11 de fevereiro de 2025

Entrevistas

Entre os círculos do inferno global

Em entrevista, André Singer analisa as eleições de 2024 no Brasil e aspectos da inserção do país na conturbada geopolítica atual

No momento em que as atenções do mundo se voltaram para as eleições no centro do capitalismo—a disputa que terminou por conduzir Donald Trump ao segundo mandato como presidente dos Estados Unidos—, no Brasil, os pleitos municipais, apesar de caráter local, indicaram cenários políticos para os próximos anos no país—sobretudo para a disputa presidencial de 2026. Em outubro de 2024, eleitores brasileiros foram às urnas escolher prefeitos e vereadores. Dentre as disputas, a de São Paulo talvez tenha sido a mais indicativa do futuro. Além de ser o principal colégio eleitoral do país, a cidade apontou possíveis tendências políticas, como a ascensão de uma nova liderança de extrema direita—o antes desconhecido Pablo Marçal—e a tentativa de unificação de todas as forças à direita do centro para derrotar a esquerda. 

Para tratar dos resultados eleitorais e refletir sobre o atual momento da inserção do Brasil no cenário global, Hugo Fanton, editor da Phenomenal World, conversou com André Singer, professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP). A entrevista, realizada em 13 de dezembro de 2024, traz elementos da relação entre estrutura de classes e comportamento político no Brasil, discute os autocratismos de Trump e Bolsonaro e o acirramento do viés fascista na atual conjuntura, e aborda o “estranho mimetismo” recente entre Estados Unidos e Brasil. Além disso, apresenta análises de O Segundo Círculo (Editora Unicamp), lançado no Brasil em setembro passado, para pensar as relações entre centro e periferia em tempos de guerra. A referência ao inferno de Dante indica o aprofundamento da crise, desde 2008, em pavimentos cada vez mais aterradores, o que aumenta os flagelos vividos pelos povos e reduz as chances de saídas pacíficas. Para caracterizar esse momento, defende-se uso do termo “interregno”, pela referência às disputas pela direção global e formação de novas relações de hegemonia.

Entrevista com André Singer

Hugo Fanton: No ano passado, o desempenho de Pablo Marçal na eleição municipal de São Paulo chamou a atenção de todo o país. Isso alterou a cena política brasileira? O que podemos esperar para o período que antecede as eleições presidenciais de 2026?

André Singer: Pablo Marçal, um influencer da internet, foi um candidato inesperado, não estava previsto pelos atores políticos. Surgiu do nada, apoiado por um partido político que não tem nenhum representante no Congresso Nacional, e alcançou um milhão e setecentos mil votos. Foi uma votação extraordinária na disputa eleitoral mais importante do ano: a da cidade de São Paulo, o maior colégio eleitoral do país, de tamanho próximo ao que existe, por exemplo, em Portugal. Por muito pouco—uma diferença de apenas 50 mil votos—ele não foi para o segundo turno. Isso evidenciou questões que não estavam dadas no campo à direita no espectro político: um homem jovem, de 37 anos, sem nenhum suporte, a não ser a própria capacidade de comunicação, foi capaz de mobilizar o eleitorado de extrema direita na cidade de São Paulo contra Jair Bolsonaro. Não no sentido de ser oposição a Bolsonaro, mas de ser independente, porque Bolsonaro já tinha fechado uma aliança com o candidato do MDB, o prefeito da cidade, Ricardo Nunes. 

