24 de abril de 2025

Entrevistas

Salvar o planeta para quem?

Entrevista com Alfredo Santos da CUT-Bahia sobre a onda de investimento chinês no estado e o lugar da classe trabalhadora no projeto de reindustrialização verde do Brasil

O Polo Industrial de Camaçari, na Bahia, atraiu a atenção do mundo todo após o anúncio da BYD em 2023 de que instalaria ali sua maior fábrica fora da China. Inaugurado em 1978, o Polo foi o primeiro complexo petroquímico planejado do Brasil, peça central do projeto de desenvolvimento da indústria nacional que vigorou até o fim dos anos 1980. Contribuiu historicamente para o desenvolvimento econômico, do mercado de trabalho e para a qualificação dos profissionais formados na Bahia. A partir da década de 1990, no entanto, com a abertura comercial do Brasil e as adversidades do cenário externo, o Polo passou por crises de competitividade e mudanças estruturais significativas.

O Polo de Camaçari sempre contou com indústrias complementares à cadeia petroquímica, mas a ampliação das atividades teve como marco a chegada da indústria automobilística—ocorrida com a instalação da americana Ford nos anos 2000. Após duas décadas de operação, em 2021, a Ford fechou as portas, declarando passar por dificuldades econômicas agravadas pela pandemia, e o Polo hoje passa por mais um processo de expansão setorial das atividades: atrai investimentos de montadoras de veículos elétricos e empresas da área de energias renováveis, em sua maioria, de origem chinesa. De forma emblemática, a nova fábrica da BYD está sendo construída no antigo terreno da Ford.

Ao longo dos anos, o polo petroquímico se transformou em um polo industrial em sentido amplo e, agora, vem sendo projetado como polo industrial verde. Para tratar do papel de Camaçari no projeto de reindustrialização verde do Brasil sob a perspectiva da classe trabalhadora, Maria Sikorski, editora da Phenomenal World, conversou com Alfredo Santos, Secretário-Geral da CUT-Bahia e coordenador do setor de imprensa do Sindiquímica-Bahia, sindicato que representa vinte mil trabalhadores das indústrias químicas, petroquímicas, de plásticos, fertilizantes, gás natural e de terminais químicos do estado. 

Uma entrevista com Alfredo Santos

Maria Sikorski: Você pode começar contando um pouco da história do Polo de Camaçari e da relação dele com as distintas fases da política industrial brasileira? 

Alfredo santos: O Polo de Camaçari foi construído entre meados da década de 1970 e início da década de 1980. Ele surge com uma estrutura de propriedade tripartite: a composição acionária contava com capital privado nacional, multinacional e capital estatal brasileiro. Havia uma central de matérias-primas controlada por uma empresa pública, a Copene (posteriormente privatizada), que fomentava as indústrias de segunda geração. Essa central petroquímica fornecia a base da cadeia produtiva da nafta, do eteno, do propeno etc. É importante destacar esse modelo tripartite porque ele é um exemplo de como a industrialização no Brasil só aconteceu com uma forte participação do Estado, seja direta, como foi o caso do Polo Petroquímico de Camaçari, seja por meio do financiamento do BNDES—mesmo as empresas privadas, tanto no surgimento do Polo quanto atualmente, a exemplo das chinesas que se instalaram recentemente, contaram com financiamento do Banco. É o Estado brasileiro que financia a industrialização. 

O Polo de Camaçari seguiu crescendo ao longo dos anos 1980 e 1990. Mas, a partir da abertura comercial do governo Collor (1990-1992) e, de forma mais acentuada, durante o governo FHC (1995-2002), ele enfrentou uma crise de produtividade e competitividade internacional e sofreu com reduções de investimento e fechamento de fábricas. No início dos anos 1990, esse complexo industrial respondia por mais de 30 mil empregos diretos. No final da década, o número havia caído para pouco mais de 10 mil. 

