentam. Em vez de atuar como mediador imparcial de um mecanismo de resolução de dívidas, o papel cumprido pelo FMI é o de bater o martelo em favor dos credores, implementando programas de ajuste que priorizam o pagamento da dívida em detrimento do bem-estar da população de seus países-membros. 

    No que diz respeito à agenda climática do FMI, quem dá as cartas é o mesmo grupo de países documentadamente responsável por causar a própria crise. A abordagem adotada pelo Fundo abre espaço para que poluidores históricos se esquivem de suas responsabilidades, minando a possibilidade de uma transição energética justa. Sem reformas estruturais e nos padrões de governança, é possível que a virada climática do FMI seja mais do que uma espécie de greenwashing da tradicional agenda de austeridade?

    Subordinação financeira e armadilhas de dívida

    O acúmulo insustentável de dívidas no Sul global é uma característica inerente à desigualdade da arquitetura financeira internacional, conformada por um sistema que opera majoritariamente em dólares. Uma vez que a maior parte do comércio e das transações internacionais ocorrem na moeda estadunidense, muitos dos empréstimos tomados pelo Sul global são compulsoriamente denominados em dólares. Mudanças nos fluxos financeiros, geralmente desencadeadas por eventos não controlados por esses tomadores de empréstimos, podem gerar problemas de liquidez ainda maiores e agravar crises de endividamento. Em 2022, por exemplo, em razão da política monetária contracionista do Fed, o serviço da dívida externa de países em desenvolvimento ultrapassou os US$ 443 bilhões—o dobro do ano anterior. 

    Mais de 3 bilhões de pessoas vivem em países que gastam mais com juros da dívida externa do que com saúde e educação. Ainda assim, é possível contar nos dedos os países que buscaram uma reestruturação da dívida. A maioria segue honrando os pagamentos, mesmo em situações nas quais a insustentabilidade da dívida é evidente. Em geral, recorrer ao FMI é a única opção para quem que não consegue mais quitar suas dívidas. É comum que os países adiem essa decisão, mesmo em cenários nos quais o orçamento fiscal está comprometido a ponto de impossibilitar até o pagamento de salários do funcionalismo público, como aconteceu com o Quênia e a Nigéria: em 2022, ambos gastavam quase todas as receitas do governo com serviços da dívida. 

    O desequilíbrio de poder na governança global consagrou um sistema que limita consideravelmente a autonomia fiscal e de planejamento político dos países do Sul global, problema que é ainda mais agravado pela crise climática. O crescente ônus da dúvida não só compromete o financiamento de serviços públicos básicos, mas é também um obstáculo para que esses países priorizem investimentos direcionados à transição climática e ao desenvolvimento. 

    O que o Norte oferece como financiamento climático ao Sul se traduz, majoritariamente, na contração de novos empréstimos. Dos US$ 100 bilhões anuais que os países ricos se comprometeram a “mobilizar” para o financiamento climático em 2020, 73% tomaram a forma de dívida adicional. Enquanto isso, a lacuna de financiamento necessário para o cumprimento de metas climáticas e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) não para de crescer. 

    Países ficam encurralados entre o risco da dívida, a perpetuação do subdesenvolvimento e a exacerbação da vulnerabilidade a choques externos. Os crescentes encargos da dívida externa corroem a capacidade dos governos de investir em resiliência doméstica. Os casos do Suriname, Chade e Equador são exemplificativos da dificuldade de romper com esse ciclo vicioso—três nações que se tornaram dependentes da exploração e exportação de combustíveis fósseis para acessar moeda forte e conseguir arcar com o serviço da dívida externa denominada em dólar. Na Argentina, o FMI incentiva a expansão do fracking como forma de gerar de receitas para o pagamento da dívida. 