Para ser reeleito, Nunes colocou um indicado de Bolsonaro como vice-prefeito, de origem da Polícia Militar, e assim caracterizar que havia uma aliança formal não só com o partido do Bolsonaro—o Partido Liberal (PL)—, mas com o próprio Bolsonaro. Quando Marçal começou a subir nas pesquisas, Bolsonaro se viu numa situação difícil. Num primeiro momento, tentou desautorizar Marçal em benefício de Nunes. Mas as bases bolsonaristas se revoltaram contra Bolsonaro e o obrigaram a recuar numa tentativa de conciliação com o Marçal, de oposição a Nunes. Nesse momento, a candidatura Nunes se viu seriamente ameaçada pelo abandono das bases bolsonaristas. Quando isso ocorre, surge a figura que, a meu ver, é a principal ganhadora de todo o processo eleitoral de 2024: o governador do estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas. Ele foi o patrono da candidatura Nunes. No entanto, Tarcísio tem uma dívida com o Bolsonaro porque, mesmo sem nunca ter sido político—era um administrador que participou até mesmo do governo Dilma Rousseff—,foi indicado em 2022 por Bolsonaro para ser candidato ao governo do estado e ganhou a eleição porque o bolsonarismo obteve larga maioria no interior do estado. Agora, em 2024, o Tarcísio se viu obrigado a tomar uma decisão: ficar com Nunes ou com Marçal e Bolsonaro. Ele optou pelo primeiro e isso salvou a candidatura de Nunes à reeleição, levando o próprio Bolsonaro a recuar do apoio ao Marçal e se colocar numa posição mais ou menos neutra. Na prática, Bolsonaro teve de se afastar da eleição de São Paulo por não conseguir encontrar uma posição adequada. Acontece que o Tarcísio, apesar de ter se colocado contra o Bolsonaro naquele momento, nunca deixou de dizer que era preciso trazer o ex-presidente de volta para a candidatura Nunes. Ou seja, o Tarcísio compreendeu que, se a direita se unificar, tem condição de ser competitiva. 

O Tarcísio é o que chamo de “bolsonarismo Shrek”: não se apresenta com os mesmos traços de radicalismo de Bolsonaro ou Marçal. É uma figura híbrida, originária do campo da extrema direita, mas que se apresenta de um outro jeito, talvez de forma mais palatável para a direita não extremada. O prefeito Ricardo Nunes tem o mesmo perfil. Não é uma figura de extrema direita, mas abraçou várias de suas bandeiras porque também entendeu que a unidade era indispensável. 

A eleição municipal de São Paulo foi a mais nacionalizada de todas e é passível de ser entendida, de maneira relativa, como uma prévia de elementos que podem se repetir nas eleições presidenciais de 2026. É claro que o Brasil é diferente de São Paulo, não deve haver uma transposição automática. Mas alguma coisa do que aconteceu aqui pode vir a ser útil para compreender certos elementos de 2026. A eleição de 2024 mostrou a potência da extrema direita após a derrota de 2022. Foi a primeira vez em que a extrema direita voltou às urnas, e ela se mostrou potente—não a ponto de ganhar, mas a ponto de competir. E mostrou que, se houver unidade, a direita pode ganhar a eleição.

HF: Quais são os impactos da vitória do “partido do interior” nessas eleições municipais na relação dos setores da direita tradicional com a “confederação bolsonarista”? Há um realinhamento em curso, com progressivo distanciamento de Bolsonaro, ou o cenário pós-eleitoral aponta para uma reafirmação da extrema direita e de Bolsonaro, polo aglutinador das direitas do país? E de que modo isso se desdobra no cenário eleitoral de 2026? É possível, desde já, vislumbrar a reedição da disputa do Lulismo versus indicado direto de Bolsonaro, ou as eleições municipais mudaram os rumos?

AS: O realinhamento eleitoral, tal como propus em 2006,1 está de pé, sobretudo no que diz respeito à base da pirâmide social, que tem dado vários sinais de que continua lulista. Um desses sinais é a avaliação do governo Lula realizada pelo Datafolha no começo de outubro passado: no conjunto do eleitorado, há aprovação como “ótimo e bom” de 36%. Mas, na base da pirâmide, essa proporção sobe para 46%. Em todos os demais que não são a base da pirâmide, gira em torno de 27%. É muita diferença. É como se o país estivesse dividido em dois blocos, em duas metades sociais, sendo que a metade de baixo apoia o governo e a metade de cima tende a não apoiar o governo. Isso me leva a pensar que o lulismo está de pé. Um outro elemento que indica nessa direção: a única vitória importante do PT nas eleições municipais foi em Fortaleza, uma das principais capitais do Nordeste, que é o centro do subproletariado, essa fração de classe que está tecnicamente na base da pirâmide. Então, nesse sentido, o realinhamento permanece. Mas o que está acontecendo de novidade é que há um deslocamento dentro do campo da classe média, que começou, do ponto de vista partidário, com o esvaziamento do PSDB e a ida desses setores para extrema direita a partir de 2016. 

