Mais do que uma definição rigorosa de governança global, a “ordem baseada em regras” é uma comunidade confessional que comunga de fervorosa fé nas boas intenções da influência global do poder econômico e político dos Estados Unidos. Essa não é, no entanto, a perspectiva mais popular. A história mais famosa—de acordo com figuras como Paul Krugman, para citar um exemplo recente—é que, após a Segunda Guerra Mundial, a Pax Americana “decidiu não manipular o sistema a seu favor” e, em vez disso, cultivou um modelo de governança hegemônica assentado na decência, na benevolência e na moderação.
A ascensão de Donald Trump à Casa Branca através dos pantanosos terrenos dos mega negócios imobiliários e dos reality shows demonstra que ele próprio nunca perdeu muito tempo com esses valores, nem com as armadilhas internacionalistas típicas dos membros mais alardeados da tal “ordem”. Agora, a singularidade dessa trajetória pessoal está começando a bater mais forte.
Desde 17 de janeiro, as principais instituições de cooperação internacional, tanto domésticas quanto multilaterais, têm sido alvo de uma enxurrada de decretos presidenciais, e a expectativa é de que venham ainda mais. Essas ações certamente têm algo de perverso e talvez envolvam um tanto de loucura. Mas elas também encarnam uma crença no poder regenerador e na capacidade tecnológica das empresas estadunienses em tornar a América great again—e uma determinação em garantir que esse projeto não seja obstruído por forças oposicionistas no país ou no exterior.
As agressivas medidas tarifárias anunciadas em 2 de abril, data rotulada por Trump, sem nenhuma ironia, como o “Dia da Libertação”, foram consideradas um ataque direto às estruturas da governança global. Economistas não tardaram em ridicularizar a aritmética e a lógica por trás da ideia de que as “tarifas recíprocas” trariam de volta aos Estados Unidos os empregos na área de manufatura perdidos nos últimos anos, mapeando os potenciais danos aos mercados, empresas e famílias que as medidas poderiam causar. Muito disso é senso comum, mas o fascínio tecnocrático da resposta pode acabar colocando o carro na frente dos bois: o que está em jogo não é um conjunto de políticas bem formuladas para redirecionar ganhos comerciais, mas um projeto político destinado a reestruturar o poder dos EUA.
Em um artigo recente no Financial Times, Gillian Tett retoma Albert Hirschman para relembrar como a política comercial historicamente andou de mãos dadas com a coerção econômica e a manutenção do poder nacional. E se há uma coisa que Trump entende é a eficácia do bullying para alcançar seus próprios objetivos.
As investidas de Trump se dirigiram a todos aqueles que, teoricamente, “desfalcaram” os Estados Unidos—dos antigos aliados da Europa Ocidental, passando por alguns dos países mais pobres do mundo, aos pinguins que habitam as inóspitas Ilhas Heard e McDonald—e a seus antecessores no Salão Oval que, afirma, permitiram que isso acontecesse. Ainda assim, não há dúvida de que a China é o principal alvo tanto do ataque ao sistema de comércio internacional quanto da disposição do presidente para usar a ameaça de novas tarifas para convencer outros países a se unirem em uma aliança contra o país asiático. O anúncio da pausa de noventa dias nas tarifas, com exceção daquelas direcionadas à China, feito apenas uma semana após o Dia da Libertação, é sinal de que o conflito está longe de terminar.
A indisciplinada coalizão de interesses comerciais por trás da gestão pode enfrentar dificuldades para sobreviver ao turbulento ambiente de incertezas produzido até agora—sem falar nos desafios que terá para cumprir as promessas de campanha feitas às famílias trabalhadoras do país. Fora do campo doméstico, parece ainda mais improvável que a China seja realmente intimidada a se submeter economicamente aos EUA. Se há uma certeza, no entanto, é a de que o ambiente econômico global ficará mais desafiador, especialmente para países do mundo em desenvolvimento. Mais cedo ou mais tarde, países pobres e altamente endividados sofrerão, mesmo com a possível influência compensatória de um dólar enfraquecido.