    Apesar do reconhecimento dos fóruns internacionais de que os países menos responsáveis pela crise climática não deveriam arcar desproporcionalmente com os custos de seus efeitos, o apoio financeiro para que lidem com perdas e danos causados por desastres climáticos—cada vez mais frequentes e graves—ainda não se materializou. Na prática, os países afetados por desastres climáticos geralmente precisam contrair novos empréstimos para lidar com as consequências de eventos extremos. Quando o Paquistão foi atingido por enchentes de proporções recordes em 2022, em meio a uma crise econômica e de endividamento, promessas de apoio da comunidade internacional tomaram as manchetes globais. No entanto, novamente, a maior parte da ajuda tomou a forma de mais empréstimos

    A crise gerada pela pandemia de Covid-19 já havia escancarado os impactos da desigualdade na arquitetura financeira internacional. Os países ricos, emissores de moedas fortes, responderam ao choque aumentando os gastos discricionários para cerca de 10% do PIB. Já os países em desenvolvimento, mesmo partindo de níveis gerais de endividamento mais baixos do que o grupo anterior, só conseguiram aumentar os gastos discricionários em cerca de 3% a 4% do PIB. Na maioria dos casos, os países ricos também tiveram acesso a liquidez por uma rede de acordos de swap entre bancos centrais—operações de custo baixo e sem nenhuma condicionalidade.

    “Greenwashing” o ajuste estrutural 

    Nos últimos anos, o FMI reconheceu publicamente que as mudanças climáticas representam uma ameaça à subsistência das pessoas e à estabilidade econômica dos países. Levou alguns anos, mas em 2021 a instituição finalmente anunciou sua estratégia climática—uma boa notícia, à medida que o Fundo é capaz de acelerar a tomada de consciência dos gestores públicos sobre a necessidade de abordar os riscos postos pela crise climática. Mas, considerando que o papel do FMI é o de credor global de última instância para países em desenvolvimento e tendo em vista a prática consolidada de imposição de condicionalidades àqueles que procuram sua ajuda, a influência conquistada pela instituição na concepção e implementação de políticas climáticas em escala global parece desproporcional. Segue a dúvida: é mesmo papel do FMI liderar a política climática, especialmente em relação aos países em desenvolvimento?

    O FMI vem se esforçando para melhorar sua imagem, ampliando a abrangência dos tópicos investigados no âmbito do seu departamento de pesquisa e publicando autocríticas referentes à reforma estrutural e às medidas de austeridade. Entre outros assuntos, o Fundo anunciou uma estratégia voltada à questão de gênero e se envolveu em debates sobre proteção social e desigualdade. A nova retórica, no entanto, não reflete a prática. 

    A relutância dos países em recorrer ao apoio do FMI é demonstrativa da impopularidade da instituição entre aqueles que precisam de auxílio financeiro. Desacelerações econômicas prolongadas, instabilidade política e aumentos expressivos da pobreza são a norma entre os clientes do Fundo. A política climática do FMI não pode ser apartada desse histórico. Os programas de ajuste estrutural continuam sendo a regra para os empréstimos do Fundo, e não parece haver planos de que a instituição reformule essa abordagem ou abandone a combinação de austeridade e reformas de mercado como recomendações de praxe.

    O próprio conteúdo da estratégia e das diretrizes climáticas anunciadas pelo FMI é preocupante. Os documentos basicamente sugerem a adaptação da agenda política tradicional do Fundo à linguagem climática. A estratégia política é concentrada em ajustes de preço e de mercado, como a precificação global de carbono. A lógica subjacente é que encontrar “o preço certo” e “criar um ambiente propício para os investidores” seriam medidas suficientes para incentivar o setor privado a responder à altura e fazer os ajustes necessários para enfrentar as mudanças climáticas. 

    Em geral, a agenda climática do Fundo é muito semelhante ao velho Consenso de Washington: uma combinação de austeridade, estímulos à desregulamentação das condições de trabalho e do mercado e liberalização do comércio e das finanças. Isso é reflexo do antigo entendimento do FMI sobre a estratégia mais eficiente de crescimento econômico, agora, com algum grau de reconhecimento de que determinadas compensações que mitiguem os efeitos sociais negativos dos ajustes são dignas de consideração. A aposta no cenário favorável ao investimento como solução é respaldada por economistas neoclássicos e validada por modelos de crescimento embasados em suposições econômicas equivocadas que, em geral, não são amparados por evidências empíricas. 