Um dos fatores em curso—e que ficou muito claro também na eleição municipal de 2024—é a tentativa do Bolsonaro de construir, pela primeira vez, um partido que organize e substitua o PSDB, que é o PL. Até então, ele tinha se recusado a fazer isso. Bolsonaro primeiro se filiou ao PSL, do qual saiu durante o mandato. Depois, lançou um partido próprio que, abandonado pelo caminho, se desfez. E então aderiu a um partido que já existe há muito tempo: o PL, do qual a maior liderança se dispôs a se tornar o principal organizador do bolsonarismo. Então, agora, o bolsonarismo tem um veículo partidário que foi bem nas eleições. É o partido que dispunha de mais recursos do Estado para fazer campanha, por ter a maior bancada na Câmara dos Deputados, e saiu-se bastante bem em outubro. 

Mas isso tem um preço: como qualquer força que entra no jogo institucional para valer, há um efeito de normalização. De alguma forma, ela é atraída para as regras implícitas ou explícitas do jogo eleitoral. No caso brasileiro, a regra implícita é que esses partidos precisam se comportar como aquilo que o Fernando Henrique Cardoso, quando era apenas cientista político, há 40 anos, chamava de “partido ônibus”: partidos que não têm uma característica homogênea, nos quais você entra e sai a qualquer momento e que, portanto, têm seções regionais e locais com características muito diferentes entre si. Isso leva a casos muito estranhos, mas que ocorreram nestas eleições, como alianças locais entre PL e PT. É algo muito raro, mas aconteceu no Brasil—para o eleitor estrangeiro ter uma ideia da complexidade que é a vida partidária brasileira. 

O PSDB foi substituído, em parte, pelo PL, mas em parte também pelo PSD, que é dirigido por um político bastante tradicional, o Gilberto Kassab. No estado de São Paulo, sobretudo no interior, o PSD vem absorvendo a antiga máquina do PSDB, que é muito forte—uma estrutura num estado da federação muito poderoso. Com isso, estamos assistindo a uma reacomodação nesse campo à direita do centro. É uma situação em que, de um lado, a extrema direita adquire um veículo partidário com alguma solidez inicial e, de outro, há o fortalecimento de um partido do chamado “centrão”, que é o nome que se usa para aquilo que eu, conceitualmente, proponho como o “Partido do Interior”, representado pelo PSD, que não é de extrema direita. O problema da direita é saber se haverá uma unidade entre PSD e PL. Tal como ocorreu em São Paulo, a direita e a extrema direita podem estar separadas no primeiro turno e juntas no segundo. 

Agora, quais são as incógnitas aqui? Primeiro, se Bolsonaro insistirá em ser candidato, ainda que juridicamente esteja impossibilitado de concorrer. Há vários sinais de que sim, e nisso ele se espelha no que fez o presidente Lula em 2018: apesar de ter sido colocado fora da competição, deixou para o último momento o reconhecimento de que ele não poderia ser candidato e a indicação de Fernando Haddad para concorrer no seu lugar. Isso cria muitos problemas para a candidatura porque, por exemplo, se Tarcísio quiser ser candidato a presidente da república, terá de se tornar um nome nacional e, para ser conhecido, precisa se movimentar. Porém, se o Tarcísio se coloca em campo, confronta o Bolsonaro e, com isso, contradiz uma das suas premissas, que é correta: separada, a direita perde, ela precisa se unificar. O problema do Tarcísio é essa equação. A outra pergunta é se Marçal ou algum candidato como o Marçal teria a chance de reproduzir, no plano nacional, o que aconteceu na cidade de São Paulo. É uma pergunta muito difícil, porque o Brasil não é São Paulo. O Brasil é um país continental, gigante, muito heterogêneo, com muitas características distintas, conforme a região, a religião, a idade e o gênero etc. Mas não é impossível, como mostram os fenômenos anteriores de Jânio Quadros, Fernando Collor e do próprio Bolsonaro.

