25 de janeiro de 2025

Entrevistas

Descolonizando a Jamaica

Entrevista com o professor Anthony Bogues sobre o centenário de Michael Manley

As ideias do líder político jamaicano Michael Manley tiveram um impacto global que persiste até hoje. À frente do Partido Nacional Popular (PNP) de 1969 a 1992, e especialmente durante seu primeiro mandato como primeiro-ministro da Jamaica, de 1972 a 1980, Manley promoveu um grande conjunto de reformas ambiciosas, fortemente baseadas em ideias de socialismo democrático e economia decolonial. Ele reconhecia que a Jamaica, como muitos outros países, havia conquistado a independência constitucional, mas seguia atada a uma economia global estruturada por legados coloniais. Essas ideias direcionaram sua agenda internacionalista. 

Ao lado de outros líderes, como Julius Nyerere da Tanzânia, Manley foi um dos principais porta-vozes da Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI) nos anos 1970—um conjunto de propostas baseadas em princípios de igualdade e cooperação entre países do Sul global. Apesar do sucesso na implementação de diversas reformas, as políticas de Manley enfrentaram forte oposição tanto de grupos jamaicanos quanto de atores internacionais—com destaque para os Estados Unidos. Seu governo passou por enormes dificuldades frente à conjuntura econômica da década de 1970, sendo derrotado nas eleições de 1980 após anos de medidas de austeridade promovidas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).

Anthony Bogues é professor Asa Messer de humanidades e estudos africanos na Universidade Brown e tem extensa produção sobre a história e o pensamento político, intelectual, cultural e literário da África e do Caribe. No final dos anos 1980, foi conselheiro de Manley. Mais recentemente, Bogues tem se empenhado em apoiar os esforços para repensar a visão política do Partido Nacional Popular.

Na seguinte entrevista, Bogues reflete sobre a vida e o legado de Michael Manley, cujo centenário de nascimento foi celebrado em dezembro passado. Considerando a influência de Manley tanto na política jamaicana quanto na política internacionalista, a conversa trata de sua formação política no movimento trabalhista da Jamaica, seus ambiciosos projetos para descolonizar a economia jamaicana e sua atuação no cenário global—que incluiu questões como o embargo econômico dos EUA sobre Cuba e as diretivas do FMI. Bogues discute a herança geracional de repensar a visão filosófica do socialismo democrático na Jamaica, expressando sua esperança de um Caribe unido.

Uma entrevista com o professor Anthony Bogues

WILL KENDALL: Você pode nos contar mais sobre sua relação com Michael Manley? Como vocês se conheceram? E como essa relação se desenvolveu?

ANTHONY BOGUES: Eu o conheci após a eleição de 1980, um momento crítico na história da Jamaica. Aquele ano marcou um período de crise política e grande violência—mais de 800 pessoas morreram entre o início do ano e a eleição em outubro. Eu era um jornalista de esquerda que, desde o final dos anos 1970, trabalhava na Jamaican Broadcasting Corporation. A eleição ocorreu em outubro e, dada a vitória do partido conservador, o Partido Trabalhista da Jamaica (JLP – Jamaica Labour Party), fui demitido em dezembro. Durante a campanha, eu e outros jornalistas sofremos ameaças dos conservadores, que diziam que nunca mais trabalharíamos na Jamaica.

Depois da minha demissão, considerei cursar o doutorado. Porém, fui abordado por dois membros importantes do PNP, o então secretário geral do partido, DK Duncan, e a hoje ex-esposa de Michael Manley, Beverley Manley, que me convidaram para trabalhar no partido como pesquisador. Eu aceitei o convite, e essa decisão me levou a trabalhar para o secretariado do partido: virei secretário da Comissão de Educação Política do PNP. Foi assim que conheci Michael Manley, de quem me aproximei muito nos anos seguintes. Quando se tornou primeiro-ministro, em 1989, Manley me convidou para ir à Jamaica House—o referente jamaicano da 10 Downing Street britânica. Eu ainda queria fazer um doutorado, mas acabei aceitando a proposta. Trabalhei com ele como assistente especial e o que hoje em dia chamamos de chefe de gabinete.

