A construção de uma ordem pós-neoliberal está em curso. Dado que não há horizonte pós-capitalista em discussão, qualquer projeto progressista comprometido com tendências concretas de desenvolvimento histórico tem que partir do fato de que o pós-neoliberalismo não surgirá da mesma maneira como surgiram, a partir do liberalismo, o New Deal estadunidense, o Welfare State europeu ou o nacional-desenvolvimentismo latino-americano—cujos acordos foram construídos justamente sobre a “ameaça comunista”. Cem anos atrás, eram três as possibilidades objetivas de desenvolvimento: capitalismo de tipo New Deal, capitalismo fascista e comunismo. Como a China não é comparável ao que foi a União Soviética—não é um modelo “exportável”—, o que sobra para os países ainda democráticos de hoje é uma escolha entre o pós-neoliberalismo de tipo trumpista e um pós-neoliberalismo de tipo progressista que ainda não encontrou um modelo para chamar de seu.
A nova eleição de Donald Trump enterrou o projeto progressista de “transição dentro da ordem”. A vitória do republicano deixou claro que os pontos fora da curva foram eleições como a de Biden ou Lula da Silva, e não o êxito de Bolsonaro e do próprio Trump. O pós-neoliberalismo em sua versão trumpista tende a ser dominante. A chance do campo progressista está em construir um real programa oposicionista alternativo em vista dessa tendência. Como defendi anteriormente, “alcançar novos padrões de governança global pode significar a diferença entre a guerra e a paz”—e, para muitos países do sul global, “certo alívio de dívidas e algum financiamento para a obtenção das tecnologias necessárias para uma transição energética efetiva”. Evitar guerras generalizadas e conseguir realizar algo de uma transição energética é a tarefa premente das próximas duas décadas, pelo menos.
Assim como ocorreu na ascensão do liberalismo e do neoliberalismo, a solidificação de uma ordem pós-neoliberal não acontecerá de forma homogênea ao redor do mundo. Identificar os diferentes padrões de dependência de países do Sul global e suas possíveis tendências de desenvolvimento exige encontrar bons pontos de apoio para estudos comparados entre equipes de diferentes países e regiões.1 Proponho como um tal ponto de apoio a ideia de “armadilha neoextrativista” e apresento aqui, em grandes linhas e de maneira lacunar e tentativa, meu entendimento de como se armou a armadilha neoextrativista no Brasil. Como definição preliminar, sugiro entender por armadilha neoextrativista o conjunto de obstáculos estruturais que bloqueiam o caminho para uma transição ecológica orientada pelo combate às desigualdades. O que significa igualmente: o conjunto de obstáculos estruturais que bloqueiam uma interdependência por associação livre e autônoma entre países e regiões.
Propor a ideia geral de “armadilha neoextrativista” como ponto de partida e foco de pesquisa significa pôr em questão formulações que utilizaram o termo “armadilha” com outros objetivos. Penso aqui em definições como “armadilha da renda média” ou “armadilha do baixo crescimento”. Superar usos como esses da ideia de “armadilha” significa, antes de mais nada, restabelecer a centralidade da dependência e da emergência climática, quadro em que essas formulações parecem limitadas, para dizer o menos. Busca-se, em suma, a conexão entre neoliberalismo e neoextrativismo, tanto em relação aos últimos quarenta anos da história brasileira quanto às atuais tendências de reorganização pós-neoliberal do capitalismo que se desenham globalmente, pensando-as desde sua periferia. Assim como o neoliberalismo, também o neoextrativismo não pode ser pensado unicamente em termos econômicos, mesmo que sob a ideia abrangente de “economização” ou outras similares. A noção de armadilha neoextrativista tem caráter verdadeiramente multidimensional: ambiental, econômico, cultural, político, social, geopolítico, tecnológico. O que deixa claro que a noção mesma de armadilha neoextrativista tem de ser entendida por meio de uma proposta de pesquisa de caráter interdisciplinar e colaborativo.
Esse ponto de partida se apoia, por sua vez, em dois elementos de diagnóstico fundamentais. Em primeiro lugar, a emergência ambiental tem uma característica inédita quando se pensa em padrões de dependência: deixar países para trás na transição ecológica significa comprometer a transição a nível planetário. Não que não possa acontecer, evidentemente, já que não faltam indícios de que esse caminho autodestrutivo esteja sendo tomado. Mas alcançar uma transição ecológica bem-sucedida—na medida em que o adjetivo couber— não deixará de produzir—nas circunstâncias atuais, ao menos—novos padrões de dependência, mesmo que agora moldados e limitados pela emergência ambiental. E divisar tendências de desenvolvimento dos novos padrões de dependência pós-neoliberal atualmente em construção exige compreender o legado da dependência neoliberal em todas as suas dimensões.