HF: Quais as relações entre essa dinâmica das forças políticas e a estrutura de classes do país? Houve realinhamentos, seja de setores do capital, seja das classes trabalhadoras?

AS: Vou começar de baixo para cima e falar sobre quatro segmentos populacionais. Primeiro, a base da pirâmide. Como disse antes, acho que temos aí o lulismo em pé. Por exemplo, uma das mais expressivas vitórias no Brasil foi a do João Campos (PSB), em Recife, que estava liderando a coalizão que apoiou Lula em 2022 e que foi apoiado por Lula agora em 2024. Recife é uma das principais capitais do país do ponto de vista político. Já falamos da vitória especificamente do PT em Fortaleza, e tem ainda a vitória do Eduardo Paes (PSD) no Rio de Janeiro, onde, com o apoio do Lula, a coligação vencedora impingiu uma derrota sentida ao Bolsonaro em seu berço político e principal reduto. Não é pouca coisa. O bolsonarismo segue bastante forte no Sul do país, onde venceu nas três capitais, e obteve vitória expressiva no Centro-Oeste, além do desempenho em algumas capitais do Nordeste. Não obstante, a eleição e as pesquisas mostram que a base da pirâmide continua com o lulismo até aqui. 

O segundo escalão é aquilo que os institutos de pesquisa designam como os que recebem de 2 a 5 salários mínimos de renda familiar mensal. Aqui, começa uma nítida divisão. A candidatura Marçal em São Paulo teve uma expressão significativa nesse setor. Não foi o principal apoio dele, que era entre os de maior renda. A extrema direita cresce com a renda. Também foi assim com Bolsonaro. Nesse sentido, é uma oposição de classe ao lulismo. Quanto maior a renda, mais esses setores intermediários se opõem à base da pirâmide. Essa é a contraposição fundamental que está em jogo do ponto de vista social. Os que recebem de 2 a 5 salários mínimos são muito importantes do ponto de vista numérico, da ordem de mais de 30% do eleitorado brasileiro, enquanto mais de 40% estão na base. Esses dois segmentos decidem a eleição, porque os de maior renda não têm número para influenciar. Mas esse setor de 2 a 5 salários está dividido. A extrema direita mostra influência ali, mas não é um setor que se deslocou por completo para a extrema direita—está em disputa, e eu até diria que esse é o setor que vai decidir a eleição em 2026. 

Em seguida, temos o terceiro escalão, formado por setores intermediários, que são os que estão acima de 5 salários mínimos de renda familiar mensal. Aí também há uma divisão, que é tripla: entre extrema direita, direita e uma pequena franja de classe média progressista. A candidatura de esquerda em São Paulo, Guilherme Boulos, teve dificuldades na base da pirâmide e também crescia com a renda, similar, um pouco, com o que era a primeira configuração do PT, até 2002. 
Por fim, o quarto escalão seriam as classes dominantes, que nem entram nas pesquisas de opinião. Não têm importância do ponto de vista numérico, mas sim do ponto de vista da estrutura de classe. Acho que está posto o apoio de uma parte da classe dominante à extrema direita, sobretudo do setor ligado ao agronegócio. O PL, por exemplo, foi muito bem nas cidades que têm mais faturamento do agronegócio. Isso se aplica também ao empresariado de negócios e da construção civil, que são setores economicamente importantes. A dúvida é o que fará a burguesia cosmopolita, porque esta se aliou à candidatura Lula com muita dificuldade em 2022, como procurei mostrar em outros trabalhos.2 É o setor do empresariado mais moderno que, no segundo turno de 2022, decidiu aderir à candidatura Lula num ambiente de bastante tensão e dificuldade, que permanece. Os dois anos de mandato até agora foram atravessados por uma disputa que acabou sendo praticamente o assunto central do governo: o problema da austeridade. Esse setor da burguesia faz questão de que haja um corte de gastos públicos compatível com o que eles entendem ser um equilíbrio fiscal que dê tranquilidade a essa fração do capital. É uma coalizão muito frágil, muito dividida internamente, de tal modo que pode surgir uma candidatura com características aparentemente de direita—e não de extrema direita—que se torne atraente para essa burguesia cosmopolita. Essa indagação vai permanecer nos próximos dois anos.