A eclosão de um ambiente econômico internacional mais hostil, no entanto, antecede Trump: começa com a crise financeira global, se não antes. Além disso, a disposição de usar sua dominância econômica como arma tem sido característica da posição hegemônica dos EUA há mais tempo ainda, embora com eficácia irregular e talvez até decrescente em um mundo com polos de influência concorrentes. Há anos que a força da cooperação internacional e a confiança nos acordos multilaterais vêm sendo minadas por uma combinação erosiva entre coerção econômica e relações transnacionais assimétricas—recentemente disfarçadas de acordos de livre comércio e parcerias econômicas entre países do Norte e do Sul global.
Normalidade?
Nesse cenário, é preocupante o apelo dos defensores da ordem internacional existente por um “retorno à normalidade” e, em especial, para que grandes empresários contribuam para reverter o ataque de Trump ao “capitalismo baseado em regras”. Até o momento, esse apelo caiu em ouvidos surdos. Mas a reação em si é ilustrativa do quanto a “ordem” se afastou dos princípios fundadores do sistema multilateral no pós-guerra.
Para aqueles que se reuniram em Bretton Woods em 1944, a instabilidade financeira, o contágio econômico e a violência política do período entreguerras eram motivos de profunda preocupação com as ambições descontroladas do capital privado e o poder de autocorreção do livre mercado. Em vez disso, entendiam que a construção de um mundo próspero e pacífico só seria possível mediante políticas públicas ativas, um forte poder regulatório, uma maior cooperação e a rejeição de práticas de “bullying econômico”. Dedicadas instituições multilaterais foram criadas com essa finalidade. Nas palavras de Jamie Martin, um novo modelo intervencionista de organização do capitalismo, baseado no New Deal, deveria ser “expandido para o mundo todo”. E, como Eric Helleiner demonstrou, esse projeto foi concebido com o apoio fundamental—ainda que amplamente esquecido nos dias de hoje—dos países do Sul global.
O sistema homônimo que se desenvolveu a partir dos Acordos de Bretton Woods nunca correspondeu aos seus ideais originais. O poder hegemônico utilizou as instituições ali criadas tanto unilateralmente, para apoiar os interesses estadunidenses, quanto, quando necessário, para intimidar membros refratários a cumprir as regras. A rejeição pelo Congresso dos EUA da Carta de Havana para uma Organização Internacional do Comércio fez com que as preocupações de países em desenvolvimento sobre os vieses do novo sistema e as assimetrias na divisão internacional do trabalho do pós-guerra fossem amplamente ignoradas. Para os países mais avançados, no entanto, o sistema proporcionou algum grau de estabilidade econômica e espaço político suficiente para permitir uma recuperação das disrupções forçadas pela guerra, taxas de crescimento econômico sem precedentes, números de empregos consistentes e ganhos tangíveis de bem-estar para a população.
A partir do final da década de 1960, o sistema de Bretton Woods enfrentou crescentes tensões macroeconômicas e distributivas provocadas por uma combinação entre desequilíbrios comerciais, pressões fiscais e descontentamentos no chão de fábrica. Em resposta, Richard Nixon tomou a decisão unilateral, em 1971, de desvincular o dólar do sistema de câmbio fixo. Isso deu início a um processo de fragmentação que assistiu à expansão e prosperidade de bancos internacionais que reciclavam “petrodólares” e culminou em uma “desintegração controlada” do regime do pós-guerra. Esse processo seguiu até o fim daquela década sob o olhar atento do Fed, que aumentou as taxas de juros e permitiu o fortalecimento do dólar, e com forte apoio político de Ronald Reagan.
De forma semelhante ao momento atual, a decisão do Fed provocou uma considerável turbulência no mercado e um clima de descontentamento no mundo dos negócios. Até o fim de 1982, a economia entrou e saiu de sucessivas recessões. Ainda assim, um ataque combinado à organização dos trabalhadores e à solidariedade entre países em desenvolvimento ajudou a acabar com as pressões inflacionárias remanescentes, restaurar as taxas de lucro e abrir caminho para empresas e financistas recém-liberados para buscar oportunidades de investimento do redor do mundo.