    O FMI fornece regularmente aconselhamento a nível nacional para todos os seus membros, por meio de relatórios de supervisão, conhecidos como “consultas do artigo IV”. Em geral, esses relatórios delineiam as bases para eventuais empréstimos do Fundo, situação na qual os conselhos assumem a forma de condicionalidades. Um recente relatório sobre a África do Sul é ilustrativo da adaptação climática da retórica tradicional de ajuste estrutural para que as recomendações sejam vistas de forma mais amigável. 

    Os caminhos propostos pelo Fundo para uma “transição justa” que reduza a dependência do país de combustíveis fósseis envolvem recomendações como reformas trabalhistas que garantam regimes laborais mais flexíveis, erosão da proteção social e redução de salários. São medidas que prejudicam frontalmente os direitos dos trabalhadores do país, baseadas em análises questionáveis sobre o funcionamento do mercado de trabalho. O documento ainda recomenda a privatização de serviços públicos e a desregulação dos mercados como instrumentos necessários à indução do crescimento, o que afirma ser um pré-requisito para um “futuro verde e de resiliência climática”. 

    Como parte de seu compromisso com o clima, o FMI lançou também um novo fundo, o Resilience and Sustainability Facility (RSF). O objetivo é conceder empréstimos de maturidade longa para que os países invistam em reformas que aumentem sua resiliência a riscos de longo prazo (como aqueles relacionados à crise climática). Há, porém, uma grande ressalva: o acesso ao novo fundo é exclusivo aos países que já tenham um empréstimo comum do FMI vigente. A vinculação do RSF aos programas clássicos de austeridade torna o novo mecanismo ineficaz, pois implica que os governos continuarão privados do espaço fiscal necessário para arcar com o financiamento da transição climática. 

    Ainda que o FMI sacudisse a poeira das atuais recomendações climáticas e superasse a precificação do carbono como tábua de salvação da crise, as condicionalidades tradicionais continuariam prejudicando uma transição justa. A política climática do FMI lhe permite propagandear seus novos programas como sendo “verdes”, desviando de críticas dessa natureza enquanto preserva suas práticas tradicionais. 

    Mudança sistêmica

    A arquitetura do FMI e do Banco Mundial é resquício de uma ordem mundial estabelecida há oitenta anos na Conferência de Bretton Woods. Embora tenham sido instituições criadas para promover a estabilidade global, o sistema multilateral “baseado em regras”, ou seja, a ordem internacional liberal, impediu que países em desenvolvimento tivessem uma voz significativa na definição dessas próprias regras. O histórico de atuação de ambas as instituições, refletido na sua relutância em promover reformas estruturais significativas, é o modelo da governança global por excelência. São instituições blindadas da responsabilização pelas consequências que provocam aos países que recorrem a elas. 

    De acordo com a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC, na sigla em inglês), por exemplo, é responsabilidade dos poluidores históricos prover o auxílio financeiro necessário à transição energética para países em desenvolvimento: o ônus financeiro deve ser proporcional às contribuições históricas para a mudança climática. No FMI, esses mesmos poluidores históricos aos quais se refere a UNFCCC são classificados como países de “economia avançada”, que controlam quase 60% do poder de voto do total de membros da instituição—o que lhes garante o controle sobre decisões referentes ao clima. 

    Não é impossível, no entanto, que o FMI ofereça apoio financeiro sem amarras: a alocação de US$ 650 bilhões sob a rubrica dos Special Drawing Rights (SDRs, na sigla em inglês) em 2021 foi um exemplo disso. O uso dos SDRs pode servir como ponto de partida para a criação de um mecanismo global de fornecimento de liquidez que amplie os recursos disponíveis para países em desenvolvimento. Mas a história dos SDRs também é ilustrativa da necessidade imperiosa de reformar a governança do Fundo: até agora, os EUA sozinhos já exerceram algumas vezes seu direito a veto em pedidos de alocação adicional de SDRs, além de terem obstruído esforços paralelos de reforma das regras de distribuição desses recursos. 