HF: Ao lidar com os fenômenos de Trump nos EUA e Bolsonaro no Brasil, o senhor apresentou a ideia de “autocratismo de viés fascista”. Poderia explicar em linhas gerais esse conceito e como entendê-lo agora, à luz dos novos acontecimentos: a eleição de um Trump ainda mais radicalizado e, no caso do Brasil, tanto o fenômeno Marçal quanto os impactos da inelegibilidade e dos processos contra o Bolsonaro?

AS: Do ponto de vista empírico, o que foi possível comprovar durante o governo Bolsonaro é uma tendência para um regime autocrático. Não tenho elementos empíricos para dizer que ele caminhava no sentido de um regime de tipo fascista, mas sim autocrático, em sentido específico, porque é voltado para seu próprio fortalecimento, entendendo “autocrático” como algo bem particular, que é o tipo de regime centrado na figura do líder. Diferentemente, por exemplo, daquilo que ficou caracterizado como o regime militar tecno-burocrático de 1964, que não tinha uma liderança destacada e se organizava em torno de um aparelho. O viés fascista está em ter ativado, ou buscado ativar, o inconsciente da massa. E falo “massa” de propósito, porque na ideia de ativação do inconsciente, que vem da análise que a Escola de Frankfurt faz do fascismo histórico, esse inconsciente atravessa as classes. É claro que pode continuar tendo uma base de classe, mas não se restringe a isso, porque se comunica com o inconsciente. Nesse tipo de comunicação que ativa o inconsciente, o indivíduo sujeito a ela não sabe que está, é um tipo de comunicação que não é racional, e por isso surge aquilo que Adorno chama de “sistema delirante”. Por exemplo, em 2021, as redes bolsonaristas começaram a difundir que a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) estava recebendo dinheiro chinês para viabilizar a reabilitação jurídica do ex-presidente Lula e, com isso, escravizar o povo brasileiro à China. Isso foi divulgado não como uma metáfora, mas como um fato. E esse fato é completamente delirante, coloca quem acredita em uma esfera que não é atingível por quem quer dialogar logicamente. É a mesma esfera na qual estão pessoas que acreditam que a Terra é plana. Mas não adianta discutir, porque a pessoa não está acreditando nisso por razões conscientes, racionais, lógicas. Acredita porque aquilo é o reflexo de uma ativação inconsciente. Isso não havia na política brasileira até a entrada de Bolsonaro. É uma novidade que caracteriza o viés fascista. 

Acompanho a política dos EUA de longe, então posso estar enganado, mas a minha impressão é que essa vitória de Trump em novembro passado se deu em contexto de acirramento desse viés fascista. Minha análise é para o Brasil, mas uma vez que foi feita a pergunta, estou arriscando uma opinião sobre os Estados Unidos. Por que acirramento do viés fascista? Porque, por exemplo, ao prometer deportar milhões de pessoas, ele está, digamos assim, participando desse sistema delirante. Lembre-se da fábula de que os imigrantes estavam comendo pets no interior dos EUA: isso é parte de um sistema delirante, não é? Então, como estamos justamente em face desse tipo de fenômeno, que é diferente daquilo que a gente se acostumou a aprender na análise política, fica difícil dizer o que Trump fará ao tomar posse. Mas, a julgar pelo teor da campanha, estamos diante de um acirramento do viés fascista. 