No final da década de 1980, os resultados já eram visíveis. O regime econômico internacional, em total sintonia com os desejos de livre circulação do capital e apoiado por ferramentas políticas como medidas de austeridade, não demonstrava qualquer mal-estar em relação ao aumento crítico da desigualdade, da insegurança e do endividamento que provocou. As instituições multilaterais diligentemente apoiaram o que o então diretor do FMI descreveu como um “sistema aberto e liberalizado de fluxos de capital”. Por meio da adoção de programas de empréstimos condicionados a reformas políticas, essas instituições priorizaram frontalmente a abertura do Bloco Oriental e do Sul global aos fluxos de capital privado. Ainda que a tentativa do Fundo de reformar os artigos de seu estatuto que consagravam os controles de capital tenha fracassado em razão da crise financeira asiática, já na década seguinte os EUA lograram inserir exigências dessa natureza em tratados de comércio e investimento.
A promessa de que a liberalização do capital inauguraria uma era de investimento produtivo inclusivo e estabiilidade financeira, no entanto, não foi cumprida. Pelo contrário, começando com a crise de poupanças e empréstimos de meados da década de 1980, passando pelas crises do México, do Leste Asiático e da Rússia e chegando até o choque da pandemia de Covid e suas consequências, a turbulência financeira tem sido característica permanente do mundo hiperglobalizado.
Crise e reforma
O estouro da bolha imobiliária dos EUA em 2008 e suas consequências globais provocaram apelos pela reconstrução de amortecedores contra a desordem dos fluxos de capital no sistema econômico internacional e pelo fortalecimento da cooperação internacional. Um “novo Bretton Woods” foi defendido pelo presidente francês Nicolas Sarkozy e pelo primeiro-ministro britânico Gordon Brown, que esperavam que um G20 renovado pudesse cumprir a promessa. Não foi o que aconteceu. Em vez disso, uma vez que os bancos que estavam no coração da crise foram salvos, o sistema vigente foi normalizado e, num mundo de dinheiro fácil, uma nova coalizão de agitadores financeiros—hedge funds, private equity e gestoras de ativos—levou ampla vantagem.
Com seu espaço fiscal reduzido pela austeridade e seduzidos pelos portfólios em constante expansão desses novos agentes financeiros, governos de países ricos e pobres firmaram uma série de acordos de parceria para o fornecimento de bens e serviços públicos. De forma ainda mais ambiciosa, na COP26 de 2021 em Glasgow, uma aliança financeira liderada por Michael Bloomberg e Mark Carney sugeriu que essas “parcerias público-privadas” poderiam destravar mais de US$ 130 trilhões para proteger o planeta dos efeitos da crise climática. O impacto do anúncio e o tamanho da cifra inauguraram um novo consenso sobre os mecanismos ideais para o cumprimento das metas de desenvolvimento sustentável.
“Lamentável” foi a palavra que o economista-chefe do Banco Mundial escolheu para descrever essa década de mobilização de capital privado como prioridade. Nem o valor absoluto e nem o custo-benefício dessa mobilizacão subscreveram qualquer mudança significativa. Agora, insistir nessa estratégia fará pouco para combater a agenda de Trump, fazer os investimentos necessários para manter a temperatura global em um patamar seguro ou lidar com o fardo sufocante da dívida que um número crescente de países em desenvolvimento enfrenta. O mundo tem pouco a ganhar com mais do mesmo. E, como sugerido por Daniela Gabor, é bastante provável que a nova administração em Washington proponha uma variedade ainda mais nefasta desse modelo de parcerias para o futuro.
Como evitar isso? Os apelos dos defensores da arquitetura liberal da governança global contra o ataque populista da direita falham por dois motivos. O primeiro é que são incapazes de explicar como, ao longo das últimas três décadas, seus próprios programas alimentaram o crescimento de forças nacionalistas. O segundo é que ignoram sua própria incapacidade de responder às múltiplas crises que o mundo enfrenta hoje com medidas e recursos coordenados, eficientes e tempestivos.