Nos viajávamos muito a trabalho. Certa vez, Manley precisava visitar a Casa Branca. Geralmente, o primeiro-ministro seria acompanhado pelo ministro de relações exteriores, mas ele queria que eu estivesse presente na reunião privada com o presidente Bush pai no Salão Oval. Quando a reunião começou, entendi o motivo. Havia três itens na agenda: o primeiro era a questão das drogas, que estava começando a criar problemas sérios para muitos Estados caribenhos. O segundo era a dívida multilateral da Jamaica e da região. E o terceiro ponto na agenda tratava do embargo a Cuba. O plano era que o primeiro-ministro Manley conversasse com Fidel Castro. Depois, o ex-presidente Carter visitaria Cuba para avançar nas negociações. Desse modo, a Casa Branca permaneceria afastada do problema até que estivesse claro que as conversas haviam atingido certo ponto. A única condição estadunidense era de que Cuba libertasse um grupo de prisioneiros políticos.

Depois da reunião, fomos para Cuba e conversamos com Fidel, que nos disse prontamente: “não temos nenhum prisioneiro político.” Quando transmitimos essa informação a Brent Scowcroft, Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, a negociação caiu por terra. Era nesse tipo de coisa em que Michael e eu estávamos envolvidos, e essa foi a base da nossa relação. Mantivemo-nos próximos por bastante tempo após ele deixar o cargo. Quando faleceu, eu estava cursando meu pós-doutorado na Universidade Howard, nos EUA, e retornei imediatamente para ajudar a organizar seu funeral.

WK: Você pode descrever o ambiente social e político no qual Michael Manley cresceu? Por um lado, há contextos de raça e classe na Jamaica, como o “classicismo de cor” das classes proprietárias; por outro, há o “sindicalismo político” do movimento trabalhista e sua relação com os dois partidos de massas.

AB: Michael nasceu em 1924, quando a Jamaica ainda estava sob domínio do colonialismo britânico. Nascido em uma família de classe média alta, seu pai era um dos advogados mais importantes de todo o Caribe. Sua mãe, nascida no Reino Unido, se tornou uma artista amplamente reconhecida e foi muito importante para a comunidade artística jamaicana. Ambos viveram suas vidas de acordo com uma forte ética voltada ao serviço público. Edna Manley era conhecida por desafiar a representação distorcida da população negra das colônias, sendo que um de seus trabalhos mais importantes foi intitulado Negro Aroused. Já Norman Manley, para além de sua lista de clientes poderosos, serviu ativamente à população trabalhadora. Morando em Londres enquanto bolsista do programa de estudos Rhodes, Norman também desenvolveu visões ligadas ao socialismo fabiano ou fabianismo.

Em 1938, protestos trabalhistas eclodiram por todo o país e o Caribe. As greves incitaram a reflexão do governo colonial britânico sobre como o império lidaria com o movimento sindicalista emergente. Antes de 1938, existia no Caribe a Associação Universal para o Progresso Negro (Universal Negro Improvement Association), fundada por Marcus Garvey. Esse é um fato importante, já que muitos “garveyanos” posteriormente se juntaram ao Partido Nacional Popular (PNP). Depois das manifestações trabalhistas dos anos 1930, passamos a ter o sindicato Bustamante Industrial Trade Union (BITU) e o PNP liderado por Norman Manley—um movimento trabalhista organizado e um movimento nacionalista anticolonial. Essa era a configuração política da época.

Eu defendo que o PNP era um movimento anticolonial de massas que se transformou em um partido político em 1944, com a conquista do sufrágio universal adulto. O BITU foi um movimento sindical de massas ligado a Bustamante, que originalmente era membro do PNP. Depois de ser preso por suas atividades sindicais, ele foi libertado e deixou o partido, formando o Partido Trabalhista da Jamaica (JLP) em 1943. Como o movimento sindical estava associado ao partido trabalhista, quando Bustamante deixa o PNP, Norman Manley e outros líderes do partido formam a aliança sindical Trade Union Congress como forma de enfrentar o BITU. Assim, nos anos 1940, ambos ospartidos estavam fundamentados em atividades ligadas à classe trabalhadora organizada. Seguindo os rótulos convencionais, pode-se dizer que o JLP é um partido de centro-direita, enquanto o PNP é de centro-esquerda. Porém, é importante notar que ambos partidos se engajaram no estabelecimento de uma relação com movimentos de massa que hoje não existe mais.

O PNP também tinha ligações próximas com o Partido Trabalhista do Reino Unido e com o Socialismo Fabiano. Stafford Cripps, ex-ministro do Tesouro britânico com tendências políticas de esquerda, estava presente na conferência inaugural do PNP. Assim, apesar de o objetivo principal do partido, desde a sua criação, ter sido a independência política, o PNP também tinha uma base socialista. 