    Em última análise, há motivos para tratar com ceticismo o objetivo elusivo do FMI de “catalisar” o investimento privado. Reformas centradas em desregulamentar, liberalizar e privatizar, em paralelo à moldura tradicional de austeridade econômica, limitam severamente a autonomia política dos países em desenvolvimento. A adoção de políticas industriais verdes e a liderança do setor público nas transições ambientais permanecem fora do alcance desses países. Exemplos recentes de modelos de desenvolvimento bem-sucedidos, como o dos “Tigres Asiáticos” nos anos 1980 e, mais recentemente, o da China, têm um aspecto em comum: são países que subiram degraus da escada de renda por meio de estratégias de política industrial, evitando prescrições de ajuste estrutural. 

    Para o Sul global, a necessidade de uma reforma sistêmica está bastante clara. O G77 (grupo que atualmente inclui 134 países em desenvolvimento) convocou, para 2025, uma “Quarta Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento” (FfD 4, na sigla em inglês)1 na ONU. Reformas estruturais da arquitetura financeira internacional, restrições à evasão fiscal a nível global, transferências de tecnologia necessárias para a transição energética e mudanças nos acordos comerciais são tópicos centrais da agenda. 

    O objetivo é estabelecer, por meio da ONU, uma arquitetura multilateral para o alívio de dívida, permitindo aos países que enfrentam crises insustentáveis de endividamento buscar ajuda fora do FMI, por meio de processos menos enviesados em favor dos credores. A agenda da FfD 4 também propõe fontes de financiamento acessíveis e de longo prazo, com condições semelhantes àquelas usufruídas por países ricos. Partindo dessas mudanças e de uma reforma da governança que reequilibre o balanço de poder na instituição, é possível que o FMI retome sua função original de oferecer apoio emergencial de liquidez e abandone o padrão das condicionalidades adotados desde a década de 1980. 

    A FfD 4 representa uma alternativa viável aos ajustes estruturais “verdes” do FMI, mas colocará à prova o compromisso retórico do Norte global com o multilateralismo e com a ordem liberal internacional. E o enfrentamento desses problemas sistêmicos no âmbito da arquitetura financeira global será essencial para qualquer ação climática futura. 

    Tradução: Glenda Vicenzi

  10. Adaptação da economia iraniana às sanções

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    O boom de petróleo no final da década de 2000 criou obstáculos significativos para os industriais iranianos. Na mesma proporção em que aumentou o valor das exportações de petróleo, o rial se valorizou, os salários reais aumentaram e bens estrangeiros inundaram o mercado iraniano. As famílias de classe média aproveitaram o seu recém-descoberto poder de compra, adquirindo com gosto cosméticos franceses, eletrodomésticos coreanos e vestuário turco, enquanto rejeitavam marcas domésticas. Foi assim que o Irã contraiu um tipo clássico da “doença holandesa”: a bonança do petróleo solapou a base industrial do país. Em virtude do rial forte, os programas de redistribuição da riqueza para as classes mais baixas do Irã, iniciados pelo presidente populista Mahmoud Ahmadinejad, ampliaram o déficit comercial e desencadearam um boom inflacionário nos setores de habitação e serviços. Porém, quando o governo Obama golpeou o setor financeiro e energético com pesadas sanções em 2012, empurrando o Irã para a recessão, houve uma mudança de rumo.

    As sanções atingiram um setor industrial já debilitado, acelerando a estagnação da produção industrial iraniana, que persiste até hoje. Porém, a volatilidade da diplomacia estadunidense—relaxamento das sanções decorrente do Acordo Nuclear com o Irã em 2015, reimposição de sanções sob a administração Trump em 2017—também produziu efeitos desiguais para os fabricantes iranianos. Alguns dos principais atores experimentaram quedas significativas na produção. Os fabricantes de automóveis iranianos produziram cerca de 1,5 milhão de veículos em 2017, quando o país ainda se beneficiava do relaxamento das sanções. No ano passado, o número caiu para 1,2 milhão de veículos. No caso do setor automotivo, as sanções limitaram o acesso a insumos industriais essenciais, reduzindo tanto a quantidade quanto a qualidade dos carros e caminhões iranianos produzidos a cada ano.