A partir de 2003, com o primeiro governo Lula (2003-2010), o Estado brasileiro volta a investir na industrialização, mas agora de forma indireta: a Petrobras passa a figurar como investidora importante dos chamados “grandes players” do Brasil. Um fruto desse processo é a Braskem—a Petrobras detém, hoje, 47% das ações da empresa. Recuperou-se um tanto de competitividade internacional, mas, por outro lado, observou-se em todo o país um processo de monopolização da central de matérias-primas e da cadeia de resinas termoplásticas que implicou o fechamento de várias empresas que não conseguiram concorrer com os grandes players—que acabavam atuando como fornecedores dos próprios concorrentes.

Atualmente, o setor petroquímico brasileiro enfrenta uma crise gigantesca. Hoje, o Polo de Camaçari não tem condição de competir internacionalmente. O setor de fertilizantes é um exemplo: 85% dos fertilizantes usados pelo agronegócio brasileiro são importados. A cadeia termoplástica importa cerca de metade dos insumos que utiliza. Esse ingresso de produtos importados nas cadeias petroquímicas acontece por dois motivos. O custo doméstico das cadeias ficou muito alto se comparado ao de cadeias mais modernas que têm base gás ao invés de base nafta. As indústrias estadunidense, árabe e indiana exportam um produto de preço mais baixo do que o nosso custo de produção doméstico, tanto por falta de atualização tecnológica das nossas plantas quanto por fatores ambientais: os EUA, por exemplo, utilizam gás de fracking, que tem um custo de produção muito inferior, mas é extremamente danoso ao meio ambiente. O Brasil não produz gás de fracking e tem, inclusive, restrições ambientais ao seu uso. Além disso, o próprio preço do gás brasileiro é bastante alto: chega a ser cinco vezes maior do que o estadunidense. Isso mina a competitividade internacional da nossa indústria petroquímica. Se o país não tiver uma política industrial voltada a preservar o mercado nacional, a tendência é que essas indústrias todas quebrem.

MS: A Bahia tem sido apontada nacional e internacionalmente como peça essencial do projeto de reindustrialização verde do Brasil e da transição energética em nível global. É o estado da federação que mais produz energia renovável de fontes solares e eólicas do país e vem atraindo muito investimento estrangeiro, especialmente chinês, nessas cadeias produtivas. 

Com a promessa de fabricação de carros elétricos pela BYD e a instalação de outras empresas chinesas do setor de energias renováveis, há quem diga que Camaçari pode se tornar uma referência da reindustrialização verde no Brasil. Quando anunciou a instalação da fábrica no antigo terreno da Ford, por exemplo, a BYD prometeu trazer para o Polo etapas de alto valor agregado da cadeia produtiva de veículos elétricos, inclusive aquelas relacionadas a pesquisa e desenvolvimento, além de gerar milhares de empregos. A CEO da BYD para as Américas, Stella Li, declarou que o objetivo era transformar Camaçari em um “Vale do Silício brasileiro”. 

Diante da crise no setor petroquímico, é possível que o ingresso de outras cadeias represente uma retomada do papel de Camaçari no desenvolvimento nacional? 

AS: A planta da Ford, inaugurada em 2001, representou ingresso da cadeia automobilística no Polo de Camaçari. Após 20 anos, a Ford encerrou as operações e, recentemente, empresas chinesas, como a BYD, passaram a investir nessa cadeia. Outras empresas chinesas da área de energias renováveis, como a Sinoma e a Goldwind, também se instalaram no Polo. Mas, ainda que haja uma promessa de que a planta da BYD funcione, de fato, como uma fábrica, por ora, essas empresas operam apenas como montadoras, praticamente maquiladoras.