Michael cresceu nesse ambiente, chegando em casa e ouvindo os argumentos políticos de seu pai. Tanto ele quanto sua mãe estavam ativamente envolvidos com a vida pública. Michael frequentou a mesma escola colonial de elite que o pai, a Jamaica College, depois estudou brevemente em McGill, no Canadá, e então se mudou para Londres. Na London School of Economics (LSE), sua principal influência foi o socialista inglês Harold Laski, que posteriormente viria a ser presidente do Partido Trabalhista do Reino Unido. Inicialmente, sob influência de sua mãe, Michael tinha interesse em estudar o universo dos críticos de arte. Porém, assim que concluiu os requisitos obrigatórios de latim, acabou optando por um bacharelado em ciência política e governamental. 

O socialismo de Laski, à esquerda do Partido Trabalhista da época, influenciou grandemente o pensamento de Manley. Outras influências vieram de um grupo estudantil da Universidade das Índias Ocidentais—West Indian Students Union, que incluía figuras como Errol Barrow, que posteriormente se tornou primeiro-ministro de Barbados, e G. Arthur Brown, que se tornaria diretor do Banco da Jamaica. A extraordinária historiadora de Guiana, Elsa Goveia, que seria a primeira professora de história das Índias Ocidentais na Universidade das Índias Ocidentais, também participava do grupo. 

Essa era uma geração diferente da que havia ido à Londres nos anos 1920 e 1930, formada por personalidades como CLR James, George Padmore, Amy Ashwood Garvey e o jogador de críquete Learie Constantine. Era uma geração explicitamente anticolonial que se reuniu em Londres durante os anos 1940 e 1950, formada principalmente por estudantes. Também se tratava de uma geração federalista, composta por pessoas que se consideravam não apenas participantes da vida política de Guiana, Barbados e Jamaica, mas também proponentes de uma Federação do Caribe Anglófono.

Quando Michael retornou à Jamaica no final de 1940, decidiu seguir a carreira de jornalista político. Inicialmente, trabalhou para o jornal Public Opinion, assinando a notável coluna “Root of the Matter” (“a raiz do problema”). Politicamente, se tornou um membro ordinário do PNP, mas quando o partido se fragmentou, em 1952, começou a assumir um papel mais ativo. Essa fragmentação ocorreu em razão das crescentes pressões da Guerra Fria. Na Jamaica, durante o período de agitações anticoloniais do século XX, marxistas alinhados ao regime soviético e liderados por Richard Hart e outras figuras da esquerda radical, como Ken Hill, se tornaram muito influentes—tanto dentro do PNP quanto no movimento operário e sindical. Preocupados, os membros de direita do partido buscaram formas de afastar os marxistas. Na conferência partidária de 1952, conseguiram expulsá-los do PNP. 

Depois da divisão, Michael fez parte de uma campanha interna que pretendia articular a diferença entre o comunismo e o socialismo democrático. Nesse processo, fortaleceu suas ideias políticas ao frequentar centenas de reuniões de diferentes grupos do PNP e ao ouvir e participar de debates entre os membros. Até esse momento, Michael era um jornalista e uma figura secundária dentro do partido. Porém, sua subsequente participação no movimento trabalhista foi provavelmente a experiência mais formativa que teve. Ele foi apresentado ao movimento operário por meio de um convite para observar as negociações encaminhadas por um líder sindical e membro do PNP. Dizem que o líder saiu repentinamente da reunião de negociação, deixando Michael sob a responsabilidade de dar seguimento à discussão. Ouvir a lista de reivindicações dos trabalhadores nessa ocasião fez de Michael um sindicalista. Ao atuar nas regiões de produção açucareira e de bauxita, esteve em contato com a classe trabalhadora organizada, transformando-se no político que conhecemos. 

Neil warner: Depois de Manley se tornar primeiro-ministro, seu programa de reformas políticas e econômicas em nome de uma “terceira via” contrastava com os modelos de Porto Rico (com foco na atração de investimentos externos) e de Cuba (baseado no marxismo-leninismo e no planejamento central). Como você descreveria essa abordagem? E quais reformas você diria que foram as mais importantes e bem-sucedidas?

AB: Depois da conquista da independência em 1962, a sociedade jamaicana não foi descolonizada em nenhum aspecto substantivo. As plantations ainda eram extremamente poderosas. As hierarquias de raça e classe permaneceram intactas. A ordem social dominante estava construída sobre a opressão do povo negro.

