Nos últimos anos, a escalada das disputas comerciais com a China fez com que os Estados Unidos condenassem repetidamente a obrigatoriedade de que suas empresas transfiram tecnologia às parceiras chinesas se quiserem atuar no país asiático. A exigência enfrentou veemente oposição de Donald Trump e foi rotulada como “injusta” por Joe Biden. Do outro lado do Atlântico, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, declarou que a adoção de práticas dessa natureza ameaça a “segurança econômica e nacional” dos Estados europeus e alertou para a necessidade de medidas de “redução de riscos” para desvincular a economia europeia da chinesa. Segundo essa perspectiva, transferências tecnológicas são “imposições” feitas por um concorrente de peso.
A exigência de que investidores estrangeiros ajudem países com níveis de renda mais baixos a reduzir a distância da fronteira tecnológica em troca de espaço para instalações ou acesso a mercados de trabalho, no entanto, não é nova. Na verdade, muitos dos países hoje industrializados empregaram precisamente essa estratégia quando se encontravam em patamares inferiores de industrialização. No momento em que o mundo todo se esforça (ainda que de forma desordenada) para reorientar práticas econômicas e frear a mudança climática, a crítica indiscriminada às transferências tecnológicas é particularmente equivocada.
No Norte global, o novo consenso formado em torno da ação climática implicou o desenho de novas políticas industriais—consistentes essencialmente de incentivos e subsídios estatais—voltadas a estimular o desenvolvimento tecnológico e produtivo necessário para descarbonizar a economia. A maior parte do Sul global, entretanto, não tem capacidade financeira para adotar estratégias industriais semelhantes. A alternativa para esses países é apostar em uma abordagem regulatória que acolha o investimento estrangeiro e garanta que esse investimento transfira o conhecimento necessário para que os agentes econômicos domésticos inovem e galguem posições nas cadeias de valor. No século XX, foi precisamente essa a abordagem adotada por algumas das economias que registraram os processos mais acelerados de desenvolvimento, como Japão, Coreia e Taiwan: regulamentar a atividade das multinacionais para garantir transferências tecnológicas e ciclos virtuosos de transbordamento dessas tecnologias para outras atividades produtivas.
A oposição do Norte global às transferências tecnológicas põe em xeque justamente essa alternativa. O argumento é que, ao se abrirem ao comércio internacional por meio da adesão à Organização Mundial de Comércio (OMC) e da assinatura de diversos tratados comerciais, os países do Sul se comprometeram a respeitar direitos de propriedade intelectual instituídos para garantir que os inovadores sejam beneficiados por suas invenções e, assim, incentivar o desenvolvimento tecnológico. Sob essa ótica, a “imposição” de qualquer forma de transferência tecnológica constitui uma prática “anticoncorrencial” que deve ser penalizada. O atual regime de direitos de propriedade intelectual consagra um sistema que inibe o desenvolvimento, em vez de impulsioná-lo.
Propriedade intelectual e limites ao desenvolvimento tecnológico
Os países do Sul global têm criticado esse regime comercial que interdita seu avanço tecnológico, formalizado pelo Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS, na sigla em inglês), assinado em 1995 e fiscalizado pela OMC. O acordo estabeleceu um programa ambicioso de alinhamento das proteções nacionais à propriedade intelectual aos padrões de referência mundiais. Esse sistema—apoiado pelo Norte—é amplamente bem-sucedido em difundir tais proteções mundo afora, mas também em barrar a atualização tecnológica do Sul ao aumentar os custos de aquisição de tecnologia. Em razão disso, o Sul denuncia as restrições provocadas pelos direitos de propriedade intelectual e reivindica acesso igualitário a inovações transformadoras.
A campanha de “acesso a medicamentos” foi talvez o mais importante e bem-sucedido exemplo desse movimento contestatório. A rápida propagação do HIV na África subsaariana entre o final da década de 1990 e o início da década de 2000 mostrou que, na prática, o sistema de direitos de propriedade intelectual impedia o acesso de uma miríade de pessoas a caríssimos medicamentos antirretrovirais patenteados. Uma série de campanhas encabeçadas tanto por governos quanto pela sociedade civil expuseram essa situação e deram início a uma mobilização para reivindicar o amplo acesso a esses medicamentos, explorando a flexibilidade permitida pelas leis de comércio internacional em favor da saúde pública. Os mecanismos de licenciamento compulsório, que possibilitam aos governos obrigar um detentor de propriedade intelectual a licenciá-la, permitiram a quebra de patentes para a produção de medicamentos. Países em desenvolvimento continuam fazendo uso esse instrumento: em abril de 2024, a Colômbia emitiu sua primeira autorização de quebra de patente para medicamentos destinados ao tratamento de portadores do HIV.