O segundo elemento de diagnóstico fundamental está em que o horizonte de ação atual se caracteriza por uma marcada divisão política que, nos países ainda democráticos, encontra, de um lado, uma direita sem medo de se aliar à extrema direita e, de outro, um novo progressismo. Essa autêntica divisão—não se trata de mera “polarização”—é parte integrante da própria “armadilha”. É uma divisão que acirra ao mesmo tempo em que rebaixa o horizonte político, criando uma verdadeira camisa de força a restringir o campo de ação da parte da esquerda que quer evitar a todo custo a vitória do autoritarismo.
Quando se trata de agir e de pensar na situação de emergência em que nos encontramos, não temos o direito de ignorar essas limitações, sob pena de militarizar conflitos, perder a democracia que existe e, ao final, inviabilizar qualquer transição ecológica. Ao mesmo tempo, não podemos permitir que o horizonte rebaixado da política atual rebaixe ao mesmo nível nosso horizonte teórico, que deve se projetar para além da guerra de trincheiras do presente.
Nos últimos quarenta anos, o Brasil experimentou uma mudança estrutural na correlação das forças sociais, econômicas e culturais. A globalização do princípio das vantagens comparativas reforçou a primarização e produziu a desindustrialização de diversas economias do Sul global, em especial as da América Latina, transformando os países da região em dependentes de commodities, nos termos da UNCTAD.2 No caso brasileiro, a agropecuária e a extração mineral ocuparam todo o espaço perdido pela indústria de transformação—ao ponto de alguns autores considerarem que a manufatura está “à beira da extinção”—seja em termos de participação no PIB, seja de produtividade e exportações.3
Em 2018, depois de mais de trinta anos da democracia menos limitada que o país já teve, o Brasil viu o retorno de uma extrema direita desinibida que, aos trancos e barrancos, liderou uma nova coalizão social, política e econômica que chegou ao poder presidencial com Jair Bolsonaro. Desde então, a direita sem medo de se aliar à extrema direita tomou para si a posição de representante dessa nova coalizão formada e consolidada ao longo de quarenta anos de neoliberalismo.4 Esse é o terreno sobre o qual se arma a armadilha neoextrativista no país hoje—e sobre o qual se disputa seu futuro.
Redemocratização e neoliberalismo no Brasil
A marca característica do neoliberalismo brasileiro está em que sua ascensão coincide com o processo de redemocratização do país, em meados da década de 1980, após 21 anos de ditadura militar. Difere, portanto, de casos como o do Reino Unido, com a eleição de Margaret Thatcher, em 1979, ou dos Estados Unidos, em que o marcador histórico costuma ser associado à eleição de Ronald Reagan, em 1980. O caso brasileiro difere, igualmente, de outro lado, da implantação do neoliberalismo no Chile, realizada por uma ditadura militar em um país periférico. Essa marca característica do processo brasileiro de implementação da regulação neoliberal não é exclusiva. Em outros países, como Portugal, Argentina e Espanha, neoliberalismo e redemocratização também coincidiram. A questão é compreender, portanto, a especificidade do caso brasileiro dentro do grupo de países que guardam essa marca histórica característica.
Em 1985, quando o poder presidencial passou a uma coalizão civil de oposição à ditadura militar brasileira, quem liderou a transição para a democracia foi o progressismo: uma aliança de setores originários da esquerda com setores da direita democrática—além de trânsfugas do autoritarismo que renderam-se à liderança progressista.5 Juntamente com forças de uma nova esquerda—da qual o Partido dos Trabalhadores (PT), fundado em 1980, pretendia ser o grande representante—, elaborou-se a Constituição de 1988, documento por excelência da liderança progressista. Para além do estabelecimento de instituições democráticas, a aliança progressista que liderou a transição estabeleceu o combate a todos os tipos de desigualdade como prioridade principal—assim deve ser entendida a criação, em 1990, de uma instituição tão extraordinária quanto o Sistema Único de Saúde (SUS), que teve por modelo o NHS britânico.
Diante da hegemonia do progressismo no processo constituinte, o que restou à direita herdeira da ditadura militar foi construir uma trincheira defensiva. Não se trata de dizer que essa tática defensiva não tenha conseguido vitórias importantes, a começar pela não responsabilização dos agentes da ditadura por seus crimes. Trata-se apenas de enfatizar que, nesse primeiro momento da redemocratização, a base social e política da ditadura em declínio não teve força para controlar e dirigir o processo.