Consequentemente, a descolonização se manteve como um dos pilares da política de Manley nos anos 1970. Mas não era possível alcançar o sonho decolonial sem levantar questões fundamentais sobre igualdade, justiça e a estrutura da economia nacional. Em seu primeiro livro, The Politics of Change, Manley elabora ideias para transformar a estrutura colonial da sociedade jamaicana. Elas envolviam a derrubada da legislação colonial, como a Lei dos Mestres e Servos (Master Servant law), a criação de programas públicos, como educação gratuita e a inserção de cidadãos negros comuns no centro da sociedade jamaicana. Assim, em sua prática política, Michael buscou desmantelar os legados da antiga ordem colonial. 

Trata-se de um período de reorganização econômica na Jamaica. O açúcar representava uma das indústrias mais importantes da sociedade local e, no processo de descolonização, existia um pertinente questionamento: esses trabalhadores, cujos antepassados foram escravizados, poderiam participar da reformulação da organização e operação dessa indústria? Essa era uma questão tanto histórica quanto política, dado o passado da ilha enquanto colônia escravista produtora de açúcar. Ao final dos anos 1970, eu e outros membros visitamos a região açucareira de Westmoreland a fim de ajudar a designar a terra aos trabalhadores para que pudesse funcionar como uma cooperativa. Esse foi apenas um dos programas que Michael instituiu. Outro projeto tratava da alfabetização. Como resultado do colonialismo britânico, quase 80% da população jamaicana era analfabeta. Na época, pessoas jovens como eu estavam profundamente envolvidas nesses programas. 

Em suas negociações com corporações produtoras de bauxita, Michael decidiu pleitear taxas mais altas de compensação ao invés da estatização. Por se tratar de uma indústria extrativista, a bauxita é finita, então fazia sentido garantir as melhores condições possíveis durante aquele período de extração. Então, resumidamente, eu diria que as reformas de Manley nos anos 1970 seguiam um programa de descolonização total.

Todas essas reformas deixaram os membros da elite nacional jamaicana bastante desconfortáveis. Nos anos 1980, a oposição da elite e das multinacionais já estava cristalizada. Documentos da Agência de Segurança Nacional dos EUA recentemente descobertos demonstram que os Estados Unidos também estavam preocupados, e que agiram sobre essas preocupações—lembrando que este era um período marcante da Guerra Fria. Michael ainda apoiou Cuba e sua intervenção em Angola junto com o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Na época, o MPLA lutava contra a expansão sul-africana, que não apenas ampliaria o regime do apartheid, mas também enfraqueceria o movimento anti-apartheid. Todas essas situações ocorreram conjuntamente nos anos 1980.

Nw: Esse ano marca o quinquagésimo aniversário da declaração da Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI), um programa liderado por países do Sul global para reestruturar as regras do sistema econômico e pôr fim ao colonialismo e à dependência econômica. Manley é conhecido como um dos defensores mais importantes da NOEI. Você poderia falar um pouco sobre o papel dele nesse projeto?

AB: Manley percebeu que ainda que países como a Jamaica tivessem conquistado a independência constitucional, seguiam sujeitos a uma economia global estruturada sobre o colonialismo—o que pessoas como Kwame Nkrumah chamariam de “neocolonialismo”. Para transformar a economia internacional, era preciso alterar os mecanismos de determinação de preços e conquistar as independências energética e tecnológica. Nós cultivamos as commodities, mas não definimos seus preços e dependemos da importação de máquinas e petróleo para processá-las. Uma vez que Manley estava profundamente investido na democracia política e econômica, também se preocupou com a ascensão das corporações multinacionais.

Esses problemas só poderiam ser resolvidos através do que Julius Nyerere na Tanzânia e outros líderes chamaram de Trade Union of the Poor (“sindicato dos pobres”). Uma nova ordem econômica mundial estava no centro da NOEI. Elaborada em 1979 em Arusha, na Tanzânia, a ideia se baseava na necessidade “de completar a liberação dos países do Terceiro Mundo da dominação externa”. Esses países, portanto, deveriam se unir para ter voz na estrutura e nas operações da economia mundial. Julius Nyerere e Michael Manley eram uma dupla importante desse movimento. Ambos cresceram em antigas colônias britânicas, mas também compartilhavam a noção de que a ascensão de uma elite doméstica que reproduziria as antigas regras coloniais era uma ameaça concreta às sociedades pós-coloniais. Nyerere desenvolveu a Declaração de Arusha, que pretendia frear o poder das novas elites e sua capacidade de corromper o Estado. Michael não chegou tão longe, já que estava operando em uma cultura política diferente. Mas suas ideias decoloniais e socialistas envolviam a limitação do poder da elite para alavancar os interesses do Estado.