Para os países do Sul, a flexibilização dos direitos de propriedade intelectual e de tecnologia não só evitou mortes e poupou dinheiro, mas também contribuiu para o progresso da inovação e para o desenvolvimento industrial. A Índia, por exemplo, utilizou seu período de implementação gradual da conformidade com o direito comercial para se tornar uma potência mundial na produção de medicamentos genéricos e, dessa maneira, estimulou investimentos e subsequentes inovações, mesmo depois dessa fase. A indústria farmacêutica da África Oriental se baseou na mesma flexibilização do direito comercial internacional para fabricar genéricos e se tornar competitiva globalmente.
As críticas ao sistema TRIPS e a eficácia da campanha de acesso a medicamentos ganham um novo significado à luz da ameaça existencial representada pela crise climática. A Declaração de Havana assinada em 2023 por grupo de 77 países em desenvolvimento e pela China destacou que “as barreiras tecnológicas (…) limitam a adaptação às alterações climáticas e a implementação das Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs, na sigla em inglês) dos países em desenvolvimento”, reivindicando o urgente aumento das transferências tecnológicas e a exploração das “flexibilidades” do regime de direitos de propriedade intelectual.
Assim como medicamentos que salvam vidas são essenciais para a saúde pública, tecnologias verdes são vitais para a sustentabilidade ambiental e o bem-estar da população global. O conhecimento necessário para a produção de células de baterias, veículos eléctricos, células fotovoltaicas e turbinas eólicas é fundamental para viabilizar a industrialização verde. O princípio da suspensão dos direitos de propriedade intelectual—a quebra de patentes—para facilitar o acesso a bens essenciais pode ser estendido às tecnologias verdes para dar suporte à transição ecológica no Sul global.
A fronteira tecnológica do clima
As mudanças climáticas apresentam desafios distintos quanto ao modo de pensar o papel da tecnologia no desenvolvimento. O apelo urgente pela redução das emissões de carbono exige a rápida expansão das tecnologias que a possibilitam—nesse sentido, as alterações climáticas ampliam a fronteira tecnológica da economia global. A consequência é que agora todos os países estão em desenvolvimento, tentando “recuperar o atraso” em relação à vanguarda tecnológica.
As premissas de vantagens comparativas adotadas pela economia neoclássica convencional implicam uma atitude neutra quanto ao local de produção dessas tecnologias verdes. De acordo com essa visão, que dominou o debate global sobre a política climática, o instrumento político mais importante a ser acionado é o dos preços. Segundo essa lógica, a manipulação dos preços por meio da taxação do consumo de tecnologias emissoras de carbono ampliará a oferta de tecnologias verdes que possam substituir a matriz antiga.
A recente expansão das políticas industriais, no entanto, particularmente no Norte global, parte do reconhecimento de que as tecnologias cruciais para a descarbonização não podem ser difundidas através do mero incentivo a certas preferências de consumo. Ainda assim, mesmo para as nações do Norte, isso não significou uma virada em direção ao planejamento industrial em larga escala, mas novos regimes de tarifas e subsídios estão sendo utilizados para ajudar novas tecnologias, muitas vezes pendentes de comprovação, a atingirem a maturidade comercial. Há um crescente consenso entre os governos do Norte de que isso faz parte de seu papel na tarefa da descarbonização. De qualquer forma, o próprio desenvolvimento de algumas das principais tecnologias de energia verde expõe os limites do conjunto de políticas quase protecionistas que têm surgido—além de demonstrar a importância crucial da existência de direitos de propriedade intelectual flexíveis e das transferências de tecnologia para a expansão desse tipo de energia.