O legado da ditadura militar foi uma profunda crise econômica marcada por hiperinflação e por uma dívida externa impagável. Daí a grande turbulência política, social e econômica de um processo de adaptação à ordem neoliberal que se deu simultaneamente a uma transição para a democracia. O emblema dessa dificuldade é o próprio texto da Constituição de 1988, marcado por um nacional-desenvolvimentismo que prevaleceu por meio século e que só posteriormente—e aos poucos—foi adaptado à modernização própria da era neoliberal.
Ocorre que o arranjo político liderado pelo progressismo foi guiado por um princípio de adição, não de confrontação. Não apenas por causa da orientação sistemática de abrir mão de responsabilizar agentes da ditadura por seus crimes, mas especialmente porque o combate às desigualdades lançou mão de outros recursos que não uma mudança estrutural da tributação da renda e do patrimônio, por exemplo. Foi um arranjo que conseguiu fazer com que estratos pobres, marginalizados e discriminados fossem minimamente favorecidos, mas segundo a diretriz de que os demais estratos mantivessem as posições dominantes conquistadas e preservadas durante o período ditatorial.
A contrapartida de governo do arranjo acomodatício da redemocratização foi uma configuração peculiar do sistema político. De 1994—nas eleições marcadas pelo lançamento do Plano Real de estabilização político-econômica—até, pelo menos, a reeleição de Dilma Rousseff (PT, 2011-2016), em 2014, a grande maioria dos partidos formava uma massa relativamente indistinta de máquinas políticas: encastelados no Estado, nele se reproduziam, funcionando como empresas de venda de apoio parlamentar. Com raras exceções, todos os partidos sempre compuseram o governo, qualquer que fosse o governo e qualquer que fosse a candidatura que apoiaram na eleição presidencial. O que se teve nesse período foi um modelo de gestão política baseado na formação de supercoalizões, limitando a oposição nominal a uma franja parlamentar. A isso se deu o nome de presidencialismo de coalizão.6 A administração de supercoalizões ocorria em condições de crescente fragmentação partidária7 que tendia não apenas a ser ineficiente, mas também bloqueava a implementação do programa de governo da coalizão vencedora da eleição presidencial. Ao mesmo tempo, servia ao arranjo político acomodatício que manteve o combate às desigualdades e o próprio aprofundamento da democracia em ritmo lento e controlado.
No ajuste que controlou a inflação realizado pelo Plano Real, iniciado ainda em 1993, a saída para essa limitação de base da estratégia de não confrontação foi um aumento da tributação. Em 2002—ao final de oito anos de governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2002)—, a carga tributária subiu de um patamar de 25% para cerca de 31,5% do PIB. O número cresceu mais dois pontos percentuais até 2006, já sob o governo Lula (PT, 2003-2010), quando o sistema político estabeleceu que seria esse o limite do aumento. Com pequenas variações, essa é a carga tributária que prevalece até hoje.8
Fechado o caminho do aumento da tributação, os governos do PT, especialmente entre 2003 e 2013, encontraram no boom de commodities (2003-2011) um novo meio de enfrentar desigualdades sem desafiar o arranjo acomodatício da redemocratização.9 Apesar da crise de 2008, a estratégia seguiu operante até seu completo esgotamento em meados da década de 2010. Uma severa recessão, iniciada já no final de 2014, mas cujos efeitos só foram efetivamente sentidos a partir de 2015, se instalou e durou por dois longos anos, até o final de 2016. O PIB brasileiro recuou 7,2% no período, o PIB per capita, 9,1%, superando os números da crise de 1930-1931 no país. Simultaneamente, de 2015 até o início de 2019, uma operação judicial “anticorrupção”—inspirada na Operação Mãos Limpas italiana, de inícios dos anos 1990—, a chamada Operação Lava Jato, revelou e corroeu os ilícitos fundamentos do sistema político das últimas décadas, estabelecendo um estado de pânico permanente na política oficial, que entrou em modo de autodefesa máxima. A partir da reeleição de Dilma Rousseff em 2014 e passando por seu impeachment em 2016, seguiram-se dez anos de intensa crise política e econômica.10
Atualmente, o fim do arranjo acomodatício da redemocratização vem refletido no orçamento público do país: 95% do total estão comprometidos, de partida, com despesas obrigatórias. Um governo, seja qual for, dispõe apenas de 5% do orçamento para realizar o programa que o elegeu. A partir de 2015, o Congresso Nacional foi progressivamente abocanhando parte substantiva desses 5% de uso discricionário do governo, chegando hoje a 20% desse total (ou 1% de todo o orçamento federal). Trata-se de um outlier em qualquer comparação internacional. A aplicação dos recursos é altamente intransparente e ineficiente, além de fortalecer a reprodução da mesma correlação de forças dominante no parlamento desde 2018. Essa mudança afetou profundamente o padrão anterior de governo, reduzindo a dominância do poder executivo.11 Como reflexo disso, o investimento público no Brasil atingiu mínimos históricos na última década.