A NOEI recebeu o apoio de Willy Brandt e de outros membros da Internacional Socialista. James Callaghan, então primeiro-ministro do Reino Unido, acabou se juntando à iniciativa. Assim, surgiu uma campanha internacional para fazer o mundo repensar as estruturas da economia global e alterá-las de modo que beneficiasse os países recém-independentes. Portanto, não era exatamente igual ao Movimento dos Países Não Alinhados, que era mais um movimento político do que econômico. O Movimento dos Países Não Alinhados foi transformado por Nyerere e Manley em um projeto robusto que desafiava tanto as estruturas políticas quanto econômicas do mundo na época. 

WK: Você citou o trauma das duas derrotas no Caribe—o fracasso da eleição de Michael Manley em 1980 e o insucesso da revolução de Granada em 1983. Essas foram derrotas políticas, ideológicas e militares. Manley foi primeiro-ministro da Jamaica pela última vez entre 1989 e 1992. Nesse mandato, seu governo parecia estar mais conciliado com o capitalismo. O que ele pensava sobre essa mudança?

AB: Os problemas que a Jamaica enfrentou com o FMI eram globais. Uma análise sofisticada deles foi publicada pela revista Development Dialogue, em uma edição especial coordenada por jamaicanos e tanzanianos. Dentro do PNP também existia um grande debate sobre a atuação do FMI. O Fundo foi uma das principais entidades empenhadas em garantir que Manley perdesse a eleição. Seus programas de ajuste estrutural foram muito duros e explicitamente exigiam a revogação das reformas que Michael havia iniciado. Esse cenário, combinado com a oscilação de preços do petróleo, a desestabilização política e o aumento da violência, contribuiu para sua derrota. 

Vamos pensar nos anos 1980. Havia três figuras-chave no mundo durante essa década: Margaret Thatcher, Helmut Kohl e Ronald Reagan. Eles estavam unidos pela intenção de acabar com qualquer movimento progressista nacional e internacional—seja a greve dos mineiros, a NOEI, ou os grupos anti-apartheid. Esses três indivíduos tinham uma visão ideológica do que a sociedade deveria ser. Para citar Maggie Thatcher, “não existe sociedade, só existem indivíduos.” Stuart Hall caracterizou esse momento como uma revolução nas ideias e práticas sociais.

Depois da derrota eleitoral de Manley em 1980, Reagan convocou uma reunião em Cancún no ano de 1981. Julius Nyerere compareceu como representante dos argumentos da NOEI, mas, quando chegaram nessa parte da agenda, Ronald Reagan disse: “próximo item”. Ninguém contestou a decisão, e Manley começou a perceber que o mundo tinha se transformado dramaticamente. Mas ele ainda era um político, e tinha que levar seu partido à vitória.

Tivemos inúmeras conversas durante esse período. A forma com que ele colocava a questão para mim era de que, como disse Hamlet, “o tempo estava desarticulado” para pessoas como ele. Em sua visão, enquanto uma ilha de 2,5 milhões de pessoas, não seríamos capazes de enfrentar sozinhos essa correnteza. Então, a nova questão não era abandonar todas as esperanças de transformação, mas entender como poderíamos amenizar os piores efeitos da expansão do mercado. Gostaria de enfatizar que essa não foi uma trajetória que ele adotou com entusiasmo, mas era o único caminho que ele via como realista.

Há muitas histórias não publicadas sobre esse período. Vou narrar apenas uma. Quando o PNP assumiu o governo em 1989, uma das primeiras coisas que Manley fez foi visitar todos os países da Internacional Socialista. Ao se reunir com Felipe González na Espanha, Michael comentou que estávamos com um problema gravíssimo de câmbio e não queríamos recorrer ao FMI: “você poderia nos ajudar?”. Gonzalez respondeu: “converse com o nosso ministro das finanças”. Todos eles fizeram isso, deixavam nas mãos do ministério das finanças porque não podiam dizer sim. E todos os ministros das finanças nos perguntavam se tínhamos um acordo em vigor com o FMI. 