No caso do Brasil, entendo que esse traço de viés fascista foi plenamente adotado na campanha de Marçal na eleição de São Paulo. Foi uma candidatura de extrema agressividade. Não uma agressividade lógica, mas uma que visa o inconsciente, a ponto desse candidato fazer ofensas e provocações aos demais concorrentes de uma tal ordem que, num debate público na época—para ciência dos leitores estrangeiros—,levou uma cadeirada de outro candidato. Marçal ainda introduziu esse teor de violência num outro debate subsequente, em que um de seus assessores deu um soco no publicitário da campanha de outro candidato. Esses elementos, que podem parecer fortuitos, a meu ver, fazem parte de uma comunicação que é muito mais efetiva do que simplesmente as palavras. São atos de grande violência que ativam o inconsciente da massa. Por isso, o fenômeno Marçal é muito significativo, dada a existência de um espaço social para esse tipo de política, que chamo de viés fascista.

HF: O livro lançado em setembro passado, O Segundo Círculo, busca situar o Brasil no mundo. Como o país se situa hoje, em comparação ao período do início dos anos 2000? Como pensar o Brasil nesse novo cenário de uma possível bipolarização entre China e EUA?

AS: Enquanto país da periferia, o Brasil sofre determinações que emanam do centro do sistema, mas, ao mesmo tempo, processa essas determinações de acordo com a sua formação de classe. Como mostrou o professor Fernando Rugitsky no livro “O Brasil no Inferno Global”, neste momento, o Brasil tende à condição de fornecedor de matéria-prima mais ou menos processada para ser industrialmente utilizada na Ásia. Falando metaforicamente, o Brasil está voltando a ser o celeiro do mundo ou de uma parte do mundo. Enquanto isso, o terceiro vértice desse triângulo, os Estados Unidos e a Europa, continuam controlando o conjunto do sistema por meio de mecanismos financeiros. O que não sabemos é se a bipolarização entre EUA e China, que foi objeto do livro “O Segundo Círculo”, gerará ou não investimentos industriais chineses e do polo EUA-Europa no Brasil. Até aqui, há alguns investimentos industriais chineses no Brasil, como a planta da BYD em Camaçari. Não sei avaliar se esses investimentos têm escala para indicar uma mudança estrutural ou uma reversão da tendência anterior, que é de desindustrialização. Do mesmo modo, não tenho notícia, até aqui, de transferência de tecnologia avançada, que é fundamental para pensar na possibilidade de reversão dessa tendência. A mesma pergunta se coloca em relação ao bloco comandado pelos EUA em oposição à China, porque o Brasil, sendo um país importante no cenário internacional, poderia se beneficiar dessa divisão, negociando com os dois lados concessões que apontassem na direção daquilo que é o projeto histórico de uma parte da sociedade brasileira, que é buscar a saída definitiva do chamado “atraso”. 

Em relação ao início dos anos 2000, quando Lula venceu a primeira eleição presidencial, a novidade é que o Brasil está bastante mais desindustrializado, reprimarizado. Isso explica, em parte, o fenômeno da confederação bolsonarista ter sido derrotada em 2022 por menos de 1% dos votos, mesmo depois da catástrofe humanitária que foi a gestão de Bolsonaro em relação à Covid-19. Há também a conversão complementar de um país voltado para os serviços e não para a indústria, algo que tem tudo a ver com essa confederação bolsonarista, que congrega frações da classe dominante ligadas ao agronegócio e aos serviços. Portanto, hoje, a situação do ponto de vista de um projeto de desenvolvimento é bem mais difícil do que há 20 anos. 

Do ponto de vista da redistribuição de renda, o efeito também é negativo porque, dada a precarização, as perspectivas de melhores empregos, melhor renda e mesmo de uma prosperidade em ambiente de justiça social para os empreendedores—uma vez que o empreendedorismo é um fenômeno hoje importante na classe trabalhadora—têm se tornado cada vez mais longínquas. O que tem crescido no Brasil é o trabalho precarizado, uma exploração mais selvagem da mão de obra e uma ocupação crescente de espaços pelo crime organizado. O problema de como organizar um novo programa face a esta situação atual, eu diria, é uma das questões mais angustiantes deste momento. 

HF: No primeiro capítulo do livro, defendemos o uso da palavra “interregno” para pensar a crise global. Poderia comentar qual é o ganho analítico em pensar nesses termos?