Vale notar que a possibilidade de contornar o arranjo por meio do endividamento das famílias já foi utilizada, tendo a configuração política da redemocratização atingido também sob esse aspecto seu limite.12 Cabe sublinhar, ainda, os efeitos da internalização da dívida pública a partir de meados dos anos 2000. Nesse momento, o Brasil não só praticamente eliminou sua dívida denominada em dólares como acumulou reservas da ordem de US$ 330 bilhões—que protegem o país de crises cambiais como aquelas dos anos 1990. Ao mesmo tempo, em 2024, o serviço da dívida correspondeu a cerca de 16% de todos os gastos públicos. A internalização da dívida teve como contrapartida política, portanto, um empoderamento ainda maior do mercado financeiro. Em um contexto de esgotamento das possibilidades de contornar o arranjo acomodatício da redemocratização, grandes detentores de títulos públicos são também atores decisivos para o congelamento de uma correlação de forças em que uma coalizão redistributivista se vê politicamente dominada por uma coalizão antiredistributivista.
Isso significa que, dentro da atual correlação de forças, não há espaço fiscal para financiar uma transição ecológica no país, mesmo que sob a forma limitada de uma transição meramente energética.13 Igualmente, não há perspectiva de que haverá o financiamento externo necessário para tanto.14 E isso apesar do fato de ser difícil imaginar um país melhor posicionado em termos estratégicos para realizar essa transição do que o Brasil: mais de 80% da energia brasileira vem de fontes renováveis, o país possui a segunda maior área de florestas do mundo (na região amazônica, em especial), tem as maiores reservas renováveis de água doce do planeta, dispõe de enorme potencial em termos de geração de energia solar e eólica (que já representam quase um quarto de toda a energia elétrica produzida nacionalmente), além de outros recursos que podem ser mobilizados para a transição.15
Fim do arranjo acomodatício: neoextrativismo e disputas redistributivas
Independentemente do caráter ultrajante da concentração de renda, das desigualdades, das discriminações e da pobreza no país, a coalizão liderada pela direita sem medo estabeleceu como excessivo e inaceitável o limitado pacto acomodatício da redemocratização. Apesar dos efeitos redistributivos manifestamente restritos do arranjo da redemocratização, da violência das discriminações históricas e das desigualdades persistentes, o lema implícito dessa coalizão é: a redistribuição brasileira já foi longe demais.
É assim que a divisão política se dá—no Brasil, mas talvez não só no Brasil—entre uma coalizão redistributivista e uma coalizão antirredistributivista.16 Ou seja, não se trata apenas de considerar o fosso entre “projetos de mundo” incompatíveis em termos de valores. Também no Brasil, as chamadas guerras culturais e noções catch-all como “empreendedorismo” não são “guerras de valores”, mas autênticas guerras redistributivas. A disputa entre projetos de mundo é uma disputa em torno de quais desigualdades merecem ou não ser combatidas—e de que maneira.17
Ao mesmo tempo, ambas as coalizões partilham do neoextravismo legado pelo período neoliberal.18 A coalizão da direita sem medo se sente à vontade na posição neoextrativista. Nem por isso, entretanto, o retorno de Lula à presidência, no início de 2023, por decisivo que seja (e é), representa um abandono da posição neoextrativista por parte da coalizão do novo progressismo.19 Hoje, se decidir abandonar essa posição, o novo progressismo deixará de ser competitivo em eleições. E se as coalizões progressistas forem derrotadas, a coalizão opositora, liderada pela extrema-direita, não hesitará em pisar no acelerador do neoextrativismo, usando seus resultados imediatos para ganhos político-eleitorais e, eventualmente, para um fechamento do regime. No entanto, se o progressismo não abrir mão do neoextrativismo, a coalizão opositora liderada pela extrema-direita já terá vencido, pois seu programa econômico terá vencido.