Talvez o exemplo mais destacado seja o aumento da produção de painéis solares na China, que atualmente representa mais de 80% do total mundial. Embora outras economias tecnologicamente avançadas do Norte interpretem esse crescimento como uma ameaça, ele é, em muitos aspectos, um exemplo de sucesso de cooperação global. Jonas Nahm, cientista político e ex-membro do Conselho de Assessores Econômicos da Casa Branca, descobriu que, embora grande parte dos projetos de pesquisa e desenvolvimento na área de tecnologia solar fotovoltaica tenha sido realizada nos Estados Unidos, foram empresas alemãs que traduziram tais estudos em técnicas de produção modular e que, em última análise, foram as empresas chinesas que conseguiram transformar tanto os estudos como o conhecimento técnico da produção modular em fabricação em massa. Joanna Lewis, especialista em energia, também documentou como as parcerias de pesquisa entre instituições estadunidenses e chinesas tiveram o papel de possibilitar a dinâmica expansiva das tecnologias de energias renováveis. Uma das principais consequências desse processo de compartilhamento de tecnologia é o fato de que a China foi capaz de concentrar a pesquisa básica e o desenvolvimento em torno de tecnologias cruciais para a descarbonização.
A experiência chinesa de crescimento econômico acelerado é vista como um modelo para os países em desenvolvimento. A formulação da antiga demanda por desenvolvimento no âmbito da política climática global foi sistematizada pela Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, que articulou o princípio de “responsabilidades comuns, mas diferenciadas”. No futuro, os países do Sul global representarão a maior parte do fluxo das emissões de carbono, especialmente se quiserem fazer com que suas economias e rendas cresçam. O objetivo já antigo de que o desenvolvimento se dê a partir do avanço da posição nas cadeias de valor globais tem maior relevância, já que essas cadeias estão sendo remodeladas com o aumento da produção em massa de tecnologias verdes.
Por isso, é justificável que, no campo das tecnologias verdes, o modelo de pesquisa transnacional e as parcerias para iniciativas conjuntas que possibilitam o dinamismo econômico da China atraiam a atenção de grande parte do mundo. Além disso, os componentes de maior valor nas cadeias de suprimentos globais concentram-se no conhecimento dessas tecnologias; mais precisamente, nas competências para pesquisa, desenvolvimento e design que têm se concentrado na China por meio de parcerias estratégicas com países ricos, como os Estados Unidos e a Alemanha. Esses fatores sugerem que a transferência de tecnologias verdes tem um papel crucial na formulação de um plano significativo de desenvolvimento global. Em uma era de política industrial verde, parcerias voltadas ao desenvolvimento exigirão empreendimentos corporativos conjuntos e cooperação para pesquisa.
Barrar o progresso da fronteira tecnológica é barrar o desenvolvimento
Antes da China, quase todos os casos de desenvolvimento acelerado se basearam em parcerias para a troca de conhecimentos visando à ascensão nas cadeias globais de valor. As experiências dos engenheiros coreanos e taiwaneses em empresas europeias e estadunidenses são parte fundamental da história do desenvolvimento dos “tigres asiáticos”. Tais casos sugerem que a intervenção estatal ativa orientada para o crescimento em escala da produção é fundamental para uma expansão exponencial dos mercados para bens que impulsionem uma rápida transição energética.
O crescimento da chinesa BYD, uma das maiores vendedoras de veículos eléctricos do mundo (ou a maior, dependendo do trimestre financeiro), é um dos casos mais famosos e politicamente explosivos desse processo nos dias atuais. A empresa se tornou o exemplo mais conhecido dos novos esquemas tarifários que os Estados Unidos e a União Europeia adotaram nos últimos meses para proteger suas indústrias contra os veículos elétricos chineses de baixo custo e alta qualidade que estão sendo fabricados graças a uma capacidade produtiva aparentemente inigualável.
O sucesso da BYD está enraizado nas transferências tecnológicas voltadas à descarbonização. Como demonstrou o sociólogo Kyle Chan, que documentou a história da fábrica da Tesla em Xangai, a companhia estadunidense trabalhou com uma empresa chinesa de equipamentos e uma fábrica italiana de máquinas de fundição para produzir a maior máquina de fundição do mundo—máquina esta que permite à Tesla “fabricar um componente automotivo que é uma grande peça única e contínua, em vez de dezenas de peças menores unidas por solda”. A colaboração gerou um ecossistema de empresas que difundiu essa inovação entre todos os principais fabricantes chineses de veículos eléctricos.