O processo de atração da BYD para a Bahia envolveu muito subsídio estatal. O governo da Bahia tornou os carros elétricos isentos de IPVA a partir de 2024, por exemplo. Houve incentivos públicos na transferência do terreno que era da Ford para a empresa chinesa, há também financiamento do BNDES. Por enquanto, a BYD está apenas montando os carros aqui. Há uma promessa de mudar isso no futuro, mas, por ora, as etapas de maior valor agregado da cadeia não estão na Bahia. O polo petroquímico tem grande potencial para a produção de baterias, mas as baterias desses veículos não têm sido produzidas aqui. Há potencial de beneficiamento de lítio, há potencial da indústria plástica para a produção de peças. É possível produzir os carros aqui, mas por enquanto a promessa da BYD não se concretizou. 

A questão é: quais contrapartidas ao subsídio estatal nós poderíamos exigir dessas empresas? Esse é o papel do Estado brasileiro na reindustrialização. Se as plantas funcionarem como meras montadoras, o que a gente ganha com isso? Agora, se o Estado exigisse que, dentro de determinado prazo, a BYD beneficiasse lítio em território nacional e fabricasse as baterias aqui, que utilizasse as indústrias locais para a fabricação de peças, enfim, que efetivamente tivesse partes da cadeia produtiva operando aqui, a coisa mudaria de figura. 

No passado, houve um debate semelhante na indústria petroquímica. A política de conteúdo nacional para a cadeia de petróleo—abandonada após o golpe de 2016—exigia que toda indústria que prestasse serviço para a Petrobras tivesse um percentual de maquinário produzido em território brasileiro. A indústria naval do país renasceu naquele período e, quando o conteúdo local deixou de ser exigido, quebrou novamente. 

A indústria brasileira não consegue competir sem alguma forma de incentivo. Não existe industrialização sem participação do Estado. Se o projeto de industrialização não exigir contrapartidas ao investimento estrangeiro, seja estadunidense, chinês ou de qualquer outro lugar, o Brasil vai simplesmente cumprir um papel na política industrial de outro país. Nenhuma empresa decide expandir as operações para outro país de forma altruísta. Se investe é porque isso atende aos seus próprios interesses. E investimento, seja qual for a origem, é sempre bom. A questão é o que a gente exige dos investidores para satisfazer os interesses nacionais também. 

Por muitos anos, a industrialização brasileira foi muito dependente dos Estados Unidos. Se a gente simplesmente trocar o imperialismo norte-americano por um imperialismo chinês, no final, teremos o mesmo resultado. Não podemos simplesmente atender aos interesses de quem quer investir. O investidor externo quer lucrar. O que o país ganha quando subsidia a obtenção de lucro dele?

MS: Como o movimento sindical da Bahia encara o papel do programa Nova Indústria Brasil (NIB) de promover o interesse nacional no projeto de reindustrialização verde do país?

AS: O Novo Indústria Brasil, até o momento, é um plano no papel. É difícil analisar sem observar o impacto real por meio de dados, e o programa ainda não mostrou a que veio. Mas uma coisa que é importante ter em mente quando se fala em industrialização verde é: quem paga o preço? 

No movimento sindical, nós dizemos brincando que “beleza, álcool é um combustível mais limpo do que gasolina, mas eu prefiro trabalhar na Petrobras a trabalhar numa indústria de álcool”. A indústria verde não pode ser viabilizada economicamente pela redução do custo da força de trabalho. E o que nós temos observado é, justamente, que os setores supostamente mais sustentáveis da indústria hoje são os que têm os empregos mais precários. Se o biodiesel tem um custo de produção maior que o diesel, como se faz para que a alternativa verde chegue na bomba com o mesmo preço? Precarizando a força de trabalho da cadeia produtiva do biodiesel. Aí, não dá!

Essa contradição não existe só no Brasil, mas no mundo todo: as indústrias sujas, as mais antigas, são as que oferecem melhores condições de trabalho, inclusive do ponto de vista da saúde do trabalhador. É só você observar as condições de trabalho de uma usina de cana-de-açúcar ou da indústria de reciclagem de alumínio com catadores de latinha. Alguém pode dizer que o catador não faz parte da indústria de reciclagem, mas fato é que ela só existe no Brasil por causa dos catadores. O Brasil é recordista em reciclagem de alumínio não porque tem um grande projeto logístico de retorno, mas porque tem um monte de gente miserável que precisa catar latinha para sobreviver e que, com isso, fomenta uma cadeia produtiva que é extremamente lucrativa. 