O exemplo da exploração de petróleo é tanto mais emblemático desse estado de coisas brasileiro em razão de seu papel crescentemente relevante na economia do país.20 Em 2016, o Brasil se tornou pela primeira vez exportador líquido de petróleo e, em 2024, virou o principal produtor da América Latina. Em 2024, o petróleo e seus derivados chegaram à primeira posição do ranking em termos de valor exportado total. A Petrobras, companhia estatal e principal produtora, “está planejando um aumento tão rápido na produção de petróleo que pode se tornar a terceira maior produtora mundial até 2030”, sendo que “já extrai quase tanto petróleo bruto por ano quanto a ExxonMobil”.21
A contradição envolvida nesse projeto de expansão pode ser observada na disputa dentro do governo em torno da exploração de petróleo próximo à foz do Rio Amazonas. Em 2023, a Petrobras divulgou um estudo em que estima haver cerca de 5,6 bilhões de barris de petróleo no bloco da Margem Equatorial, no estado do Amapá. No entanto, o órgão regulador ambiental brasileiro, o Ibama, negou a licença para a companhia iniciar qualquer tipo de exploração. A Ministra do Meio Ambiente Marina Silva defendeu o parecer do Ibama e ressaltou que o ponto de vista técnico do órgão não deve sofrer interferências políticas. Por sua vez, outros setores do governo brasileiro, e mesmo Lula, defendem a exploração e se movimentam em direção a sua autorização.22
Como o que não falta em uma armadilha neoextrativista são contradições, a Petrobras é hoje, provavelmente, o único polo de produção e transferência de tecnologia de amplo alcance instalado no país.23 O complexo do petróleo no Brasil superou em muito, por exemplo, os impressionantes feitos da empresa estatal de produção de tecnologia agropecuária, a Embrapa, e sua magnitude impede comparações com a dinâmica e competitiva indústria aeronáutica brasileira, representada pela Embraer. É difícil imaginar uma articulação entre empresa e universidade que possa competir com aquela consolidada pela Petrobras para liderar uma transição (pelo menos) energética no país.
A constituição eleitoral competitiva da coalizão antirredistributivista no Brasil mostra que o problema vai muito além de simples manipulação, desinformação e violência. A vitória do neoliberalismo sobre as formas anteriores de regulação do capitalismo foi definitiva: não há retorno possível a modelos anteriores de sociedade. Muito disso se deve ao fato de que o neoliberalismo estabeleceu raízes sociais profundas,24 tornando ilusório o voluntarismo político de “voltar” a uma forma pregressa de regulação capitalista. Enquanto o campo da direita sem medo se sente à vontade com o neoextrativismo, o campo do novo progressismo perpetua esse modelo consciente de que se trata de uma contradição flagrante com seu próprio programa. É nessa disputa entre a coerência neoextrativista da direita sem medo e as contradições do novo progressismo que se jogará o futuro do país—um futuro que depende cada vez menos dele mesmo, como é próprio de um país dependente.
Esse ensaio retoma, em parte, desenvolvimentos presentes nos textos “A New Dependency Theory Moment” (The Ideas Letter, 18 de abril de 2024), “Why It Is So Hard for Latin America to Move Away from Neoliberalism and Neoextractivism: The Case of Brazil” (Carnegie Endowment for International Peace, 31 de julho de 2024) e “O Centrão sem medo e a encruzilhada do PT” (revista piauí, no. 204, setembro de 2023).
Ver a esse respeito meu texto “Condicionalidades periféricas”, publicado pela PW em 26 de setembro de 2024.
Segundo o critério da UNCTAD, 17 países latino-americanos estariam nessa categoria, o Brasil entre eles. No caso brasileiro, “the share of commodity exports increased from 44.3 per cent in 1998-2002 to 62.8 per cent in 2013-2017. While all commodity groups increased their share in total merchandise exports, agricultural exports grew the most, by 390 per cent and accounted for 42.8 per cent of the increase in export value during the period. And even though non-commodity exports grew by 160 per cent, their share in total exports fell, accounting for 29.1 per cent of the growth of exports” (Commodity-Dependence: A Twenty-Year Perspective, UNCTAD, 2019, p. 28). Uma análise retrospectiva que abrange todo o século XX e que chega até o momento atual em seus efeitos negativos pode ser encontrada em José Antonio Ocampo, “Commodity-led Development in Latin America” (in: Gilles Carbonnier; Humberto Campodónico; Sergio Tezanos Vásquez (orgs.), Alternative Pathways to Sustainable Development: Lessons From Latin America, Brill Nijhoff: Leiden/Boston, 2027. Trata-se aqui de mera indicação da tarefa muito mais ampla e fundamental de apresentar a transformação estrutural da economia brasileira no período neoliberal. Ressalte-se também que esta é apenas uma das muitas dimensões da posição do Brasil como país “em armadilha neoextrativista”, como procuro indicar ao longo deste texto.