AS: A proposta do artigo é pensarmos que interregno, para Gramsci, significa um período de luta entre forças que não têm hegemonia, mas buscam ter. Portanto, é um ângulo propriamente político de olhar para o interregno como período de disputa entre essas forças. Tentamos interpretar o fenômeno Biden como um novo americanismo, quer dizer, como a busca pela organização de uma nova direção, e acho que isso não perde validade com a derrota eleitoral porque de fato apareceram elementos de uma nova direção, sobretudo na primeira metade do governo, quando Biden assumiu uma parte das bandeiras da esquerda do Partido Democrata sem nunca ter sido desse campo. Em um cenário de disputa por nova direção, ele organizou um novo programa que cogitamos ser uma proposta de novo americanismo. O problema é que essa direção perdeu a eleição. E agora já estamos num outro momento, em que precisamos compreender por que perdeu a eleição, por que essa direção foi mal sucedida. O fato é que, na luta interna, ela foi derrotada por um outro viés, do trumpismo, que vai agora apresentar uma contra-direção para buscar resolver os problemas que a direção anterior não conseguiu. Por exemplo, há um conjunto de análises que apontam para uma muito difícil condição de vida do cidadão médio norte americano, para não falar dos cidadãos propriamente da base da pirâmide nos Estados Unidos, que é diferente da brasileira. Como o Trump vai lidar com isso? Se acompanhamos por essa ideia de interregno, entendemos que esta força está se propondo a apresentar uma outra direção. E poderíamos ainda pensar em termos globais, em qual é a direção oferecida pela China, porque estamos falando de direção simultaneamente para dentro dos países e para fora, que foi exatamente o que o Biden tentou articular mas, contraditoriamente, com uma política de tipo social avançada para dentro e beligerante para fora. Caberia analisar também o que a China está propondo para o Sul Global e, ao mesmo tempo, para sua própria economia. A questão é como isso se articula do ponto de vista de forças que estão tentando disputar a hegemonia mundial. Acho que a utilidade da ideia de interregno é este foco nas linhas das forças políticas que estão disputando um período em que não há uma hegemonia definida. 

HF: Nesse mesmo livro, aparece a ideia de paralelismo entre Brasil e Estados Unidos, de um mimetismo recente entre os países. Abordamos um pouco isso pelo conceito de autocratismos de viés fascista—o paralelismo entre Trump e Bolsonaro. Pode apresentar, em linhas gerais, os principais aspectos desse paralelismo e a implicação disso para compreender o Brasil no mundo?

AS: O que nos levou à ideia de mimetismo foi a constatação de que, desde 2016, a política brasileira começou a ficar parecida com a política norte-americana. Fundamentalmente, porque o ex-presidente Jair Bolsonaro, a partir de um certo momento, começou a literalmente copiar todas as ações de Trump, em alguns casos até nos detalhes. O ápice desse processo de cópia foi o levante, por assim dizer, de 8 de janeiro de 2023, em que uma multidão brasileira invadiu e arrebentou as sedes dos três poderes em Brasília, imitando o que havia acontecido em 6 de janeiro de 2021 na invasão do Capitólio. Isso foi uma espécie de performance imitativa, de consequências extraordinárias, porque boa parte dessas pessoas está presa até hoje, pagando um preço altíssimo por essa espécie de sistema delirante. Esse foi o auge de um processo longo de cópia. A partir daí, a nossa pesquisa nos levou para caminhos bastante diversificados. Por exemplo, o filósofo Roberto Mangabeira Unger afirma que não há nenhum país no mundo mais parecido com os Estados Unidos do que o Brasil: o grau de isolamento dos dois países, de tamanhos continentais, muito voltados para dentro, e bastante isolados dos outros. Vale lembrar que o Brasil tem uma tradição histórica de voltar as costas para a América Latina e olhar para a Europa primeiro e depois para os Estados Unidos. É também fato que o Brasil, historicamente, copia fórmulas norte-americanas, por exemplo, a adoção do presidencialismo, embora isso seja comum também a outros países da América Latina. E, por fim, o elemento que talvez seja mais atual—e o núcleo da discussão: os dois países vêm se desindustrializando paralelamente. 