    Outros fabricantes resistiram às sanções tirando vantagem de seus efeitos macroeconômicos, incluindo a desvalorização da moeda e a redução das importações. Isso, paradoxalmente, tornou o capital nacional iraniano capaz de reverter os efeitos da “doença holandesa”. Um exame mais detido do setor nacional de eletrodomésticos no Irã revela o grau significativo com que as firmas podem se adaptar a sanções, criando novo valor econômico em economias que, do contrário, seriam excessivamente oneradas pelas medidas coercitivas. Essas adaptações contradizem a visão comumente sustentada de que a resiliência a sanções surge da alocação de investimento estatal e da política industrial de cima para baixo. No Irã, pelo contrário, a resiliência parece ser um fenômeno de baixo para cima, liderado pelo capital privado oportunista. De fato, o modo como as firmas se adaptam às sanções pode influenciar tanto a política econômica nacional quanto o regime internacional de sanções de maneiras inesperadas. Atualmente o que freia a indústria iraniana de eletrodomésticos não são os efeitos das sanções sobre a produção, mas os efeitos do excesso de capacidade sobre a concorrência dos preços. Muitos fabricantes iranianos só conseguem sobreviver em um mercado protegido, significando que essas firmas são capazes de se opor ativamente ao tipo de liberalização do mercado inerente ao relaxamento das sanções.

    Fabricação nacional

    A indústria iraniana de eletrodomésticos despontou durante a primeira onda de industrialização na década de 1960. Em meados dos anos 1970, marcas nacionais como Arj e Azmayesh já eram itens básicos dos lares iranianos e, devido a sua boa qualidade e características competitivas, eram inclusive exportadas para mercados regionais. Após a Revolução Islâmica em 1979, essas fábricas foram nacionalizadas. Pouco depois, a irrupção da guerra Irã-Iraque impediu a continuidade dos investimentos e da modernização. As marcas nacionais se tornaram a opção de preço baixo e baixa qualidade para os consumidores iranianos.

    Em meados da década de 2000, quando houve uma aceleração do crescimento econômico no Irã, marcas estrangeiras ingressaram num mercado cada vez mais segmentado. Famílias de alta renda equipariam suas casas com aparelhos de marcas como Bosch da Alemanha e De Longhi da Itália. Famílias de renda intermediária se apegariam às marcas coreanas importadas LG e Samsung. Famílias de baixa renda escolheriam marcas iranianas, cujos aparelhos não eram competitivos em termos de qualidade, mas sim em termos de preço.

    Em torno de 2017, as principais marcas coreanas passaram a dominar o mercado iraniano, sendo responsáveis por 65% do mercado de refrigeradores e 77% das vendas de máquinas de lavar, de acordo com dados de mercado compilados por GfK. A fatia do mercado em poder dos coreanos cresceu em função da intensificação das sanções ocidentais contra o Irã, particularmente após 2012, quando as marcas europeias reduziram seu campo de atuação no país.

    Então, em 2018, tudo mudou. A administração Trump se retirou do acordo nuclear com o Irã, voltando a impor sanções secundárias dos EUA contra o país. A política de “pressão máxima” de Trump teve um impacto dramático sobre a economia iraniana. Entre os primeiros efeitos figura uma vertiginosa desvalorização do rial, na medida em que Trump congelou o acesso do Irã a suas reservas cambiais e estrangulou as exportações de petróleo, fonte primária de receitas em moeda forte. Em esforço para racionar a moeda forte e defender a nova taxa cambial, o governo iraniano introduziu a proibição de importação de mais de 1.300 bens, incluindo eletrodomésticos, efetivamente cerrando o mercado para marcas estrangeiras. Antes da medida protecionista imposta pelas autoridades iranianas, essas marcas já tinham enfrentado dificuldades para manter suas operações de vendas no Irã, na medida em que os bancos internacionais começavam a cortar laços com seus correspondentes iranianos.