A participação da indústria de transformação no PIB brasileiro chegou a ser de 35,8% em 1985, passou a 13,8% em 1998 e baixou para 11,3% em 2021, ao mesmo tempo em que sua participação nas exportações caiu de um patamar próximo a 80% em 1997 para outro em torno de 50%, esses pontos percentuais tendo sido tomados pela agropecuária (8,1 p.p.) e pela extração mineral (19,7 p.p.). (Claudio Considera e Juliana Trece, “À beira da extinção”, texto de discussão #6, IBRE/FGV, 7 de outubro de 2022). Essa é uma mera constatação e não uma proposta de “reindustrialização” para retornar a um momento anterior ou algo similar. Porque o problema de um país como o Brasil é antes a armadilha neoextrativista em que se encontra. Trata-se de uma armadilha política, econômica, social, cultural. Não se trata, portanto, de “reindustrialização”, sem mais, mas antes a de determinar quais políticas industriais serão necessárias e adequadas para buscar sair da armadilha neoextrativista. Sobre isso, ver o relatório de autoria de Adriana Mandacaru Guerra, Tim Sahay, Renato H. de Gaspi e Bentley Allan, “Nova política industrial para um novo mundo: aproveitando as oportunidades do Brasil na transição energética”, de fevereiro de 2025.
Uma tentativa de reconstrução do processo de formação dessa coalizão pode ser encontrada em Limites da Democracia. Neste livro, procuro mostrar também que uma importante base de mobilização e engajamento dessa coalizão está em uma organização não-institucionalizada que chamo de partido digital bolsonarista. A relação entre essa organização e partidos formais, institucionalizados, com todas as suas tensões e conflitos, é, na verdade, um dos pontos fortes da coalizão bolsonarista. Sobre a digitalização da política a partir de meados dos anos 2000, ver igualmente Limites da democracia.
Uma reconstrução acurada desses desenvolvimentos nos últimos 40 anos pode ser encontrada em Perry Anderson, Brazil Apart: 1964-2019, London: Verso, 2019.
Esse paradigma explicativo sempre considerou como irrelevantes os traços que apontei aqui como centrais: formação de supercoalizões parlamentares e de governo, e adesão ao governo de plantão seja qual for e seja qual for o candidato que o partido que adere tenha apoiado na eleição presidencial. Sobre minha proposta alternativa de caracterização desse modelo e outros pontos importantes desenvolvidos neste texto, ver Marcos Nobre, Imobilismo em movimento: da redemocratização ao governo Dilma, São Paulo: Companhia das Letras, 2013 e Limites da Democracia, obra citada.
Sobre a fragmentação partidária entre 1991 e 2019, ver Andréa Freitas e Glauco Peres da Silva, “Das manifestações de 2013 à eleição de 2018 no Brasil: Buscando uma abordagem institucional”, Novos Estudos Cebrap, v. 38, n. 1, jan.-abr. 2019.
Manoel Pires, “Carga tributária bruta: 1990-2023”, 13 de maio de 2024, Observatório de Política Fiscal, IBRE/FGV. Aprovada em etapas entre 2023 e 2024, uma Reforma Tributária de amplo alcance passará a ser implementada a partir de 2026, passando a valer integralmente a partir de 2033. Ainda é difícil dizer com precisão qual será a carga tributária que resultará dessa mudança de grande amplitude.
Para uma análise dos impactos do boom de commodities e de seu esgotamento no modelo econômico brasileiro, ver Laura Carvalho, Valsa Brasileira: do boom ao caos econômico, São Paulo: Todavia, 2018.
Em uma síntese genérica, mas útil e ilustrativa, da concentração de renda, da desigualdade e da pobreza nas décadas de 2000 e 2010: “a primeira década do século XXI fora a melhor já vivida pelo país em termos distributivos. Entre 2001 e 2011, a renda média das famílias cresceu mais de 30%, a desigualdade medida pelo coeficiente de Gini caiu mais de 10%, e as taxas de extrema pobreza e de pobreza recuaram, respectivamente 4 e 12 pontos percentuais” (Rogério J. Barbosa; Pedro H. G. Ferreira de Souza; Sergei S. D. Soares, “Desigualdade de renda no Brasil de 2012 a 2019”, Dados, 16 de julho de 2020). Esse processo se inverteu na segunda metade da década de 2010. Para que se tenha uma ideia desse recuo, segundo os números desse mesmo artigo, o coeficiente de Gini em 2019 (0,543) foi praticamente igual ao do ano de 2012 (0,541). Para fins comparativos, lembre-se que, em 2001, o coeficiente de Gini era de 0,593.
Raul Bonfim; Joyce Hellen Luz; Vitor Vasquez, “Mandatory Individual Amendments: a Change in the Pattern of Executive Dominance in the Brazilian Budgetary and Financial Cycle”, Brazilian Political Science Review, 17 (2), 2023.