É claro que os Estados Unidos são o centro do sistema e o Brasil é um país da periferia, então é diferente. Mas, curiosamente, os dois países vêm percorrendo uma desindustrialização paralela e, com isso, há consequências políticas, como o fortalecimento político relativo do agronegócio. A partir disso, o que significa o interior dos dois países se voltar para a extrema direita? É um elemento estrutural que pode ajudar a compreender isso que estamos chamando de estranho mimetismo, porque são dois países, em que pesem essas semelhanças, muito diferentes. Um é central e o outro é periférico, têm formações sociais bem diferentes e tradições políticas bem distintas. Para dar um exemplo entre muitos, os Estados Unidos são um país historicamente bipartidário. O Brasil é um caso de pluripartidarismo extremado, de extrema fragmentação partidária. Então, o que explica as estranhas semelhanças que temos visto? Acho que um elemento é o da desindustrialização. E essa discussão nos leva ao levantamento de hipóteses, por exemplo, para tentar compreender se a vitória de Trump dos Estados Unidos vai ter muita influência sobre o Brasil. Esses canais de comunicação antes não existiam e agora devem ser observados mais de perto.

HF: Diante desse cenário, como pensar a esquerda e o futuro da esquerda no Brasil?

AS: Em termos conjunturais, vejo três grandes desafios. O primeiro é prestar muita atenção no fato de que cortes orçamentários em programas que fornecem renda e benefícios para a base da pirâmide podem ter um efeito fatal para o lulismo, que está inteiramente assentado sobre ela. Possíveis cortes no salário mínimo, no Benefício de Prestação Continuada, no abono salarial, que vão diretamente para a base da pirâmide, precisam ser observados com o máximo cuidado do ponto de vista político. Segundo, há uma percepção, algo também comum aos Estados Unidos e ao Brasil, de que o aumento do custo de vida está impactando a base da pirâmide e também o escalão imediatamente superior, de 2 a 5 salários mínimos de renda familiar mensal, com uma força que faz com que os números agregados da economia sejam pouco importantes. Há crescimento econômico, queda do desemprego, aumento da massa salarial, mas quando as pesquisas são feitas, há até aumento do pessimismo em relação à economia, o que parece dizer que, para o cidadão comum, a vida continua muito difícil. E isso pode ter a ver com a onda de inflação no custo de vida mundial, decorrente da desorganização das cadeias produtivas pela Covid-19 e talvez depois pelas guerras, porque os preços do petróleo e da energia impactam muito toda cadeia de preços e, particularmente, no custo de vida. Então, o segundo desafio é desenhar políticas de defesa da economia popular, que impeçam que esses efeitos da economia global continuem chegando nas camadas de menor renda. O terceiro, e mais difícil, é formular um programa que permita disputar essa faixa de eleitores que recebem de 2 a 5 salários mínimos de renda familiar mensal, que não são a base da pirâmide, mas que são trabalhadores entre os quais a precarização é bastante presente. Por exemplo, um entregador de aplicativo que trabalha com motocicleta na cidade de São Paulo não está na base da pirâmide. Pode parecer contraintuitivo, mas no caso brasileiro ele está no setor intermediário, não está entre os mais pobres. E qual projeto pode disputar esse eleitor que se mostrou bastante propenso a apoiar o Marçal em São Paulo? Tem que ser um projeto de desenvolvimento do país. Não pode ser outra coisa senão um projeto desenvolvimento. Mas como pensar o projeto de desenvolvimento nas condições adversas globais que descrevi antes? Para terminar de uma forma irônica, eu diria que é preciso fazer isso já. Mas, como fazer? Não sei.

Notas de rodapé
  1. Sobre o realinhamento eleitoral no Brasil na primeira década dos anos 2000, ver: Singer, A. Os sentidos do Lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

    ↩
  2. Ver, sobre o tema, Sinver, A. V. Lula’s return. New Left Review, v. 1, p. 5-32, 2023.

    ↩
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