Algumas das mais bem-sucedidas empresas chinesas do ramo de veículos elétricos estão agora se instalando fora do país. A BYD, por exemplo, está em fases diferentes de instalação de grandes projetos de produção no Brasil, na Indonésia, no México e na Hungria. No evento de inauguração da nova fábrica da BYD na Bahia, a CEO da empresa para as Américas, Stella Li, destacou que há a intenção de criar o “vale do silício do Brasil” a partir da fundação de um centro de pesquisa e desenvolvimento no estado. Em março de 2024, Li já havia anunciado novos investimentos no complexo industrial baiano para garantir que pelo menos 25% dos componentes dos veículos fossem produzidos no Brasil. O simbolismo do evento era marcante: o complexo da BYD na Bahia ocupará um espaço anteriormente utilizado pela norte-americana Ford, que operou ali até sair do país em 2021.
Os países em desenvolvimento com potencial de produção elevado querem ter acesso aos componentes de conhecimento de alto valor agregado das tecnologias verdes. Nas áreas em que a China está assumindo uma posição de liderança no campo dessas tecnologias, como a de veículos eléctricos, suas empresas estão, pelo menos, dando os primeiros passos para possibilitar a produção local, ao mesmo tempo em que expandem suas operações para os principais mercados dos países em desenvolvimento.
A tendência dos Estados Unidos e da União Europeia de imposição de tarifas proibitivas sobre os veículos eléctricos chineses sugere uma potencial distorção dos objetivos de sua própria política industrial verde. Se as empresas chinesas estiverem mais à frente na fronteira tecnológica para esses bens cruciais, Estados Unidos e União Europeia podem inviabilizar até o próprio acesso a tecnologias verdes de ponta. Recentemente, Zhu Min, membro do comitê do plano quinquenal da China e ex-diretor adjunto do FMI, expôs claramente os planos chineses em termos de tecnologias verdes: “É hora da China exportar tecnologia”, afirmou ao Financial Times, citando como exemplos os setores de veículos elétricos e baterias, nos quais o país é líder.
O que vem pela frente
Uma vez que transferências tecnológicas globais consistem na redistribuição do conhecimento, sua efetivação é altamente política. Os países do Norte querem proteger a propriedade intelectual de suas empresas que, por sua vez, fazem lobby para garantir esse apoio de alto nível. Mas a política de impedir as transferências colide com o objetivo declarado da maioria dos países do mundo, desenvolvidos ou em desenvolvimento: introduzir e difundir políticas de transição verde para garantir uma economia global descarbonizada.
As transferências tecnológicas verdes podem ajudar a estimular a inovação e a adoção de processos de produção mais limpos no mundo todo. No entanto, são sistematicamente bloqueadas por não só por um regime de direitos de propriedade intelectual que não reconhece as alterações climáticas como uma ameaça existencial, mas também pela resistência dos governos do Norte, que querem manter sua vantagem competitiva em relação a potenciais concorrentes. O “equilíbrio” de soma zero que daí resulta se traduz em transferências limitadas, guerras comerciais e acusações que degradam as instituições de governança global e acirram conflitos globais.
Em termos de atualização tecnológica verde, as necessidades do Sul global são amplamente ignoradas. Washington tem começado a reconhecer cada vez mais este padrão. Por exemplo, o ex-diretor do Conselho Econômico Nacional, Brian Deese, escreveu recentemente sobre a necessidade de um “Plano Marshall Verde” para estimular o desenvolvimento global. As transferências de tecnologia verde podem, simultaneamente, ajudar na disseminação do conhecimento que facilitará a descarbonização, introduzir medidas de atenuação das mudanças climáticas, estimular o desenvolvimento industrial e, assim, reduzir as desigualdades internacionais e o custo das tecnologias verdes em todo o mundo.
Durante o governo Biden, a opção crescente dos Estados Unidos por uma política industrial verde estava imbuída de um impulso paroquial e contraditório de tornar o país globalmente competitivo e, ao mesmo tempo, pregar que os países estrangeiros mais pobres reduzissem suas emissões. O regresso de Trump à Casa Branca deve preservar a orientação geral para a política industrial de seu primeiro mandato, marcada pelo desrespeito explícito às perspectivas de desenvolvimento do resto do mundo—e, ao mesmo tempo, deixando de lado grande parte do enfoque verde. Mas, no momento atual, que é de repensar o sistema de comércio global, a ampliação das flexibilidades já existentes—como os mecanismos de licenciamento obrigatório—para a defesa da política ambiental é um passo no sentido de garantir que as transferências de tecnologia verde sejam institucionalizadas e contribuam para soluções climáticas de soma positiva.
Tradução: Heci Regina Candiani
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