Multilateralismo renovado
Para atingir as metas climáticas e promover melhorias significativas na vida da maior parte da população global, é necessário que a agenda de reformas seja, como é o desafio que se propõe a enfrentar, multidimensional—e, além disso, ancorada em uma sólida base pública de financiamento, investimento, serviços e políticas. Assim como ocorreu após a crise financeira de 2008, o ímpeto reformista provocado pelo choque da pandemia perdeu força ao longo do tempo—e, pelo menos nos EUA, foi revertido. Mesmo assim, é possível observar alguns movimentos positivos. Em 2024, sob a presidência brasileira, o G20 destacou a rede de instituições financeiras de desenvolvimento (DFIs) como ator fundamental para liderar a luta contra a pobreza e a crise climática. A cúpula do Rio de Janeiro defendeu o potencial das DFIs para impulsionar o investimento público, fortalecer o planejamento da transição energética e coordenar os esforços de diferentes países para atingir metas climáticas e de desenvolvimento. Embora tenha recebido menos atenção, um relatório independente do Grupo de Especialistas da Força Tarefa sobre clima do G20, chamado “Um planeta verde e justo”, traçou os caminhos a serem seguidos pelo setor público para promover a industrialização verde em nível nacional e internacional. Em essência, esses movimentos exigem um retorno aos princípios fundamentais do multilateralismo.
Como parte dessa agenda, instituições financeiras multilaterais devem se concentrar em estreitar parcerias com instituições públicas semelhantes que estejam alinhadas com prioridades climáticas e de desenvolvimento. Uma década de conversa sobre blended finance deve dar lugar a um novo programa de colaboração institucional para fomentar um empurrão no investimento público. Essa abordagem é mais bem posicionada para mobilizar um tipo de capital privado paciente e inovador e reflete uma disposição de compartilhar riscos e recompensas dos investimentos em um ambiente político favorável, mas responsável.
As DFIs têm mais de US$ 23 trilhões em ativos. A inclusão de bancos centrais, fundos soberanos e fundos públicos de pensões amplia ainda mais a rede de financiamento público. Até o momento, no entando, falta uma estrutura institucional que possibilite a cooperação entre esses órgãos públicos para alavancar seus ativos. A possibilidade de fortalecer a cooperação entre bancos multilaterais de desenvolvimento (MDBs) e bancos nacionais de desenvolvimento (NDBs) é particularmente importante. Antes de mais nada, a redução do custo de capital é fundamental para que os países em desenvolvimento tomadores de empréstimos possam fazer os investimentos necessários para transformar suas economias de maneira sustentável.
As condições favoráveis que os NDBs têm para obter financiamento dos MDBs—o que pode ajudar a reduzir riscos que os NDBs não conseguem gerenciar sozinhos, em especial o risco cambial—são essenciais para a criação de genuínas parcerias “publico-públicas”. Além disso, as chances de que essas instituições afetem positivamente a transformação necessária nas áreas mais relevantes seriam fortalecidas pelo alinhamento estreito com as prioridades dos governos e o apoio de um ambiente político predisposto a promover a inovação e possibilitar a implementação de projetos bem-sucedidos.
Mais de cinco décadas depois que os países em desenvolvimento buscaram construir uma Nova Ordem Econômica Internacional por meio do sistema das Nações Unidas e setenta anos depois que a Conferência de Bandung lançou o movimento não alinhado, um grupo de instituições lideradas pelo Sul global está posicionado para dar um novo salto. A criação do Novo Banco de Desenvolvimento (BRICS) teve como base um modelo de parceria com bancos nacionais de desenvolvimento para projetos verdes. Os BRICS reunirão todos os seus bancos nacionais de desenvolvimento no final do ano. O Banco Islâmico de Desenvolvimento e o Banco Interamericano de Desenvolvimento fizeram esforços semelhantes. Também o fez o Banco Europeu de Investimento, sugerindo que um espírito inovador ainda pode ser encontrado no Norte global.
Esses esforços são, obviamente, apenas uma parte de uma agenda mais ampla para reconstruir o multilateralismo sobre bases públicas sólidas. A reconfiguração necessária não sairá da diplomacia de bastidores ou das grandes cúpulas. Assim como nas décadas de 1930 e 1940, novas coalizões políticas em âmbito global, regional e nacional são essenciais para apoiar uma reforma sistêmica e resistir aos poderosos interesses que sustentam alianças políticas em torno do apoio à livre circulação de capital, às grandes corporações e à economia do carbono. O fato de que, diferentemente da década de 1940, essas novas coalizões precisarão lidar com a agenda abertamente hostil de um hegemon perverso é o desafio político da nossa era.
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