Lena Lavinas, Eliane Araújo e Pedro Rubin, “Income transfers and household debt. The advancing collateralization of social policy in the midst of restructuring crises” (Revista de Economia Política, 44 (2), 2024), mostram que o endividamento das famílias relativamente ao rendimento praticamente triplicou no período de 2005 a 2020, passando de um patamar de 20% para outro próximo de 60%. Essa mudança afeta a estrutura mesma da política social, como se mostra no texto.
Diante desse estado de coisas, não é de espantar que tenham surgido propostas de “flexibilizar” o orçamento, ou seja, abandonar despesas obrigatórias com saúde, educação e benefícios sociais ligados ao sistema previdenciário, por exemplo. Trata-se de uma proposta coerente com a posição antirredistributiva da coalizão Bolsonarista para além do (pouco) que foi realizado desde o começo da redemocratização. Mas a correlação de forças é a tal ponto restritiva que a proposta não deixa de encontrar eco em setores relevantes da coalizão do novo progressismo.
No já mencionado Valsa Brasileira, Laura Carvalho utiliza a figura irônica da “fadinha da confiança”, criada por Paul Krugman em 2017, para lembrar que políticas de austeridade não produziram as prometidas recompensas em termos de investimentos e gastos do setor privado.
Como mostra o já mencionado relatório de autoria de Adriana Mandacaru Guerra, Tim Sahay, Renato H. de Gaspi e Bentley Allan, “Nova política industrial para um novo mundo: aproveitando as oportunidades do Brasil na transição energética”: “No novo cenário geopolítico, os países mais relevantes serão aqueles com grande potencial para energia solar e eólica, reservas de minerais críticos, recursos de biomassa, e capacidade de produção de hidrogênio. O tamanho do Brasil e a sua riqueza de recursos naturais conferem ao país o potencial de se tornar uma potência líder em recursos. Some-se a isso as suas capacidades em manufatura avançada e agricultura mecanizada, o Brasil pode ser uma potência de primeira ordem no novo sistema energético mundial, ao lado da China, dos Estados Unidos e da Rússia”.
Uma das principais tarefas quando se trata de identificar padrões de dependência é circunscrever com o máximo de clareza possível esses blocos e coalizões em nível nacional-periférico em suas conexões internas com sociedades centrais, tarefa ainda por realizar. Nos limites deste texto e desta proposta, o máximo que posso fazer é enunciar a questão e procurar indicar aqueles que considero serem alguns dos elementos estruturantes para formular hipóteses de pesquisa. Uma primeira visão de conjunto no que diz respeito especificamente ao investimento externo pode ser obtida com a consulta aos gráficos compilados em “Governo desenha janela para atrair investimentos estrangeiros diretos”, Folha de S. Paulo, 11 de janeiro de 2025. Este quadro deve ser compreendido apenas em termos de uma primeira aproximação ilustrativa do argumento. É fundamental realizar estudos detalhados sobre a evolução do investimento estrangeiro direto no Brasil segundo a participação por país sede do controlador final e relacioná-lo às exportações e à corrente de comércio para alcançar um quadro de partida abrangente. E isso não apenas nas trocas entre o Norte e o Sul Global, mas também para trocas Sul-Sul, que apresentam igualmente suas cadeias de dependência específicas.
Arlie R. Hochschild, no início de seu livro, faz a si mesma perguntas para as quais ainda não tem resposta àquela altura: “Small farmers voting with Monsanto? Corner drugstore owners voting with Walmart? The local bookstore owner voting with Amazon? If I were a small business owner, I would welcome lower company taxes, sure, but strengthening the monopolies that could force me out of business? I didn’t get it” (Strangers in Their Own Land: Anger and Mourning on the American Right, New York: The New Press, 2016, p. 10). Entendo que a resposta, ao final do livro mostra a força das transformações neoliberais, que fizeram com que a escassez de recursos públicos para políticas compensatórias, produzida pela própria regulação neoliberal, tenha se tornado fonte de divisão entre grupos subalternizados e não disputas de classe em sentido tradicional. Em vista da escassez de recursos, grupos sociais subalternizados preferem se opor à continuidade de políticas de redistribuição em lugar de buscar um entendimento sobre políticas redistributivas específicas. Esses grupos visam a um congelamento da correlação de forças produzida pelo neoliberalismo. O que, ao mesmo tempo, exige sob muitos aspectos deixar o próprio neoliberalismo para trás. O segundo governo de Donald Trump surge aqui como padrão e modelo.