    A combinação de políticas protecionistas e sanções intensificadas forçou as marcas estrangeiras a sair do mercado iraniano de eletrodomésticos, revertendo duas décadas de consolidação. Os fabricantes iranianos de eletrodomésticos, bem como investidores oportunistas sem experiência no setor, rapidamente identificaram a oportunidade. Não havia dúvida de que a retomada das sanções reduziria o crescimento econômico do Irã e a inflação alta corroeria o poder de compra das economias domésticas. Porém, eletrodomésticos- um item essencial para o lar- é intransigente. Repentinamente, três quartos do mercado iraniano de eletrodomésticos estava disponível, representando uma oportunidade de US$12 bilhões.

    Os fabricantes iranianos de eletrodomésticos começaram a investir pesado na nova capacidade de produção. Para satisfazer as necessidades de consumidores que antes compravam marcas importadas, os fabricantes de aparelhos passaram a adicionar novas características a eles. O investimento não ficou limitado a atores já estabelecidos. O mercado de eletrodomésticos contou com muitos estreantes, levando a um cenário fortemente fragmentado. Atualmente há, no Irã, 140 firmas produzindo refrigeradores e 100 produzindo máquinas de lavar, de acordo com cifras compiladas pelo Ministério da Indústria, Mineração e Comércio. As firmas nacionais agora dominam o mercado de eletrodomésticos. Marcas estrangeiras continuam a estar disponíveis, mas os produtos chegam na forma de importações paralelas, que tendem a ser mais dispendiosas do que as marcas produzidas localmente devido à contínua desvalorização da moeda. Ademais, aos produtos importados por vias não oficiais faltam as garantias e a assistência pós-venda que passaram a ser oferecidas pelos produtores iranianos. Esses fatores pulverizaram a fatia antes em poder dos atores estrangeiros. Em 2022, a quota combinada da LG e da Samsung no mercado iraniano de refrigeradores foi de apenas 8%. As duas marcas coreanas foram responsáveis por apenas 13% das vendas de máquinas de lavar.

    Fatia de mercado de refrigeradores no Irã (2022) - Marcas nacionais e estrangeiras

    Tradução da imagem:
    Participação no mercado de refrigeradores do Irã
    Vermelho: empresas domésticas
    Azul e cinza: empresas estrangeiras

    Fatia de mercado de máquinas de lavar no Irã (2022) - Marcas nacionais e estrangeiras
    Tradução da imagem:
    Participação no mercado de máquinas de lavar no Irã
    Vermelho: empresas domésticas
    Azul e cinza: empresas estrangeiras

    Paralelamente à fragmentação do mercado causada pelo dramático aumento da quantidade de fabricantes nacionais de eletrodomésticos, dados do Ministério da Indústria, Mineração e Comércio mostram que a capacidade de produção também aumentou explosivamente. O setor de eletrodomésticos é agora o segundo que mais contribui para o valor agregado industrial, superado apenas pelo setor automobilístico. Tanto para refrigeradores quanto para máquinas de lavar, o volume total da produção era estável nos anos anteriores a 2018. Porém, após uma queda inicial na produção devido a interrupções na cadeia de suprimentos, o choque das sanções estimulou um crescimento significativo nos volumes de produção. As firmas iranianas produziram 2,7 milhões de refrigeradores em 2022, o dobro de 2017, que totalizara 1,35 milhão. A produção de máquinas de lavar atingiu 1,6 milhão em 2022, vindo de cerca de 900 mil em 2017. As autoridades iranianas elogiaram o setor de eletrodomésticos por adicionar empregos a um mercado de trabalho que, de outra forma, estaria debilitado.

    Se houve um ganhador no mercado de eletrodomésticos do Irã, de resto fragmentado, esse foi a marca Entekhab, responsável por 40% do mercado de máquinas de lavar e 27% do mercado de refrigeradores. A companhia, que produz aparelhos de preço intermediário, estava bem posicionada para expandir a produção depois que as sanções voltaram a ser impostas ao Irã. Durante décadas, a Entekhab produziu aparelhos Daewoo sul-coreanos sob licença. Em 2018, ela inclusive tentou comprar a divisão de eletrodomésticos da Daewoo pela segunda vez (a primeira tentativa ocorreu em 2010). O negócio acabou não se concretizando, mas foi um sinal da ambição da Entekhab e do desejo de obter acesso a propriedade intelectual valiosa.