Manley me enviou ao Banco Interamericano de Desenvolvimento para negociar um acordo menos oneroso. Existiam algumas figuras latino-americanas na agência multilateral, inclusive um jamaicano que ocupava um cargo importante no banco. Eu fui até Washington para tomar um café com eles e a primeira coisa que me disseram foi que precisávamos privatizar a Jamaica State Trading Corporation (Corporação Estatal de Comércio da Jamaica), companhia estatal que percorria o mundo em busca de medicamentos baratos para comprar e entregar aos hospitais públicos. Para argumentar contra a privatização, mencionei que se levássemos essa questão ao parlamento, o público se voltaria contra a intervenção em nossa soberania nacional. E sabe o que eles responderam? Que “como um país devedor, vocês não têm soberania”. Eu deixei meus talheres na mesa, saí da reunião e informei ao primeiro-ministro que isso não daria certo.

Manley adoeceu e se aposentou, eu concluí meu doutorado, e seguimos com nossas discussões regulares. Conforme foi ficando mais velho, se tornou cada vez mais convicto de que a esquerda democrática (essa é uma citação dele próprio) precisava reivindicar uma contra-narrativa que desafiasse dogma neoliberal. Até começamos a trabalhar conjuntamente em um livro sobre a necessidade de um tipo distinto de democracia e sobre qual seria a base filosófica e ideológica de uma esquerda democrática moderna. Mas com o agravamento da sua doença, o projeto foi abandonado. Para ser sincero, eu senti que não deveria seguir adiante sem ele. 

WK: Recentemente, você liderou a comissão que desenvolveu uma reformulação da visão filosófica do PNP. O que esteve por trás dessa reflexão e como foi sua experiência? Como você pensa a questão da soberania hoje em dia?

AB: Quando Michael Manley se aposentou, pessoas como eu começaram a perceber que o partido havia perdido sua visão e ambição, e começamos a nos afastar. Mas alguns anos atrás, fui convidado por membros da nova liderança a ajudá-los a ressuscitar a identidade filosófica do partido. Aceitei por dois motivos: o primeiro, como declarei publicamente, era que Michael havia deixado claro em nossas discussões que era responsabilidade da minha geração recolocar ideias progressistas e democráticas na agenda política. Em segundo lugar, eu senti que nós, da esquerda, precisávamos fazer o trabalho que Manley e eu havíamos começado a discutir antes de sua morte. Essa foi uma oportunidade de trabalhar com um grupo de camaradas e articular nossa posição. 

Para realizar esse projeto, segui um modelo de política democrático. Passei muito tempo em diferentes distritos eleitorais. Viajava entre os EUA e a Jamaica, fazendo pesquisas, entrevistando pessoas—e realmente ouvindo o que elas tinham a dizer. Após a conclusão desse processo, no ano passado, redigimos nossas impressões e produzimos um documento intitulado “Where we Stand” (“em que pé estamos”), que foi aprovado pelo partido. Em seguida, nos dedicamos a traduzir esses princípios em políticas econômicas. Na conferência anual de setembro passado, recebemos 602 recomendações de delegados partidários sobre como reestruturar a economia jamaicana. Eu ainda não posso compartilhar o conteúdo, mas acho que é seguro dizer que há uma base para o processo de transformação social na Jamaica. A ver se teremos sucesso.

A pauta da soberania segue importante. Relembro o escritor e romancista caribenho George Lamming, que defendia que a soberania é uma questão central para nós no Caribe. Na minha opinião, a única soberania real que podemos ter no Caribe é um Caribe unido. Refiro-me a todo o Caribe—anglófono, francófono, hispânico, neerlandês, etc. Essa união caribenha deve surgir primeiro na imaginação, através da crença de que não somos subjugados por forças externas, sejam elas políticas ou econômicas. Precisamos imaginar as coisas para além de como são apresentadas. E devemos estar unidos nisso, porque a estrutura da economia global não permite a soberania individual no sentido econômico. A questão da soberania começa, então, com um horizonte político. Ela exigirá que o Caribe desenvolva uma série de empreendimentos econômicos conjuntos e construa capacidade de intervir na política em nível global. Isso implica configurar novas relações e alianças globais fora da política das grandes potências. Ainda há superpotências que dominam o mundo, mas, dadas as múltiplas crises atuais, novas formas são necessárias. Acho que esse é um dos legados contemporâneos de Michael Manley.

Tradução: Bruna Barro


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