Cada um à sua maneira, ambos os representantes da divisão atual são herdeiros legítimos do neoliberalismo. Os termos em que Gary Gerstle (The Rise and Fall of the Neoliberal Order: America and the World in the Free Market Era, Oxford: Oxford University Press, 2022) descreveu a configuração da disputa nos Estados Unidos aclaram os detalhes do processo sucessório: um dos lados lado é herdeiro do “neovitorianismo” (o neoliberalismo conservador de Ronald Reagan na década de 1980), o outro é herdeiro do “cosmopolitismo” (o neoliberalismo progressista consolidado a partir da gestão de Bill Clinton nos anos 1990). A diferença da nova geração da divisão é que em muitos lugares a direita sem medo, herdeira do neovitorianismo, é agora explicitamente controlada pela extrema direita. O novo progressismo, por sua vez, antes o próprio establishment em boa parte dos países ainda democráticos, está ainda em busca de nova configuração em vista da nova hegemonia da direita sem medo.
Sintetizando um esforço coletivo na América Latina de desenvolver a noção de “neoextrativismo”, Maristella Svampa (Neo-extractivism in Latin America. Socio-environmental Conflicts, the Territorial Turn, and New Political Narratives, Cambridge: Cambridge University Press, 2019) resume esse estado de coisas nas fórmulas “neoextrativismo” e “neoextrativismo progressista”. Até onde sei, no entanto, as análises de Svampa não envolvem explicitamente a utilização da noção de “armadilha”, como procuro fazer aqui.
Outro exemplo emblemático aqui é o da agropecuária. Sobre isso, ver o artigo de Fernando Rugitsky, “O curral do mundo: agronegócio e transição ecológica no Brasil”, Phenomenal World, 21 de agosto de 2024, que também explora outros aspectos das contradições da coalizão do novo progressismo no poder no país. Para uma complexa compreensão antropológico-política do “mundo do agro”, ver Caio Pompeia, Formação política do agronegócio, São Paulo: Elefante, 2021.
M. Bearak, “Brazil’s Clashing Goals: Protect the Amazon and Pump Lots More Oil”, The New York Times, 13 de março de 2024.
Como afirmou Cibele Vieira em entrevista a Hugo Fanton: “As Guianas já estão explorando em torno da Margem Equatorial. A disputa com a Venezuela tem relação com isso. No mundo de hoje, deixar de usar energia fóssil ainda não é uma opção viável. A Margem Equatorial será explorada, pelo Brasil ou por outro país. Nosso entendimento é de que novas fronteiras têm que ser exploradas, nessa concepção de que os ganhos devem ser investidos na transição energética”, Phenomenal World, 7 de março de 2024. Em sentido semelhante, ver a entrevista de César Loza a Camilo Andrés Garzón, Phenomenal World, 18 de setembro de 2024. O caso colombiano é tanto mais interessante porque os resultados da decisão do governo de Gustavo Petro de não celebrar novos acordos de exploração de gás e petróleo serão muito provavelmente paradigmáticos para pensar a lógica da armadilha neoextrativista, dada a dependência da Colômbia dessa commodity. Sobre isso, ver uma vez mais Phenomenal World, que publicou a entrevista de Salomón Kalmanovitz a Camilo Andrés Garzón em 1 de agosto de 2024.
“A Petrobras bateu, pelo terceiro ano consecutivo, o recorde de depósito de patentes, com 142 pedidos registrados no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), superando as marcas obtidas nos dois últimos anos (…). A empresa também superou a marca de 1.200 patentes ativas, mantendo a liderança entre depositantes nacionais, incluindo empresas e universidades, e aguarda a confirmação do INPI para saber se alcançou o recorde nacional. O plano estratégico da empresa, divulgado recentemente, prevê investimentos de US$ 3,6 bilhões em pesquisa, desenvolvimento e inovação (P&DI), de 2024 a 2028, o maior da história da empresa, com previsão do aumento de aportes em descarbonização e novas energias em torno de 30% em 2028”. “Petrobras bate recorde de depósito de patentes em 2023”, Agência Fapesp, 16 de janeiro de 2024.
Penso aqui em trabalhos como o de Camila Rocha (Menos Marx, mais Mises: O liberalismo e a nova direita no Brasil, São Paulo: Todavia, 2021), Angela Nagle, Kill All Normies: Online Culture Wars From 4Chan And Tumblr To Trump And The Alt-Right, Winchester, Reino Unido: Zero Books, 2017), Verónica Gago (La razón neoliberal: Economías barrocas y pragmática popular, Madri: Traficantes de Sueños, 2015), Carlos Alba Vega; Gustavo Lins Ribeiro; Gordon Mathews (orgs., La globalización desde abajo, la otra economía mundial, Mexico City: Fondo de Cultura Económica/El Colegio de México, 2015), além do já mencionado livro de Arlie R. Hochschild (Strangers in their Own Land: Anger and Mourning on the American Right, N. York: The New Press, 2016).
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