Os carros elétricos são outro exemplo: pela própria tecnologia empregada, o setor gera muito menos emprego do que a indústria de carro a combustão. É uma engenharia muito mais simples: o veículo elétrico tem carroceria, bateria e motor, enquanto o carro a combustão tem óleo, correia, filtro, cabeçote, pistão, biela, enfim: várias outras fábricas são necessárias para fornecer produtos e peças para essa indústria.

A crítica do movimento sindical às cadeias de energia renovável segue a mesma linha. Hoje, a Bahia é o estado que mais produz energia limpa no Brasil e, basicamente, “exporta vento” para as regiões Sul e Sudeste sem nenhuma contrapartida para as comunidades onde as usinas eólicas—que têm um impacto social e ambiental enorme—ou os painéis solares estão montados. Ao mesmo tempo, as partes da cadeia produtiva que geram mais empregos, como fabricação de turbinas, placas fotovoltaicas e peças de manutenção, não estão aqui. Nós ficamos com a pior parte de toda a cadeia: a de maior impacto e menor retorno. É uma reprodução, entre as regiões do Brasil, da mesma dinâmica global que se observa entre países do centro e da periferia do capitalismo. O papel do Nordeste da industrialização brasileira será reduzido a gerar energia e crédito de carbono para ser consumido no Sul e no Sudeste? O Nordeste é a região do Brasil que mais produz energia solar do Brasil, mas não tem uma fábrica de placa fotovoltaica. 

Nesse mesmo sentido, eu entendo que a NIB precisa incluir uma discussão geopolítica acerca dos objetivos de industrialização verde do Brasil. Nós vamos custear a transição energética dos países que historicamente mais poluíram? O nosso papel será gerar a energia limpa e o crédito de carbono para que os países do Norte global consumam? É, de novo, a ponta mais fraca custeando a transição energética. Até agora, parece que as partes de menor valor agregado, menor complexidade e menor geração de emprego das cadeias produtivas verdes são as que ficam no Brasil ou em outros países periféricos. O papel na divisão internacional do trabalho que sempre coube aos países periféricos se renova: os trabalhos mais precários ficam aqui e os mais tecnológicos e bem remunerados ficam no centro do capitalismo. A NIB precisa dialogar com esse interesse chinês de entrar no Brasil, por exemplo, para exigir contrapartidas ao subsídio estatal que revertam esse papel subordinado na divisão internacional do trabalho. 

Obviamente, somos a favor do fomento à indústria verde, mas defendemos que ele deve vir com financiamento público. O Estado, e não o trabalhador, deve custear a transição.  Quando a viabilidade econômica do biodiesel vem da precarização da força de trabalho, o Estado está fazendo o trabalhador bancar a transição energética. Defendemos, ao contrário, uma transição energética verdadeiramente justa.

MS: Como você sintetiza, então, a demanda do movimento sindical para a reindustrialização verde do Brasil?

AS: A demanda do movimento sindical para a reindustrialização verde é que ela não perca de vista que o trabalhador é parte fundamental desse processo. A quantidade, a qualidade, a remuneração e as demais condições desses empregos gerados na industrialização verde precisam ser iguais ou superiores ao que se observou nos processos de industrialização anteriores. Não podemos, em hipótese alguma, seguir utilizando a precarização do trabalho como mecanismo de viabilização econômica da indústria verde. A transição energética precisa acontecer, o planeta não pode esperar, mas precisa acontecer tendo em vista que o trabalhador também é parte do meio ambiente. Se sacrificarmos os trabalhadores, faremos a transição para salvar quem? 

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