    A Entekhab também tem uma parceria com a marca Haier, fabricante chinês de aparelhos. Isso posicionou a empresa para o crescimento depois que as sanções fizeram marcas como a LG e a Samsung deixarem o mercado iraniano. A Entekhab pôde explorar a cadeia de suprimentos chinesa quando buscou incrementar a produção. Nesse meio tempo, seus concorrentes estavam às voltas para se livrarem de fornecedores europeus, japoneses e coreanos, que em grande parte pararam de exportar para o Irã devido ao risco de sanções. E mais importante: a Entekhab era uma companhia experiente que dispunha de um histórico de localização da cadeia de suprimentos e dinheiro vivo para investir. Houve muitos estreantes no mercado iraniano de eletrodomésticos, mas a maioria carecia dessas significativas vantagens competitivas. Nesse quesito, nenhuma outra firma iraniana no mercado de eletrodomésticos atingiu uma escala similar.

    Tradução da imagem:
    Produção de eletrodomésticos
    Total de unidades produzidas (em milhões)
    Verde: refirgeradores
    Azul: máquinas de lavar
    Linha vermelha: marco temporal das políticas de “pressão máxima” de Trump

    Excesso de capacidade e política industrial

    Embora as autoridades iranianas possam, em algum momento, ter-se preocupado com a possibilidade de as sanções prejudicarem a capacidade de produção dos fabricantes de eletrodomésticos, o crescimento rápido e descoordenado do setor levou, em vez disso, ao excesso de capacidade. O Majles Research Center[Centro de Pesquisas Majles], que é associado ao parlamento iraniano, estima que a atual capacidade de produção total anual de refrigeradores está em torno de 10,5 milhões de unidades, ao passo que a demanda doméstica máxima é de menos de 3 milhões de unidades por ano. Como as sanções restringiram as exportações, a significativa capacidade de produção não usada representa recursos desperdiçados.

    Em um relatório recente sobre o setor, o Majles Research Center adverte que os fabricantes iranianos de eletrodomésticos estão em uma corrida para o fundo do poço. O relatório conclui: “O livre ingresso na indústria de eletrodomésticos levou a que muitas licenças de funcionamento fossem expedidas nas últimas décadas. No entanto, essa liberdade de ingresso impediu que as empresas se beneficiassem de economias de escala. Explorar economias de escala é necessário para atingir uma produção competitiva de alta qualidade”. Em outras palavras, as empresas iranianas foram bem-sucedidas em aumentar a capacidade de produção sob sanções. Porém, a mobilização de capital privado sob sanções reflete um sucesso parcial. No geral, volumes recordes de produção poderiam indicar que o mercado de eletrodomésticos do Irã deu de ombros às interrupções causadas pelas sanções. Porém, no nível das firmas, muitos fabricantes de eletrodomésticos estão lutando com margens de caixa negativas, na medida em que enfrentam uma concorrência intensa num mercado fragmentado. Empresas de um setor em que a produção cresceu podem perder dinheiro do mesmo modo que as de setores em que as sanções restringiram a produção ou as vendas. Desse modo, o excesso de capacidade se tornou uma dor de cabeça inesperada para os formuladores de políticas iranianos.

    Enquanto em muitos países a política industrial implica o uso de subsídios para “aglomerar” o capital privado em setores estratégicos que carecem de investimento, o Irã tem lutado para manter os gastos do governo devido à pressão exercida pelas sanções. Em um contexto em que o investimento do governo é inerentemente restrito, a alocação eficiente de investimento privado é crucial e a política industrial deveria dirigir o foco para a coordenação de falhas nos setores em que o capital privado foi implementado de modo oportunista. As falhas de coordenação evidentes no setor de eletrodomésticos iraniano também deixam claro como, apesar dos apelos para criar uma “economia de resistência” em face das sanções, os formuladores de políticas econômicas iranianos não souberam utilizar a política industrial para controlar e direcionar o comportamento adaptativo das empresas do setor privado. Esse fracasso também criou círculos de apoio entre vários tipos de fabricantes nacionais que se opõem ao tipo de liberalização do mercado inerente ao alívio das sanções – minando a crença central dos formuladores de políticas ocidentais de que as sanções podem estimular mudanças de comportamento em países como o Irã por meio de pressão de baixo para cima, inclusive de lobbies empresariais.

    Quando surgiram os primeiros rumores, em 2021, de que o Irã poderia concordar com um acordo de libertação de prisioneiros com os Estados Unidos, o qual resultaria também na liberação de reservas congeladas mantidas em bancos da Coreia do Sul, uma dúzia de fabricantes de eletrodomésticos escreveu uma carta aberta sem precedentes ao líder supremo Ali Khamenei, com a solicitação de que qualquer acordo desse gênero não levasse à revogação da proibição de importações, mantendo empresas como LG e Samsung fora do mercado. Os signatários se opunham “à importação de marcas internacionais quando a produção local atende as necessidades quantitativas e qualitativas do mercado nacional”. Curiosamente, a carta mencionou Richard Nephew, uma autoridade da administração Obama e que é visto por amplos setores no Irã como o arquiteto principal do programa de sanções dos EUA, reputação que conquistou depois da tradução de seu livro A arte das sanções para a língua persa.

    O grupo de fabricantes de eletrodomésticos alegou que “saturar o mercado nacional com marcas coreanas e japonesas se alinha com os objetivos de Richard Nephew”, presumivelmente porque levaria ao subdesenvolvimento da base industrial do Irã. À medida que o debate sobre a proibição de importações continuava, autoridades-chave, entre as quais o ministro da indústria Abbas Aliabadi, manifestaram apoio à sua revogação, motivadas pela ira pública contra a carta. Aliabadi comentou que, “em um mercado perfeitamente competitivo, não há necessidade de impor tais restrições físicas”. Por ora, porém, essa política permanece em vigor.

    Ainda se verá se os formuladores de políticas iranianos conseguirão transformar o mercado de eletrodomésticos fragmentado do Irã em um mercado competitivo. Esses formuladores de políticas poderiam lançar um programa de racionalização para melhorar as capacidades dos fabricantes nacionais e prepará-los para competir com marcas estrangeiras, inclusive em mercados de exportação. Avaliações recentes da política industrial e de sua aplicabilidade aos desafios econômicos atuais observam o valor potencial das medidas de “controle de ingresso”, as quais garantem que apenas empresas qualificadas tenham permissão para operar em setores estratégicos. O relatório do Majles Research Center observa que a “ausência de políticas industriais efetivas na indústria de eletrodomésticos levou a uma grande quantidade de licenças expedidas, muitas das quais resultaram em firmas que operam como montadoras com qualidade mínima”. O fato de tais medidas não terem sido adotadas indica os limites da capacidade estatal no Irã.

    Nos seus estudos da resiliência econômica de economias sob sanções como o Irã e a Rússia, os formuladores de políticas do Ocidente equivocadamente veem resiliência como decorrência de políticas promulgadas por Estados centralizados que se vangloriam de deter um controle significativo sobre a economia. A economia iraniana não foi derrubada pelas sanções. Porém sua resiliência, amplamente centrada no setor industrial, foi gerada por adaptações no nível das empresas, e não por diretrizes lideradas pelo Estado. No Irã, o resultado econômico foi sustentado por firmas oportunistas que tiraram vantagem das condições criadas pelas sanções e das políticas protecionistas involuntárias que essas sanções provocaram. Porém, essas adaptações no nível das empresas já atingiram amplamente seus limites na economia sob sanções, e os formuladores de políticas iranianos têm sido incapazes de apresentar uma política industrial responsiva. As consequências desses desenvolvimentos para as futuras negociações envolvendo sanções não deveriam ser ignoradas: um segmento crucial do lobby de negócios do Irã se converteu em beneficiário inesperado da guerra econômica global.